A compensação como forma de extinção de obrigações surgiu no direito romano, baseada no princípio da eqüidade, visto que seria ilógico permitir que duas pessoas, sendo concomitante e reciprocamente credoras e devedoras, tivessem contra si o direito de ação.
No direito civil, a compensação vem regida pelo art. 368, do Código Civil, pelo qual "se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem".
A compensação tributária tem fundamento constitucional, quando pode ser definida [01] como "espécie do gênero compensação – categoria geral de direito – pertinente à extinção das exações fiscais por meio do pagamento indireto, inspirada pelo princípio da supremacia da constituição, da segurança jurídica, da legalidade, da moralidade administrativa, da responsabilidade estatal, da Justiça Fiscal, vetores que repelem o dolo consubstanciado no recebimento de créditos, enquanto não pagos os correspondentes débitos entre os mesmos sujeitos, bem como pelos critérios lógico-jurídicos da economia de tempo e de dinheiro, mas também na própria concepção moderna de direito, pois concorre para uma mais célere e efetiva satisfação de interesses que, antes antagônicos, se harmonizam por intermédio do princípio da reciprocidade das obrigações".
As linhas gerais da compensação tributária vieram traçadas no art. 170 do Código Tributário Nacional, pelo qual "a lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública".
Paulo de Barros Carvalho [02] analisa o instituto traduzindo-o da seguinte forma: "Analisado o fenômeno pelo ângulo lógico, conclui-se que o desaparecimento somente acontecerá se os valores compensados forem exatamente iguais ou se o crédito que o sujeito passivo opuser à Fazenda Pública suplantar o montante devido a título de tributo. Sendo menor, remanescerá o vínculo tributário, por pequena que seja a dívida. Como vetores de mesma intensidade, mesma direção e sentidos opostos se anulam, quer o direito subjetivo da entidade tributante, como o dever jurídico do sujeito passivo desaparecem, fenecendo a relação obrigacional".
Certo é que a regra do art. 170 do Código Tributário Nacional, trouxe muita discussão sobre sua auto-aplicabilidade - discussão não puramente acadêmica, haja vista que, por se tratar de atividade estritamente vinculada, a compensação feita fora dos moldes legais implica em responsabilidade funcional do agente da administração [03].
Para acabar com a discussão, foram promulgadas diversas leis ordinárias regulamentando a matéria, o que, se de um lado apaziguou a discussão sobre a auto-aplicabilidade do art. 170 do CTN, de outro criou polêmica sobre as restrições impostas.
Atualmente a compensação tributária está basicamente regulamentada pelos art. 74, da Lei 9.430/96, com redação dada pelas Leis 10.637/02, 10.833/03 e 11.051/04, cujo caput assim dispõe:
"Art. 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão".
Neste ponto, surge a discussão sobre o tema central deste trabalho, qual seja, se ainda existe o permissivo legal de que se realizem as compensações tributárias com débitos de terceiros, grande vitrine daqueles que vendiam planejamentos tributários na virada do último século, seja através da compra de ofícios precatórios de decisões judiciais transitadas em julgado ou do aproveitamento de créditos de empresas coligadas, como foi feito pelas grandes redes de hipermercado e dos postos de gasolina.
Isso porque, com a nova redação, consta apenas que o contribuinte poderá fazer a compensação de débitos próprios, através do formulário eletrônico PER/DCOMP (Pedido Eletrônico de Ressarcimento ou Restituição e Declaração de Compensação). Ainda, de acordo com o § 12 do mesmo artigo, será considerada não declarada a compensação em que o crédito seja de terceiro.
É manifesta a inconstitucionalidade constante do dispositivo legal. Conforme anteriormente salientado, a compensação tributária tem permissivo constitucional, e o Código Tributário Nacional - que tem força de lei complementar e, portanto, estaria acima da Lei 9.430/96 - não trouxe qualquer limitação no instituto para que fosse vedada a compensação com créditos de terceiros. A Lei 9.430/96 teria extrapolado a sua competência, opondo-se, inclusive, ao senso de eqüidade, pelo qual a Fazenda Pública deveria receber aquilo que é justo em sentido global.
Entretanto, não é a política que tem seguido a Fazenda Pública, sob o pífio argumento de que deve receber seus créditos imediatamente, enquanto deve pagar seus débitos através do sistema de precatórios. Assim, esquiva-se em uma benesse legal para deixar de satisfazer suas obrigações. Vale salientar que esse argumento tem sido utilizado até em processos em que há sucumbência recíproca e condenação mútua em honorários.
Nossos tribunais têm sido especialmente solidários com o calote aplicado pelo Fisco brasileiro, quando reiteradamente têm decidido que:
"O artigo 170 do Código Tributário Nacional, ao tratar do instituto da compensação tributária, impõe o entendimento de que somente a lei pode atribuir à autoridade administrativa o poder de deferir ou não a referida compensação entre créditos líquidos e certos com débitos vencidos ou vincendos. Nesse quadro, verifica-se a absoluta impossibilidade de o Poder Judiciário invadir a esfera reservada à Administração Pública, e, por conseguinte, determinar a compensação pretendida pela Recorrente. (RMS 20526/RO - Ministro FRANCISCO FALCÃO - DJ 25.05.2006)".
"TRIBUTÁRIO – COMPENSAÇÃO DE TRIBUTOS – TRANSFERÊNCIA DE CRÉDITOS A TERCEIROS – LEI 9.430/96 – IN SRF 21/97 E 41/2000 – LEGALIDADE. A Lei 9.430/96 permitiu que a Secretaria da Receita Federal, atendendo a requerimento do contribuinte, autorizasse a utilização de créditos a serem restituídos ou ressarcidos para a quitação de quaisquer tributos e contribuições sob sua administração. O art. 15 da IN 21/97, permitiu a transferência de créditos do contribuinte que excedessem o total de seus débitos, o que foi posteriormente proibido com o advento da IN 41/2000 (exceto se se tratasse de débito consolidado no âmbito do REFIS) e passou a constar expressamente do art. 74, § 12, II, "a" da Lei 9.430/96. Dentro do poder discricionário que lhe foi outorgado, a Secretaria da Receita Federal poderia alterar os critérios da compensação, sem que isso importe em ofensa à Lei 9.430/96. (REsp 677874/PR - Ministra ELIANA CALMON - DJ 24.04.2006)".
Em adendo, vale salientar, em termos práticos, existe uma conseqüência bastante grave ao disposto no art. 74, da Lei 9.430/96.
Vez que considera como não declarada a compensação em que o débito seja de terceiro, elevando a nulidade do ato jurídico à categoria de ato inexistente, parte da doutrina e da jurisprudência entende que a manifestação de inconformidade, recurso cabível da decisão contrária à não-homologação, não teria o efeito suspensivo, sendo possível que a Receita Federal inscrevesse e executasse os débitos.
Não há que se concordar com essa argumentação. O art. 74, § 11, da Lei 9.430/96, foi inequívoco ao dizer que a manifestação de inconformidade e também o recurso ao Conselho de Contribuintes contra a não-homologação da compensação obedecer ao rito processual do Decreto 70.235/72 e que se enquadram no disposto no inciso III, do art. 151, do CTN relativamente ao débito objeto da compensação, ou seja, implicam suspensão da exigibilidade do crédito tributário.
Sendo assim, se praticamente fechado o cerco contra as compensações de créditos de terceiros, o que podem fazer as empresas para continuar a aproveitá-los, ou ainda, estabelecer novas formas de planejamento tributário?
O caso dos precatórios judiciais
Muito embora a compensação de débitos com créditos de terceiros com decisão transitada em julgado em âmbito administrativo esteja proibida, a saída que deve ser encontrada pelas empresas deve ser tomada em âmbito judicial.
Isso porque o art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Tributárias assim dispõe: "Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos".
Se permitida a cessão dos créditos, como dispõe a parte final do artigo, nada impede que aquelas empresas interessadas na compra de precatórios façam a cessão dos créditos para o seu nome no próprio processo. Este procedimento dar-se-á através de simples petição informando ao juízo da cessão, que deverá ser instrumentalizada em escritura pública de compra e venda de direitos, da qual deve ser cientificada a Fazenda.
Caso seja negado o pedido, o cessionário deverá impetrar mandado de segurança no Tribunal competente, utilizando-se como fundamento legal o próprio art. 78, do ADCT. A opção pela via do Agravo de Instrumento está descartada após as últimas alterações nos dispositivos que regulamentam esse recurso, haja vista que não se terá como provar o perigo na demora; por outro lado, a opção pelo Agravo Retido está descartada, pois não haverá como se reafirmar suas razões em sede de apelação, não mais cabível.
Neste sentido, vide "Do cabimento do mandado de segurança para o afastamento das ilegalidades contidas na Lei nº 11.033/04 e IN SRF nº 517/04" in Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 829, 10 out. 2005. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/7401.
Após registrada a transferência nos autos, e remetidos estes para nova autuação, o contribuinte pode pleitear junto à Secretaria de Receita Federal, não a compensação de débitos com créditos de terceiros, mas compensação de débitos próprios, como dispõe o art. 74, da Lei 9.430/96.
Desta forma, o investimento naquilo que se convencionou chamar de "compra de precatórios" continua sendo um planejamento tributário viável para muitas empresas, lícito e de retorno financeiro bastante vantajoso, haja vista os grandes deságios praticados no mercado [04].
Importante dizer ainda que, tanto nesse caso, quanto na próxima oportunidade apresentada, são permitidas as compensações com débitos vencidos e vincendos, de acordo com o permissivo do art. 66, da Lei 8.383/91.
Neste sentido, Leandro Paulsen ensina: "Tem-se destacado, em diversos julgados, o direito à compensação com parcelas vencidas e vincendas porque o Fisco passou a buscar interpretação do art. 66 da Lei 8.383/91 no sentido de só autorizar a compensação com tributos ainda não vencidos por ocasião da compensação. Sob tal perspectiva, tem-se de admitir que a Lei 8.383/91 autorizou a compensação com tributos "vencidos" ao tempo da compensação, desde que fossem "vincendos" ao tempo do indébito".
Kiyoshi Harada [05] vai além, dizendo até mesmo que pelo permissivo do art. 66, da Lei 8.383/91, a compensação poderia ser feita por conta e risco do contribuinte. Explica: "Resulta com solar clareza que a lei facultou ao sujeito passivo efetuar a compensação por conta própria. De fato o texto legal prescreve que o contribuinte poderá efetuar a compensaçãoe não que o contribuinte poderá requerer a compensação. Outra coisa bem diversa é a faculdade de o contribuinte optar pelo pedido de restituição, que está previsto no § 2º do referido artigo, o que poderá ser feito por via administrativa ou por via judicial. Essa norma cuida, indubitavelmente, de compensação de tributos de lançamento por homologação. Por isso, não há necessidade de prévia autorização administrativa ou judicial. O contribuinte, por sua conta e risco, promove a compensação de tributo pago indevidamente. Cumpre ao fisco aprovar ou não esse procedimento do contribuinte. Decorrido o prazo legal de cinco anos, sem que tenha havido lançamento de ofício desconsiderando a compensação levada a efeito pelo contribuinte, tem-se por homologada a compensação e extinto o crédito tributário por ela abrangido. Nos tributos de lançamento por homologação, na esfera federal, é sempre possível a compensação por conta e risco do contribuinte. Ante a declaração de inconstitucionalidade de determinado tributo, é preferível a via da compensação do que a morosa via da repetição de indébito. Na esfera estadual, normalmente, a legislação do ICMS prevê o aproveitamento de créditos extemporâneos. O próprio mecanismo de apuração mensal do imposto a recolher abriga a compensação de crédito tributário indevidamente pago".
O caso das empresas coligadas
O impedimento à compensação entre empresas coligadas foi verdadeira pá de cal lançada pela Receita Federal sobre o planejamento tributário das grandes empresas.
A administração tributária passou a entender que débitos próprios significavam débitos de uma única empresa, com uma única inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), impedindo, portanto, empresas sob mesma administração de compensarem seus tributos entre si.
Neste particular caso, não existe solução às empresas além de optarem pela via da restituição dos impostos. Neste caso, a opção mais célere será pela restituição administrativa.
Na hipótese de pedido judicial de ressarcimento, e havendo a formação de ofício precatório, há ainda a possibilidade da alienação para a empresa coligada, porém com o custo associado da parte burocrática (cartório, honorários advocatícios etc.). Ainda assim, trata-se de uma saída vantajosa para a empresa, considerando-se os 10 anos que dispõe a Fazenda Pública para realizar o pagamento do ofício precatório.
Conclusão
Feitas essas considerações, a compensação de débitos próprios com créditos de terceiros continua possível, na hipótese dos ofícios precatórios judiciais, seguidos os trâmites acima mencionados, apesar dos entraves criados pela administração tributária.
Algumas empresas ainda têm optado por discutir judicialmente as limitações impostas pela Lei 9.430/96, entretanto estas demandas têm obtido pouco ou nenhum sucesso, haja vista os Tribunais terem reiteradamente decidido quanto à constitucionalidade da lei. Vale lembrar, este não é o posicionamento da doutrina, que majoritariamente entende pela inconstitucionalidade das limitações criadas ao direito de compensação pelo contribuinte.
NOTAS
01 Hugo Barroso Uelze, Compensação Tributária, RTFP 57/147, ago/2004.
02Fundamentos Jurídicos da Incidência, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1.999.
03 Neste sentido, Paulo de Barros Carvalho expõe: "A lei que autoriza a compensação pode estipular condições e garantias, ou instituir os limites para que a autoridade admnistrativa o faça. Quer isso significar que, num ou noutro caso, a atividade é vinculada, não sobrando ao agente público qualquer campo de discricionariedade". (Curso de Direito Tributário, 8ª ed., Saraiva, 1996).
04 Alguns Estados do Brasil regulamentaram o aproveitamento de créditos de terceiros oriundos de decisões judiciais transitadas em julgado, como é o caso do Paraná, onde o procedimento apontado não se aplica, portanto.
05 http://www.suigeneris.pro.br/direito_dt_harada1.htm