O papel da Anvisa e a vacinação como um ato de solidariedade social

10/11/2020 às 21:02
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O artigo discute sobre a função institucional da Anvisa e a questão da vacinação.

I – O FATO

Segundo divulgou o jornal O Globo, em 10 de novembro do corrente ano, o presidente Jair Bolsonaro ironizou a decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), na noite desta segunda-feira, de interromper o estudo clínico da vacina Coronavac, desenvolvida pelo Instituto Butantan e pelo laboratório chinês Sinovac Biotech. Bolsonaro frisou que o governador de São Paulo, João Doria, "queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la", ressaltou que é contra a obrigatoriedade da vacinação e disse que é "mais uma que Jair Bolsonaro ganha".

Segundo a agência, a interrupção se deu por conta de um “evento adverso grave” durante a fase de testes da vacina. O GLOBO apurou que o evento grave informado na nota da Anvisa foi a morte de um voluntário. Em nota, o Butantan afirmou que a morte não  relacionada à vacina e o diretor geral do instituto, Dimas Covas, afirmou que recebeu com estranheza a notícia.

II – O PAPEL DA ANVISA COMO ÓRGÃO REGULADOR E A VACINAÇÃO

Com o devido respeito, o papel da ANVISA e ainda a questão da vacinação contra a covid-19 não podem e não devem ser tratados como temas políticos.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) é uma autarquia fundada pela Lei 9.782/99 com o intuito de exercer o controle sanitário dos serviços e produtos que são submetidos à vigilância sanitária, sejam eles nacionais ou importados, como por exemplo os alimentos, medicamentos, cosméticos, derivados de tabaco, entre outros.

Caberá à ANVISA o papel determinante de aprovação com relação a aplicação de vacinas que combatam o terrível mal da COVID-19.

O papel da ANVISA, dentro de uma devida discricionariedade técnica, é de ser agente normatizador na área de saúde.  

Como informou a Carta Capital, “no Brasil, quatro vacinas na fase 3 – a que abrange a testagem em voluntários – tiveram estudos clínicos autorizados pela Anvisa: a de Oxford, desenvolvida também pelo laboratório Astrazeneca e pela Fiocruz; a Coronavac, da Sinovac e Instituto Butantan, a Pfizer-Wyeth e a Janssen-Cilan, da Johnson & Johnson (atualmente em pausa para estudo de efeitos adversos).”

As duas primeiras estão em fase de “submissão contínua”, o que permite que a Anvisa inicie a avaliação de dados do produto e de fases já concluídas da pesquisa enquanto outros dados são gerados para compor um dossiê final, afirmou a agência em nota a CartaCapital. “Para ambos, a Anvisa já avaliou os dados submetidos e emitiu exigências às empresas para complementação de informações e dados”.

Até o momento, o Ministério da Saúde tem acordos com os dois estudos. O anúncio mais recente é de terça-feira 20, quando a pasta confirmou a compra de 46 milhões de doses da Coronavac para o SUS.

Os principais objetivos da regulamentação como instrumento de regulação são:

  • Subsídios às ações sanitárias.
  • Diminuição de desigualdades resultantes dos conflitos trazidos pela relação de produção e consumo.
  • Prevenir e evitar riscos à saúde de toda a população.
  • Indução de comportamentos em benefício da coletividade.
  • Transparência, harmonização e igualdade de tratamento.

A ANVISA, como as demais agências regulatórias, têm o poder de exercer uma função normativa secundária, e não primária, como faz o Legislativo, por lei, ou o Executivo, por medidas provisórias (com os limites de urgência e necessidade dados pela Constituição).

Não cabe ao legislador primário uma função regulatória. Esta cabe às agências reguladoras. Disse bem Justen Filho (Direito das Agências Reguladoras Independentes, 2002) que" a função regulatória (ou reguladora) visa realizar o gerenciamento dos múltiplos e antinômicos interesses da sociedade, traduzindo "em restrições à autonomia privada para evitar que o exercício abusivo de certas prerrogativas ponha em risco a realização de outros valores".

Daí porque bem resumiu Carlos Roberto Siqueira Castro (A Constituição aberta e os direitos fundamentais, pág. 213) que a competência normativa exercida pelas Agências Reguladoras, inserida no sistema de separação de poderes e considerando-se a proeminência da instituição legislativa para a positivação das regras jurídicas, é inconfundível com o "poder regulamentar", primário, de competência do chefe do Poder Executivo, que se faz através de regulamentos de execução (reproduzindo de forma analítica a lei, ampliando-a, se for o caso, e completando-a segundo o seu espírito e o seu conteúdo, sobretudo nos aspectos e detalhes que a lei expressa ou implicitamente outorga à esfera regulamentar). O poder regulamentar do Executivo, lembre-se, envolve regulamentos (decretos) de regulamentação e regulamentos de organização, não autônomos, pois a Constituição não os permite.

As Agências Reguladoras, verdadeiras autarquias, como é o exemplo da ANVISA, têm o poder de exercer uma função normativa secundária, desde que observadas as normas hierarquicamente superiores. Essa função normativa é secundária, repita-se.

A ANVISA, como agência reguladora, exerce uma atividade própria de discricionariedade técnica.

Diogo de Figueiredo Moreira(Legitimidade e discricionariedade: novos reflexos sobre os limites e controle da discricionariedade, 1989, pág. 22) definiu a discricionariedade como sendo a qualidade encarregada pela Lei à Administração Pública para determinar, de forma abstrata ou concretamente, o resíduo de legitimidade necessário para integrar a definição de elementos essenciais à sua execução, diretamente referido a um interesse público especificado.

A discricionariedade é a manifestação concreta e unilateral da vontade da Administração. Não cabe ao Legislador fazê-lo. O legislador emite atos abstratos, imperativos, coercitivos, estabelecendo normas abertas.  Lembro o que é discricionariedade técnica, que não pode ser exercida pelo legislador.

A discricionariedade pura ocorre quando a lei usa conceitos que dependem da manifestação dos órgãos técnicos, não cabendo ao administrador senão uma única solução juridicamente válida.

A discricionariedade técnica própria ocorre quando o administrador se louva em critérios técnicos, mas não se obriga por eles, podendo exercer seu juízo conforme critérios de conveniência e oportunidade. É o caso da atuação das chamadas Agências Reguladoras. 

A discricionariedade técnica comporta opções mais restritas. 

Lembro a posição Antônio Francisco de Souza (A discricionariedade administrativa, Lisboa, Danúbio, 1987, pág. 307): 

"A natureza e dimensão desta "discricionariedade técnica" varia, porém, de pais para o país, é mesmo dentro de cada país que a adota que ela permanece obscura. Para uns, trata-se de um poder livre, para outros, de um poder vinculado, mas que não é suscetível de ser controlado pelos tribunais administrativos, para outros, de um poder vinculado que deve ser, ainda que não integralmente controlado judicialmente, para outros ainda, a sua natureza varia de caso para caso".

Afirmou Odete Medauar (Poder discricionário da administração, RT, n. 610): "A distinção entre discricionariedade pura e discricionariedade técnica teria, segundo Piras, um sentido de apontar limites dados pela lei nesse ou naquele caso de discricionariedade. Mas, como Mortati, Piras, FIorini e Giannini, afirmamos o caráter unitário da discricionariedade na sua essência: podem variar os assuntos ou matérias sobre os quais se exerce.

O recurso a conhecimentos técnicos pode ser necessário em vários momentos da atividade administrativa; mas, esses conhecimentos e dados representam somente um aspecto vinculado do poder discricionário em determinada decisão, ou a Administração fica ainda, com a possibilidade de cotejar vários critérios técnicos para determinar qual o mais eficaz e conveniente.

A par da posição de que o mérito é insindicável, entendo que cabe ao Judiciário examinar os motivos e objetos do ato administrativo, para observar os limites da proporcionalidade e razoabilidade deles. Disse bem o ministro Luis Roberto Barroso (Agências reguladoras: Constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática, Revista de Direito Administrativo, Revista de Direito Administrativo, volume 229), ao comentar o regime jurídico especial das Agências Reguladoras - que, segundo ele, visa preservar essas entidades de ingerências indevidas por parte do Estado e de seus agentes.

O ministro Luis Roberto Barroso procurou demarcar, por essa razão, um espaço de legítima discricionariedade com predomínio, de juízos técnicos sobre as valorações políticas. É o caso dessa intervenção indevida do Legislativo em assuntos de discricionariedade técnica: a lei dita é inconstitucional porque invade assunto que é inerente à Administração, por suas Agências Reguladoras, e ainda foge à razoabilidade, que deve ser aferida através de discricionariedade técnica. 

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O exercício da discricionariedade deve ser feito pelo administrador sob o enfoque da conveniência e da oportunidade, dentro da liberdade que o legislador lhe dá, em seus limites. Usurpou, pois, o Legislativo, exercendo por lei, e o presidente da República, ao sancionar lei inconstitucional, um papel regulatório que é próprio da ANVISA.

A ANVISA, como as demais agências regulatórias, têm o poder de exercer uma função normativa secundária, e não primária, como faz o Legislativo, por lei, ou o Executivo, por medidas provisórias(com os limites de urgência e necessidade dados pela Constituição). 

A Constituição de 1988 impõe ao Estado o dever de proteger a saúde das pessoas (art. 196), por meio de uma série de ações, dentre as quais a vigilância sanitária (art. 200, I). Portanto, a Constituição admite a vacinação compulsória, desde que haja indicação médica, com segurança ao cidadão e efetividade na proteção da coletividade. No Brasil, tal avaliação é de competência da ANVISA (que aprova a comercialização e uso de fármacos no país) e do Ministério da Saúde, com apoio da CONITEC (que incorpora novas tecnologias ao SUS).

III – A VACINAÇÃO OBRIGATÓRIA COMO UM ATO DE SOLIDARIEDADE SOCIAL

Fala-se que a obrigatoriedade deve decorrer da exigência do certificado de vacinação para a prática de determinados atos, como viajar de ônibus ou avião, ou para a emissão de documentos oficiais.

Mas a obrigatoriedade quanto à vacinação somente virá de lei, primária, norma típica primária.

No Brasil, promulgada em 1975, a Lei 6.259, que instituiu o Programa Nacional de Imunizações, já ressaltava a obrigação de se vacinar. Nela, há previsão até mesmo da edição de medidas estaduais — com audiência prévia do Ministério da Saúde — para o cumprimento das vacinações. 

Lei nº 6.259/75 foi regulamentada pelo Decreto nº 78.2314, de 12 de agosto de 1976, agregando o detalhamento da forma como a vacinação obrigatória deveria ser executada no Brasil. Conforme descrito no Art. 27 do regulamento, "serão obrigatórias, em todo o território nacional, as vacinações como tal definidas pelo Ministério da Saúde, contra as doenças controláveis por essa técnica de prevenção, consideradas relevantes no quadro nosológico nacional".

O Decreto editado, de nº 78.231, tem natureza de regulamento de execução.

O Decreto dispõe ainda, no Art. 29, que é dever de todo cidadão submeter-se à vacinação obrigatória, juntamente com os menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade. A dispensa da vacinação obrigatória somente é permitida à pessoa que apresentar Atestado Médico de contraindicação explícita da aplicação da vacina.

Essa norma de 1975, como se lê daquele artigo 196 da Constituição, foi recepcionada pelo novo sistema constitucional de 1988, Constituição-Cidadã, que impõe a saúde como direito do cidadão, a ser exercido por ele.

A obrigatoriedade de vacinação de menores foi reforçada posteriormente pelo disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei nº 8.069/905 - que regulamentou o artigo 227 da Constituição Federal de 1988, visando estabelecer os direitos e a proteção integral a essa população. O ECA, no parágrafo único do Art. 14, estabelece que "é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias".

A obrigatoriedade da vacinação representa uma proteção ao bem público comum da prevenção e promoção da saúde. Tal somente poderá ser flexibilizado, nos limites da razoabilidade e da proporcionalidade, quando não houver riscos relevantes para a saúde pública. 

Disse bem Miguel Reale Jr.(Vacina Obrigatória, em artigo para o Estadão, em 7 de novembro de 2020) que “na Constituição da República consagra-se o valor da solidariedade no artigo 3.º, segundo o qual é objetivo fundamental da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ser vacinado é ser solidário, pois não apenas se protege a si mesmo, mas todos da comunidade, visando a alcançar a imunização. A solidariedade, na expressão de Dworkin, vem a ser “considerar a vida dos outros como parte de suas próprias vidas” (Uma Questão de Direito, pág. 297), significando “a pessoa se abrir à outra, pensá-la, sofrer com”, no dizer de Arias Bustamante (Alternativa Ideológica: Comunitarismo, pág. 40), unidos todos por grande cordão umbilical.”

Lembrou ainda Miguel Reale Jr. que “como elucida o Supremo Tribunal Federal (Oscar Vilhena, Direitos Fundamentais, pág. 388, reproduzindo votos de Celso de Mello), “a proteção à saúde representa um fator que associado a um imperativo de solidariedade social impõe-se ao Poder Público”, em qualquer plano da organização federativa, tomando medidas preventivas e curativas.”

Em outro voto, Celso de Mello observa que a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida com base nos direitos sociais significa a renúncia a “reconhecê-los como verdadeiros direitos” (pág. 399), em arrepio ao princípio da solidariedade.

Portanto a vacinação deve ser tratada como uma atividade técnica a ser exercida pela ANVISA, sem qualquer vínculo político com quem quer que seja, e ainda um verdadeiro desiderato de solidariedade social.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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