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Notas para um ensaio sobre a dignidade da pessoa humana.

Conceito fundamental da Ciência Jurídica

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22/07/2006 às 00:00
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PARTE II

1. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

2. COMO CONHECÊ-LA?

            Começamos esta parte II com uma reflexão propedêutica. Como podemos conhecer o significado do conceito jurídico dignidade da pessoa humana? É sabido que cada ser humano possui seu próprio universo de conhecimento, uma estrutura cultural que é o seu chamado sistema de referência. Muitas vezes o sistema de referência de um ser humano não pertence só a ele, pode tal sistema ser o universo cognitivo de uma coletividade. É natural que oriundos das mesmas contingências, os sistemas de referências de pessoas ou de um mesmo grupo sejam semelhantes uns aos outros. [26]

            Portanto, é mediante o nosso sistema de referência que aproximaremos do objeto de estudo, daí porque tanto se fala que o conhecimento de uma realidade está sempre condicionado pelo sistema de referência do sujeito conhecedor.

            Neste sentido, poderíamos ponderar que o próprio modo de se aproximar do objeto eleito não é um ato de liberdade, liberdade aqui pensada como ausência de pré-motivo. Todo ato livre é sempre determinado por algum motivo, qual o patrimônio cultural do sujeito cognoscente, o confronto de uma informação vinda do mundo exterior, com todo o cabedal de aprendizado já armazenado pelo agente. [27]

            Lado outro, o objeto a ser conhecido também está inserido em um sistema de referência, por exemplo, o conceito dignidade da pessoa humana está inserido dentro do sistema de referência que podemos chamar de Direitos ocidentais, i.e, um conjunto de normas jurídicas, que culturalmente assentam sua especificidade na assimilação dos legados da Grécia e da Roma clássicas, do Cristianismo e da Igreja, das Revoluções liberais e dos prodígios da ciência e da técnica. [28]

            Só a partir destas constatações é que o leitor poderá entender a construção que se vai delineando neste texto. O sentido atribuído ao conceito dignidade da pessoa humana está marcado por um sistema de referência fruto dos direitos do ocidente, é impossível negar esta afirmação. Entretanto, a consagração do conceito só se afirmará no século XX, após a grande tragédia do Holocausto na 2ª grande guerra, máxime a inesquecível lembrança do ocorrido nos campos de concentração nazista em Auschwitz.

            Deste modo, não podemos negar o sistema de referência que circunda o objeto eleito, a dignidade da pessoa humana, como também não podemos negar a nossa visão de mundo, até porque interpretamos e lemos a realidade a partir de nós mesmos, razão pela qual somos concordes com Leonardo Boff quando ensina,

            Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual a sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação. Sendo assim, fica evidente que cada leitor é co-autor. Porque cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque compreende e interpreta a partir do mundo que habita. [29] (grifos não constam do original).


3. SOBRE O CONCEITO JURÍDICO FUNDAMENTAL E SUA NATUREZA.

            Fixadas nossas premissas para conhecimento de nosso tema, qual seja, a dignidade da pessoa humana, consoante art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, passamos a defini-lo com um conceito jurídico fundamental para o ordenamento brasileiro, bem como ao final discorreremos sobre sua natureza jurídica.

            Conceituar é abstrair, é retrooperar até as origens do pensamento em busca do sentido do conceito construído. É como salienta Lourival Vilanova,

            O conceito, desta sorte, é uma abstração; o pensamento, por essência, se move no abstrato. Não abstrato na acepção do hipotético, irreal, mas no sentido de que separa o que existe unido, decompõe o que se apresenta em indissolúvel unidade. [30]

            Sigamos margeando livremente o pensamento do mestre Vilanova. O conceito supremo ou fundamental da cada sistema científico funciona logicamente como um pressuposto do conhecimento. No direito, efetivamente, é ele – conceito fundamental - que delimita dentro do campo do social, a dignidade da pessoa humana como pressuposto da ciência jurídica. Neste sentido, o conceito fundamental da dignidade da pessoa humana tem a função lógica de um a priori. É, com efeito, um esquema prévio, um princípio fundante, um ponto de vista anterior, munido do qual o pensamento se dirige à realidade jurídica, desprezando seus vários setores, fixando aquele que corresponde às linhas ideais delineadas ainda que inicialmente pelo conceito fundamental. [31]

            Sem conceito fundamental, é de se indagar como a história, a sociologia, a biologia e o direito podem extrair do real os seus objetos específicos? Não poderiam. Ouçamos Vilanova:

            Para se investigar onde se encontra o direito, fato social e o fenômeno biológico ou histórico, é necessária a constituição prévia de um conceito supremo para cada setor. Supremo ou fundamental, porquanto não é obtido, nem se deixa reduzir a outros conceitos. E é anterior à experiência, uma vez que sem a prévia determinação do conceito, não seria possível o conhecimento. O pensamento perder-se-ia na selva extraordinariamente intricada de fatos diversos que compõem o real, sem aptidão para discernir estes fatos em categorias específicas. O conceito fundamental para cada ciência, é, portanto, a condição de experiência. E, na qualidade de condição, tem de ser a priori. A aprioridade do conceito fundamental nada mais representa do que um dos aspectos das condições transcendentais do conhecimento, postas em relevo pela filosofia kantiana. [32] (grifos não constam do original).

            A dignidade da pessoa humana, muito embora positivada no texto constitucional, o que à primeira vista parece contrariar o que acima foi dito, sobretudo no que concerne ao a priori do conceito fundamental, é conceito fundamental que antecede ao próprio texto constitucional, é um a priori lógico que condiciona toda experiência hermenêutica interpretativa do art. 1º, III, da Carta Magna. Lembremos de algumas notas essenciais do pensamento de Locke: o direito surge no espaço aberto pela liberdade, à liberdade se auto-limita em nome da dignidade da pessoa humana. Nasce assim, o Estado. O Estado se fundamenta na defesa deste valor fundamental, e só se legitima se diuturnamente estiver compromissado com este valor supremo: a dignidade da pessoa humana.

            Nesta perspectiva também se direciona o pensamento de Ingo Wolfang Sarlet, ao dizer que,

            Assim, vale lembrar que a dignidade evidentemente não existe apenas onde é reconhecida pelo Direito e na medida que este a reconhece, já que constitui dado prévio, no sentido de preexistente e anterior a toda experiência especulativa. [33] (grifos não constam do original).

            O conceito jurídico dignidade da pessoa humana (que, acima de tudo, é um conceito inaugurador de sentido) é o conceito fundamental da ciência jurídica. Na ordem do conhecimento jurídico é o conceito supremo. Não é possível, logicamente, remontar a um conceito mais alto no domínio do jurídico. Nesse particular domínio, ele é único. Por ser o conceito supremo não está coordenado a outros, nem é derivado de outros. Por seu posto lógico, é o vértice da pirâmide jurídica conceitual. Sua amplitude de validez e legitimidade cobre todo o campo dos objetos jurídicos.

            Para Radbruch [34], citado por Celso Lafer, há princípios fundamentais de Direito que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico positivo, de tal modo que toda lei que os contrarie não poderá deixar de ser privada de validade. Eis aí, mais uma vez, o chamamento da dignidade da pessoa humana, como postulado normativo supremo no direito brasileiro.

            Não obstante o direito posto, enquanto objeto da ciência do direito, possa ser dividido didaticamente em ramos, o que fornece unidade e sentido às investigações científicas sobre o direito, é o conceito de dignidade da pessoa humana previsto no art. 1º, III da Constituição Federal. Este conceito fundamental funciona logicamente, como o pressuposto unificador de todos os ramos científicos do direito.

            Ainda, fortes em Lourival Vilanova, podemos afirmar que o direito é, essencialmente, um esforço humano no sentido de realizar o valor justiça. Essa dimensão ideal existe no conceito fundamental da dignidade da pessoa humana – pois este conceito não se reduz a uma mera forma de sugestionar atos, com total indiferença para o valor. [35] Se o conceito dignidade da pessoa humana é dever ser, e o é; é dever ser de algo. Este algo é a busca incessante da proteção jurídica ao ser humano, busca esta que impregna o conceito fundamental dignidade da pessoa humana por corolário todo o ordenamento jurídico.

            O conceito dignidade da pessoa humana há que se realizar no mundo do ser, afinal, salienta Vilanova, as normas jurídicas não constituem "direito" se carecem de toda relação com a realidade social humana. [36]

            Já é hora de acrescentarmos mais uma questão ao debate. Vejamos.

            Qual é a natureza jurídica do conceito fundamental, dignidade da pessoa humana? Trata-se de um princípio jurídico? É uma regra? A distinção entre princípios e regras assumiu importância capital em vários planos do cenário jurídico nacional e internacional.

            A sistematização dada ao tema "princípio jurídico e regras como espécies de normas" tem em Ronald Dworkin seu grande divulgador. Por todos, ouçamos as palavras do Professor Luis Roberto Barroso:

            A distinção qualitativa entre regra e princípio é um dos pilares da moderna dogmática constitucional, indispensável para superação do positivismo legalista, onde as normas se cingiam a regras jurídicas. A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel fundamental. [37]

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            Como bem anotou Ana Paula de Barcellos com sutileza, "Não é preciso descrever aqui todas a discussões teóricas envolvendo a distinção entre regras e princípios e nem seria útil reproduzir os vários critérios que têm sido empregados para extremar as duas espécies normativas" – para quem o quiser, remetemos o leitor ao texto da Professora Barcellos ora citado. [38]

            Enfim, para respondermos à indagação acima posta, qual a natureza do conceito dignidade da pessoa humana, vamos nos valer dos ensinamentos de Humberto Ávila.

            Para este autor, crítico da classificação proposta por Dworkin, pode-se diferençar os princípios das regras baseado em três argumentos: a)- natureza da descrição/comportamento – as regras descrevem comportamentos ou poderes para atingir fins; princípios descrevem fins cuja realização depende de efeitos decorrentes da adoção de comportamentos; b)- natureza da justificação exigida – as regras exigem um exame de correspondência entre o conceito da norma e o conceito de fato, sempre com a verificação da manutenção ou realização das finalidades sub- e sobrejacentes; os princípios exigem uma compatibilidade entre os efeitos da conduta e a realização gradual do fim; c)- natureza da contribuição para decisão – as regras têm pretensão terminativa, e os princípios têm pretensão complementar. [39]

            A sistematização proposta por Humberto Ávila torna-se sobremais importante quando cria uma terceira categoria de normas, que não se confunde nem com os princípios nem com as regras: são os chamados postulados normativos, que se caracterizam por serem normas de segundo grau que estruturam a aplicação de outras normas. O autor cita como exemplo de postulados normativos a proporcionalidade e a razoabilidade, chamados de princípios pela doutrina tradicional.

            Pois bem. Para nós a natureza jurídica do conceito fundamentaldignidade da pessoa humana, insculpida no art. 1º, III, da Constituição Federal – é a de um postulado normativo, muito embora tal conceito esteja inserido no título I, Dos Princípios Fundamentais (atecnias da linguagem objeto, que não interferem na linguagem científica). Insista-se, o postulado normativo da dignidade da pessoa humana se diferencia das regras e princípios quanto ao nível e função. Enquanto os princípios e as regras são os objetos da aplicação, o postulado normativo da dignidade da pessoa humana estabelece os critérios de aplicação dos princípios e das regras. E, enquanto os princípios e as regras servem de comandos para determinar condutas obrigatórias, permitidas e proibidas, ou condutas cuja adoção seja necessária para atingir fins, o postulado normativo da dignidade de pessoa humana serve como parâmetro para a realização de outras normas.

            Por ser um conceito jurídico fundamental, o postulado normativo da dignidade da pessoa humana é uma metanorma, que estrutura a aplicação de outras normas, com elas não se confundindo, por isso concordamos com a oportuna nomenclatura proposta por Humberto Ávila. [40]

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Sobre o autor
Roberto Wagner Lima Nogueira

mestre em Direito Tributário, professor do Departamento de Direito Público das Universidades Católica de Petrópolis (UCP) , procurador do Município de Areal (RJ), membro do Conselho Científico da Associação Paulista de Direito Tributário (APET) é autor dos livros "Fundamentos do Dever Tributário", Belo Horizonte, Del Rey, 2003, e "Direito Financeiro e Justiça Tributária", Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004; co-autor dos livros "ISS - LC 116/2003" (coord. Marcelo Magalhães Peixoto e Ives Gandra da Silva Martins), Curitiba, Juruá, 2004; e "Planejamento Tributário" (coord. Marcelo Magalhães Peixoto), São Paulo, Quartier Latim, 2004.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Notas para um ensaio sobre a dignidade da pessoa humana.: Conceito fundamental da Ciência Jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1116, 22 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8668. Acesso em: 22 dez. 2024.

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