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Responsabilidade tributária da empresa de consultoria tributária

26/11/2020 às 21:10
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Pode haver responsabilidade tributária de terceiro alheio à situação configuradora do fato gerador?

Como se sabe, atualmente, houve um crescimento vertiginoso de profissionais agrupados em torno de empresas de consultoria tributária especializadas no levantamento de créditos tributários a serem compensados de conformidade com a legislação vigente.

Essas empresas oferecem seus serviços na base de participação de 40% a 50% do crédito tributário apurado e compensado, fato que atrai a clientela com muita facilidade  em virtude da desnecessidade de despender despesas com honorários pelos serviços prestados.

Em geral essas empresas são idôneas, aplicando corretamente a legislação tributária vigente. Todavia, algumas delas cometem fraudes para aumentar o volume de créditos a serem compensados, a fim de receber a sua participação na forma acima mencionada. Não se vê participação de advogados nesse tipo de empresas, fato que afasta a aplicação do código de ética profissional. É preciso muito cuidado para separar o joio do trigo. Em qualquer profissão existem os bons e os maus.

O juiz da 1ª Vara Federal de Lins da Justiça Federal da 3ª Região proferiu uma peculiar decisão em que, reconhecendo a fraude fiscal perpetrada pela empresa de consultoria tributária, exonerou a responsabilidade do contribuinte pela multa decorrente de compensação indevida, transferindo-a a empresa prestadora de serviços com fundamento nos arts. 136 e 137, III, b do CTN:

“Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato”.

Para livrar a responsabilidade do contribuinte pela multa aplicada pelo fisco federal o digno magistrado sentenciante argumentou  que o art. 136 do CTN, apesar da expressão “independe da intenção do agente ou do responsável” exige culpa em sentido estrito, sob pena de ferir a dignidade da pessoa. Estribou-se no magistério de da Ministra Regina Helena Costa para desenvolver a sua argumentação.

Concordamos que o art. 136 do CTN afasta o dolo, mas não prescinde da culpa em sentido estrito. Conforme escrevemos, “dizer que independe  da intenção do agente significa que independe da vontade consciente e livre de praticar a conduta antijurídica, ou seja, independe do dolo. De fato se alguém, por simples esquecimento, deixou de pagar o tributo no prazo legal, não há que se falar em intenção, que pressupõe a deliberação de não pagar” [1]. Contudo, discordamos do argumento de que a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva fere a dignidade da pessoa, mesmo porque essa responsabilidade é abrigada no nosso ordenamento jurídico, quer na esfera pública, quer na esfera privada. A dignidade humana, valor protegido em nível da cláusula pétrea pela Constituição, não pode ser invocada para acobertar condutas antijurídicas.

Aplicou-se o art. 136 do CTN para livrar a contribuinte da multa aplicada, transferindo-a à empresa de consultoria tributária com fundamento no art. 137, III, b  do CTN:

“Art. 137. A responsabilidade é pessoal ao agente:

I – quanto às infrações conceituadas por lei como crimes ou contravenções, salvo quando praticadas no exercício regular de administração, mandato, função, cargo ou emprego, ou no cumprimento de ordem expressa emitida por quem de direito;

II – quanto às infrações em cuja definição o dolo específico do agente seja elementar;

III – quanto às infrações que decorram direta e exclusivamente de dolo específico:

a) das pessoas referidas no artigo 134, contra aquelas por quem respondem;

b) dos mandatários, prepostos ou empregados, contra seus mandantes, preponentes ou empregadores;

c) dos diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado, contra estas”.

Separou-se a responsabilidade pelo tributo, cabente ao contribuinte, e a responsabilidade pela multa que foi transferida à empresa de consultoria.

O inciso III, do art. 137 cuida de casos em que as infrações decorrem direta e exclusivamente  de dolo específico, a exemplo do que acontece com o inciso I que cuida da responsabilidade penal do agente. A alínea b em que se estribou a decisão judicial sob comento  cuida de ação dolosa praticada por mandatários, prepostos ou empregados, contra seus mandantes, preponentes ou empregadores. Nesses casos, não faria sentido responsabilizar a vítima pelas infrações cometidas pelos agentes.

Primeiramente, a fraude perpetrada pela empresa de consultoria não tem enquadramento no citado inciso III, b, porque ela não se qualifica como mandatário, preposto ou empregado, por ser uma prestadora de serviços contratada pelo contribuinte.

Em segundo lugar, a responsabilidade de que cuida o art. 137 do CTN é a de natureza criminal. A responsabilidade tributária que abrange o tributo e a multa pecuniária é sempre do sujeito passivo, na condição de contribuinte ou de responsável tributário. A multa por infração fiscal tem natureza tributária sendo incluída na obrigação tributária principal (art. 113 e § 3º do CTN). Não é passível de separação, como se tratasse de duas realidades distintas.

Única hipótese de responsabilidade tributária direta de terceiro, por substituição, é a do art. 135 do CTN:

“Art. 135 São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

I - as pessoas referidas no artigo anterior;

II - os mandatários, prepostos e empregados;

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado”.

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Veja-se que essa responsabilidade pelos créditos tributários resultantes  da prática de atos pelo agente com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto pressupõe vinculação do agente com a situação caracterizadora do fato gerador. Não há, nem pode haver responsabilidade tributária de terceiro alheio à situação configuradora do fato gerador. O mesmo acontece na responsabilidade solidária de que cuida o art. 134 do CTN:

“Art. 134 Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:

I - os pais, pelos tributos devidos por seus filhos menores;

II - os tutores e curadores, pelos tributos devidos por seus tutelados ou curatelados;

III - os administradores de bens de terceiros, pelos tributos devidos por estes;

IV - o inventariante, pelos tributos devidos pelo espólio;

V - o síndico e o comissário, pelos tributos devidos pela massa falida ou pelo concordatário;

VI - os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício;

VII - os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas”.

Positivamente, equivocada se acha a decisão proferida pela 1ª Vara de Justiça Federal de Lins, quer porque não se confundem a responsabilidade tributária com a responsabilidade penal, que é sempre pessoal do agente que praticou o crime ou a contravenção penal, quer porque incindível a obrigação de pagar o tributo da obrigação de pagar a multa pecuniária, ambos componentes da obrigação tributária principal, quer, finalmente, porque a responsabilidade tributária só pode ser atribuída à terceira pessoa vinculada  ao fato gerador da obrigação tributária (art. 128 do CTN).

Uma empresa de consultoria tributária que presta serviços à uma empresa comercial, por exemplo,  para recuperação de crédito tributário não vende, nem compra mercadoria da citada empresa comercial, tampouco, pratica qualquer ato relacionado com o fato gerador da obrigação tributária.  Quando ela presta serviços de consultoria à uma empresa industrial, igualmente, não realiza ato de industrialização, direta ou indiretamente, pelo que não pode ser responsabilizada pelo imposto ou multa pecuniária. Se a empresa de consultoria praticou fraude fiscal tipificado como crime ou contravenção penal deve responder pessoalmente perante a instância própria. É o que decorre do art. 137 do CTN.

Há o grande perigo de decisões da espécie prosperar por conta das costumeiras confusões,  e passar a responsabilizar generalizadamente todas as empresas de consultoria tributária pelas multas aplicadas a sujeitos passivos, pela compensação indevida de tributos levada a efeito por orientação da consultoria tributária. O passo seguinte seria a responsabilização de advogados por eventuais orientações dadas a clientes que venham ser refutadas pelo fisco, ensejando a imposição de multa pecuniária.

Em nome do princípio da segurança jurídica, decisões que se afastam do direito legislado, ainda que abstratamente sustentáveis em termos de justiça, devem ser estancadas no nascedouro. O Judiciário distribui a justiça segundo os parâmetros da lei. O Judiciário age apenas e tão somente no passado. Agir no futuro é tarefa do legislador.


[1] Código tributário nacional comentado, 4ª ed., Kiyoshi Harada e Marcelo Kiyoshi Harada.  São Paulo: Rideel, 2019, p, 217.

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Responsabilidade tributária da empresa de consultoria tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6357, 26 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87100. Acesso em: 25 abr. 2024.

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