3. Tratamento constitucional do tema
3.1 Princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III)
A Constituição de 1988 colocou a dignidade da pessoa humana como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. De acordo com o magistério de Fábio Konder Comparato:
"A dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita. Daí decorre... que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. A humanidade como espécie, e cada ser humano em sua individualidade, é propriamente insubstituível; não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma". [28]
É um "superprincípio", base de nosso ordenamento jurídico, e que implica em um complexo de direitos e deveres fundamentais com dupla finalidade: proteger a pessoa contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, garantindo as condições existenciais mínimas para a uma vida saudável; propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da sua própria existência e da sua comunidade.
Assim, podemos sintetizar o conceito em uma palavra: respeito. Respeito ao ser humano como centro da ordem jurídica e merecedor de direitos e garantias que preservem sua integridade física e moral. A prática do preconceito e da discriminação violenta essa dignidade ao conceber determinados grupos de pessoas como inferiores, merecedores de menos direitos e, portanto, de tratamento desigual.
No julgado histórico já citado [29], o STF se posicionou também a respeito de a prática do racismo ser uma ofensa à dignidade da pessoa humana:
"5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País." (grifos nossos)
3.2 Combate ao racismo como objetivo fundamental da Republica Federativa do Brasil (CF, art. 3º, IV)
O art. 3º da Constituição lista os objetivos fundamentais da Republica Federativa do Brasil, entre os quais está "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Assim, a prática do racismo é considerada crime (Lei 7.716/89) cujo autor se sujeita aos gravames previstos no art. 5º, XLVII, da Carta Magna (ver item 3.5). Além disso, várias leis federais [30], estaduais [31], distritais [32] e municipais [33][34] tratam de reprimir as diversas espécies de preconceito.
3.3 Repúdio ao racismo como princípio reitor das relações internacionais da República Federativa do Brasil (CF, art. 4º, VIII).
O Brasil, como país soberano, se relaciona em pé de igualdade com as outras nações, e, para essas relações, a Constituição Federal também institui princípios básicos, dentre os quais o repúdio ao racismo. Nesse sentido, foi ratificada pelo Brasil, em 27.3.1968, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, patrocinada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Esse aspecto também foi tratado pelo STF:
"6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, ‘negrofobia’, ‘islamafobia’ e o ‘anti-semitismo’." [35]
3.4 Princípio da igualdade ou da isonomia (CF, art. 5º, caput)
O art. 5º da Constituição Federal enuncia os direitos e garantias individuais e coletivos e, em seu caput já proclama que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Esse é o princípio da isonomia, que declara o tratamento igualitário de todos pela lei (igualdade formal).
A Constituição portuguesa, nesse ponto, foi mais feliz, pois detalhou e deixou estreme de dúvidas o significado do princípio da igualdade:
"Artigo 13.º
(Princípio da igualdade)
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica (sic), condição social ou orientação sexual."
O Estado deve respeitar determinados valores éticos, mas nunca promovê-los nem zelar por seu respeito, assumindo uma postura ativa na sociedade. O Estado não se confunde com a sociedade nem o Direito com a moral. A doutrina liberal justifica tal separação do seguinte modo:
"El liberalismo ordena derechos, no valores morales. Prescribe que los individuos y sus propiedades no deben ser objeto de agresión. Nada nos dice, sin embargo, sobre el vicio y la virtud. Es éste un asunto absolutamente subjetivo, que compete a cada persona en particular. Las gentes tienen ideas diversas acerca de lo que es moralmente correcto y el liberalismo se mantiene neutral entre ellas, no favorece ninguna visión concreta". [36]
Assim, o princípio constitucional da igualdade proíbe (de forma tímida na Constituição brasileira, mas bem explícita na portuguesa) que a lei faça discriminações, mesmo aquelas denominadas positivas, ou seja, privilegiem determinados grupos considerados desfavorecidos na sociedade, como os negros, os índios, as mulheres e os deficientes físicos. Tais discriminações positivas são conhecidas como ações afirmativas, assim conceituadas por Renata Malta Vilas-Bôas:
"Ações afirmativas são medidas temporárias especiais, tomadas ou determinadas pelo Estado, de forma compulsória ou espontânea, com o propósito específico de eliminar as desigualdades que foram acumuladas no decorrer da história da sociedade. Estas medidas têm como principais beneficiários os membros dos grupos que enfrentaram preconceito". [37]
As ações afirmativas, progressivamente implantadas no Brasil, já fazem parte de nosso ordenamento jurídico desde 1968, quando entrou em vigor a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Assim coloca seu art. I, 4:
"Medidas especiais tomadas com o objetivo precípuo de assegurar, de forma conveniente, o progresso de certos grupos sociais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem de proteção para poderem gozar e exercitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais em igualdade de condições, não serão consideradas medidas de discriminação racial, desde que não conduzam à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido atingidos os seus objetivos".
3.5 Conseqüências da prática do racismo (CF, art. 5°, XLVII)[38]
3.5.1 Sentido da expressão "prática do racismo"
Foi visto [39] que o termo racismo, de acordo com o novo entendimento do STF, não se refere apenas à discriminação e preconceito de raça [40]. Assim, em interpretação extensiva e teleológica, a Corte Suprema declarou que podem ser vítimas de racismo todos os tipos de grupos humanos, o que inclui judeus (caso julgado no histórico habeas corpus), umbandistas, nordestinos, indígenas, homossexuais, mães solteiras etc.
Prática é a execução de algum ato. A inclusão desse termo no dispositivo constitucional se justifica porque o racismo primeiramente é um conceito interno, em que se acredita na inferioridade de certos grupos de pessoas. Nesse ponto, não há interesse por parte do ordenamento jurídico, que só vai atuar quando essa concepção se exterioriza em um comportamento. Assim, praticar o racismo pode se dar tanto por meio de discriminação, em que se impede o acesso de certas pessoas a determinados lugares ou situações (Lei 7.716/89, arts. 3° a 14), quanto por meio da divulgação de idéias que propaguem, induzam ou instiguem o preconceito e a discriminação (art. 20 da lei) [41].
3.5.2 A prática do racismo como crime
A Constituição, de forma inédita, obrigou o legislador a criminalizar a prática do racismo, o que foi feito por meio da Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1999 [42]. Ressalte-se que a Carta Magna de 1988 é um documento voltado para o passado e muitos dos seus dispositivos têm por finalidade evitar que experiências trágicas da história brasileira se repitam. A escravidão foi uma delas.
Em vários dispositivos a Constituição de 1988 demonstra que nasceu anacrônica, mas em nenhum deles a vocação para o passado é tão evidente quanto neste. Ora, que o racismo seja moralmente condenável não há dúvidas, mas transformar uma conduta imoral em crime inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão requer que a conduta se revista de uma gravidade incomparável, pois tais restrições, em conjunto, não aparecem nem para os denominados "crimes hediondos".
À prática do racismo, portanto, são estabelecidas restrições inexistentes no homicídio qualificado, o estupro e o latrocínio. Considerando que a pena mínima da maioria dos crimes raciais é de dois anos de reclusão, essas condutas se equiparam a outras objetivamente muito mais danosas, como infanticídio, aborto e lesão corporal grave. Para se justificar essa cominação frente ao princípio da proporcionalidade, deveria existir no Brasil um cenário semelhante à África do Sul pós-apartheid, aos Bálcãs logo após as guerras étnicas ou aos Estados Unidos logo após as leis Jim Crow [43].
O Direito Penal não deve se preocupar com uma conduta de escassa lesividade social, sob pena de afrontar os princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade. De acordo com o magistério de Luiz Regis Prado:
"...tem-se que a função maior de proteção dos bens jurídicos não é absoluta. O que faz com que eles só devam ser defendidos penalmente ante certas formas de agressão, consideradas socialmente intoleráveis... a fragmentariedade [é um] limite necessário a um totalitarismo de tutela, de modo pernicioso para a liberdade." [44]
Se estivesse prevista na legislação ordinária, o dispositivo que criminaliza o racismo seria flagrantemente inconstitucional por ofensa aos princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade, da ofensividade e da fragmentariedade. Paradoxalmente, está previsto na própria Constituição e, como dispositivo de aplicabilidade imediata, deve ser obedecido.
3.5.3 Vedação de fiança
Fiança é a garantia real dada pelo réu como sucedâneo da prisão provisória para possibilitar a ele permanecer em liberdade até a sentença condenatória irrecorrível. Não é possível em determinados crimes e pode ser condicionada ao cumprimento de certas condições.
Parte da doutrina considera o dispositivo constitucional que torna a prática de racismo crime inafiançável falho, pois, de qualquer forma, continuaria possível a liberdade provisória sem fiança [45]. Porém, revela-se absurda tal interpretação, pois se o constituinte proibiu o mais (liberdade provisória com fiança), implicitamente proibiu o menos (liberdade provisória sem fiança). Além disso, a hermenêutica constitucional requer que, a cada dispositivo da Carta Magna seja dada a interpretação que maximize a sua eficácia. Portanto, ao tornar inafiançável a prática do racismo, implicitamente a Carta Magna a tornou insuscetível de liberdade provisória [46].
3.5.4 Imprescritibilidade
Prescrição é a perda do direito de punir (ou de executar a pena já imposta) pelo decurso de determinado prazo. A regra é a prescritibilidade dos delitos [47], pois, depois de algum tempo, a imposição da pena perde o sentido, não se podendo retribuir o mal causado nem prevenir novas infrações quando a memória do delito já se esvaneceu no seio da sociedade. A Constituição, de modo excepcional, previu a imprescritibilidade da prática do racismo, podendo, nesse caso, as pretensões punitiva e a executória serem satisfeitas a qualquer tempo.
Foi infeliz a previsão constitucional. Consagrar a imprescritibilidade de determinados crimes mais graves é tendência mundial, mas não foi o nosso caso. A prática de racismo e a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito (a outra hipótese constitucional) não são, nem remotamente, os crimes mais graves de nosso ordenamento jurídico [48]. Mesmo os crimes hediondos, que recebem penas altíssimas, são prescritíveis. Tal colocação resulta em prejuízo evidente ao princípio da proporcionalidade. No mesmo sentido o magistério de Kátia Enelise Oliveira da Silva:
"Ao prever a imprescritibilidade para esses tipos de delitos, o legislador constituinte arranhou o princípio da proporcionalidade, uma vez que para crimes tão ou mais graves continuarão sendo aplicadas as regras do instituto da prescrição. Verifica-se que este dispositivo constitucional está em descompasso com o espírito da Carta Magna e representa um retrocesso para o Direito Penal pátrio". [49]
3.5.5 Crime sujeito à pena de reclusão
A pena de prisão pode ser cumprida nos seguintes regimes: aberto (em casa de albergado), semi-aberto (em colônia agrícola ou industrial) e fechado (em penitenciária). Tendo em vista esses regimes, a pena de prisão pode ser de duas espécies: reclusão e detenção. A primeira admite os três regimes, enquanto que a segunda permite apenas os regimes semi-aberto e aberto. A Constituição de 1988, em harmonia com as restrições anteriores, considerou que a pena dos crimes de prática de racismo deve ser cumprida em reclusão, ou seja, existe a possibilidade de se iniciar a execução da pena em regime fechado.