1. Introdução: Do Trabalho Imaterial
O capitalismo tardio ou pós-industrial não tem mais sua fonte principal de geração de excedente expropriado no trabalho tradicional, manufatureiro, como ocorria no século XIX. A produção econômica da modernidade industrial objetivava a confecção de mercadorias, isto é, visava transformar o trabalho subordinado em mercadoria palpável, concreta, materialmente apropriável.
Já o modo de produção pós-moderno não se preocupa mais com a produção da mercadoria material, isso porque a automação aumentou, exponencialmente, a capacidade de reprodutibilidade de bens materiais, o que acabou por resultar na redução do preço desses bens. Em virtude disso, o capital já não tem tanto interesse em se apropriar desse excedente do trabalho tradicional, porquanto tal tipo de trabalho acaba agregando pouco valor à mercadoria.
Na contemporaneidade, o trabalho mais estratégico, ou melhor dizendo, o trabalho que agrega mais valor à mercadoria é o trabalho imaterial [01], também chamado biopolítico [02]. Essa novel modalidade de trabalho consiste em produzir não bens ou mercadorias propriamente, mas relações, nomeadamente, relações de conhecimento tecnocientífico, relações de idéias, relações de informação e de comunicação e até a produção de relações afetivas entre a mercadoria e o consumidor.
Para clarear o entendimento, poderíamos dar dois exemplos bem concretos da produção de relações no capitalismo contemporâneo.
Como primeiro exemplo, poderíamos tratar da relação de conhecimento tecnocientífico. Nesse sentido, é mais estratégico para a empresa o trabalho que envolve a operatividade da relação existente entre a máquina e o programa, do que os demais processos que desafiem o trabalho manual e concreto do trabalhador. É o trabalho intelectual e relacional que vai potencializar a própria capacidade da empresa de produzir bens materiais.
Como segundo exemplo, poderíamos citar a produção de relação de afetividade no consumo. Nesse caso, basta lembrar da hipótese de uma camisa, um tênis, uma caneta etc. Os respectivos preços desses bens materiais são submetidos a uma desproporcional variação se a eles agregarmos ou não uma etiqueta trabalhada intensa e imaterialmente no campo do marketing.
Em outras palavras, o trabalho imaterial além de aumentar de forma colossal a própria produção da mercadoria material, produz também inclusive o desejo ou necessidade – artificial – de consumo. Em suma, por um lado aumenta a capacidade de produzir bens, por outro aumenta a procura pelos bens produzidos.
Não é por outro motivo que se fala que já estamos na era do capitalismo cognitivo. Nessa nova era, além de a produção se voltar primordialmente às relações e não aos bens, a produção se dirige a produzir também o próprio consumidor, isto é, a produzir o imaginário e a subjetividade desse consumidor.
Produzir e construir o desejo do consumidor – por meio do marketing e das relações sociais – significa dizer que no capitalismo pós-industrial a produção, mais do que simplesmente atender à demanda, dedica-se inclusive a produzir a própria demanda.
Nesse sentido, a produção econômica contemporânea nem mesmo é mais essencialmente econômica, passa a ser também cultural, social e política – em suma, ela é biopolítica.
Isso não significa fazer coro com as teorias neoclássicas que pretendem desprestigiar o trabalho - o valor-trabalho - como atribuidor básico de valor na sociedade, instituindo, em seu lugar, o mercado – o valor-utilidade – como instância e fator originários de padrão de valor. Trata-se, apenas, de perceber que tipo de trabalho atua como o fator econômico de constituição prioritária de valor na sociedade contemporânea.
Diante, portanto, dessa revitalização do valor-trabalho – rectius: do valor-trabalho-imaterial ou biopolítico – é importante investigar a repercussão dessa nova configuração da teoria do valor no ordenamento jurídico.
2. Da Ampliação Quantitativa
A Emenda Constitucional n. 45/2004, nos parece, já se constitui de certa forma como inflexão da realidade econômica contemporânea na seara jurídica, especialmente na esfera trabalhista.
Contudo, a discussão que envolveu a ampliação de competência da Justiça do Trabalho perdeu o foco dessa transformação, pois se limitou a um aspecto ‘quantitativo’ do aumento de competência. Isto é, restringiu-se a debater a quantidade de categorias de trabalho que deveriam ser abrangidos pela locução ‘relação de trabalho’ contida na referida Emenda.
A conseqüência imediata, da exclusividade de abordagem sob a ótica ‘quantitativa’, foi conduzir a discussão doutrinária e jurisprudencial a intentos de cristalização de um conceito formal da categoria «trabalho», apenas para efeitos processuais de fixação da competência.
Embora uma conceituação consistente da categoria ‘relação de trabalho’ seja fundamental para o próprio desenvolvimento do Direito do Trabalho, não se pode desprezar o risco de acabar-se decalcando para a prática econômica um conceito vazio, que institua uma nova modalidade jurídica de trabalho, sem uma correspondente normatividade material e tutelar.
O perigo maior é que essa ‘categoria de acesso judiciário’, sem um recheio de direito material (econômico e social) acabe possibilitando, juridicamente, a construção de estratagemas formais, para a justificação legalista da desregulamentação no mundo do trabalho.
É nesse sentido, portanto, que nos parece interessante resgatar a conceituação de competência perpetrada por CELSO NEVES, que abandona a tradicional ‘medida da jurisdição’, concebendo-a como a relação de «adequação legítima» entre o processo e o órgão judiciário, ou seja, uma noção concreta, pragmática, porém, racional de competência [03]. A idéia do processualista paulista é superar as conceituações quantitativas da competência – competência enquanto medida - para caminhar em direção a uma conceituação qualitativa.
A conceituação qualitativa, segundo CELSO NEVES, tem um aspecto subjetivo e outro objetivo. Do ponto de vista subjetivo, a competência é definida como atributo para o exercício da jurisdição, decorrente da investidura legítima. Do ponto de vista objetivo, que aqui nos interessa mais especificamente, como a relação necessária, de adequação legítima, entre o processo e o órgão jurisdicional [04].
A jurisprudência contemporânea do Supremo Tribunal Federal, captou essa mesma perspectiva, construindo o conceito de ‘unidade de convicção’ [05], justamente por ocasião do julgado seminal que atribuiu à Justiça do Trabalho competência para julgar as lides decorrentes de acidente do trabalho, a partir da Emenda Constitucional n. 45/2004.
3. Da Ampliação Qualitativa
Não obstante a relevância da definição da ampliação quantitativa da competência, é preciso que doutrina e jurisprudência construam também um sentido de abrangência qualitativa do aumento dessa competência.
Partindo-se de uma perspectiva marxiana, segundo a qual onde se localiza o trabalho mais estratégico para a produção, aí estará, por outro, também o maior potencial de emancipação para a classe trabalhadora, e, nesse sentido, se esse trabalho mais estratégico (e emancipatório) hoje é o trabalho pós-material, biopolítico ou relacional, que produz relações de várias ordens, força concluir que a ‘relação de trabalho’ contemporânea tende a ser também, em última análise, uma ‘relação de (produção de) relações’.
Portanto, essa ‘relação de relações’ tende, enquanto tal, a se tornar, de uma perspectiva puramente teorética, abstrata e estritamente relacional, deixando escapar toda a fenomenalidade concreta da realidade perversa das relações no mundo do trabalho.
Pois é justo dessa espiral de desdobramento de relações que emerge a necessidade de se estancar esse processo recorrente, porque essa prática acaba distanciando ainda mais o trabalhador do resultado final de seu trabalho, isso porque o trabalho relacional se torna cada vez mais coletivo, mais desdobrado, mais difuso, multifacetado e mais estendido, subjetiva, objetiva e até territorialmente.
Nesse contexto, a tendência é que essa dispersão do trabalho relacional se potencialize, e se espraie com maior intensidade, através das várias disciplinas jurídicas e ramos judiciários. O que, sem dúvida, na prática acarretará a diluição da capacidade de tutela que cada ramo ou disciplina possa conceder ao trabalho, já que cada ramo judiciário ou disciplina jurídica conhecerá apenas de um fragmento do fenômeno jurídico trabalho.
Nesse passo, em termos concretos, o que se propugna é a reversão desse processo de dispersão e diluição da intensidade da proteção ao trabalho.
Para isso, é necessário que a ampliação de competência, que deflui da locução ´´relação de trabalho´´, não se limite à definição do número de categorias do labor humano subsumidas na respectiva locução conceitual, mas proceda, também, a uma intensificação qualitativa na tutela do trabalho humano. Em outras palavras, ampliar a competência da Justiça do Trabalho tem de significar também ampliar o grau de intensidade de proteção ao trabalho humano.
4. Da Especialização Democrática – Vis Attractiva Protectionis
Se não se desejar confundir, a bem de um mínimo de rigor científico, as esferas processual e material, o aumento da referida intensidade de tutela judicial, em termos processuais de competência, só pode significar a ‘desfragmentação judiciária´´ do bem jurídico trabalho, a fim de promover a concentração forense de todas categorias da ciência jurídica decorrentes do trabalho, quais sejam, as relações jurídicas ‘de trabalho’, ‘sindicais’, ‘tributário-trabalhista’, ‘administrativo-trabalhista’ e ‘de delito penal-trabalhista’, definindo, dessa forma, a Justiça do Trabalho como matriz-judiciária básica – ainda que não exclusiva - da proteção ao trabalho humano subordinado.
Sintetizando essa idéia, o que se propõe é que a Especialização dos ramos Judiciários, notadamente da Justiça Especial do Trabalho, não tenha apenas um sentido de sistematicidade da estrutura judiciária, e não leve em conta apenas a ‘categoria jurídica’ formal (tanto do aspecto de direito material, como do ponto de vista do acesso) mas, primordialmente, o ‘bem jurídico’ tutelado.
No caso da Justiça do Trabalho, o caráter candente, do ponto de vista social, do ‘bem jurídico’ tutelado (trabalho humano) em relação à mera ‘categoria jurídica’ (relação de trabalho) é clamorosa, já que o trabalho não é um simples ‘bem jurídico’, pois, em realidade, alça-se ao patamar de um dos fundamentos da democracia republicana.
No regime constitucional anterior, fruto de uma realidade política autoritária, à Justiça Federal era conferido um poder especial de atratividade, por razões, dentro da terminologia da época, de Segurança Nacional e de Estado. A idéia era concentrar o poder federal, excepcionando apenas o poder da Justiça Militar, por razões óbvias – além da Justiça Eleitoral.
Na atual ordem constitucional, já a partir de ares democráticos, a perspectiva foi excepcionar a Justiça do Trabalho, e não a Justiça Militar. É eloqüente, a respeito, a compaginação do artigo 125, I [06] da Constituição de 1967/69 ao atual artigo 109, I:
Constituição de 1967/1969: "Art. 125. Aos juízes federais compete processar e julgar, em primeira instância:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou emprêsa (sic) pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés assistentes ou opoentes, exceto as de falência e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Militar;
Constituição de 1988: "Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;(grifos nossos)
Ou seja, em decorrência dos influxos democráticos que a idéia do valor-trabalho humano suscita, que a Constituição de 1988, invertendo a lógica do ordenamento anterior, conferiu à Justiça do Trabalho, enquanto ramo especial, o poder atrativo especial e determinante em relação ao trabalho humano. Mais do que mera força de atração, imprimiu-lhe vis attractiva protectionis.
5.Conclusões
Em termos mais sintéticos, poderíamos sumariar a linha de concatenações aqui desenvolvida, da seguinte forma:
- O trabalho pós-material ou biopolítico, que produz relações de várias ordens, tende, enquanto tal, deixar escapar toda a fenomenalidade concreta da realidade perversa das relações no mundo do trabalho pós-grande indústria, instituindo uma espiral de deslocalização e descentralização da produção, emergindo, daí, a necessidade de desfragmentação e intensificação da proteção judiciária do trabalho;
- A ampliação de competência da Justiça do Trabalho não deve ser examinada exclusivamente pelo critério quantitativo (quantidade de categorias de trabalho que devam ser submetidas à competência trabalhista), mas, sobretudo, a partir do critério qualitativo desse aumento de competência, concebido enquanto aumento de intensidade da proteção ao trabalho humano;
- Na perspectiva dessa ampliação qualitativa da Competência, a Especialização Democrática dos Ramos Judiciários, em contraposição à ordem constitucional anterior, oriunda de um regime autoritário, deve se pautar, primordialmente, pelo bem jurídico a ser tutelado e não apenas pela categoria jurídica formal – seja enquanto categoria de direito material, seja como categoria de acesso;
- Na hipótese da Justiça do Trabalho, o bem jurídico tutelado – trabalho humano – por se constituir como uma das chaves da democracia republicana, supera, em muito, a simples categoria jurídica relação de trabalho, o que, por si só, justifica o poder especial de atratividade conferido pelo constituinte democrático à Justiça do Trabalho, tanto em relação aos demais ramos do Poder, como também em relação às várias categorias jurídicas e
- Antes que meramente Especializado, o Judiciário Trabalhista constitui-se como Justiça Especial de proteção atrativa, conferindo-lhe, o constituinte democrático, poder jurisdicional especial, não só de proteção, não só de atração, mas o poder da sinergia da atração com a finalidade tuitiva - vis attractiva protectionis.
Notas
01
Para o desenvolvimento da idéia de ‘trabalho imaterial’ consulte-se, dentre outros, NEGRI e HARDT, 2004, pp. 131-144 e GORZ, 2005, pp. 15-2702
Segundo Paolo Virno, Foucault introduziu o termo «biopolítica» em alguns cursos dos anos setenta, dedicados à mudança no conceito de população, entre o fim do século XVIII e princípios do século XIX. Para Foucault é nessa época que a vida como processo biológico começa a ser governada e administrada politicamente. Cfr. VIRNO, 2004, p.81. Giorgio Agamben observa que Foucault definia o termo «biopolítica» como a crescente implicação da vida natural do homem nos mecanismos e cálculos do poder. Cfr. AGAMBEN, 2002, p. 125.03
Cfr. CINTRA, 1990, p 204.04
Cfr. NEVES, 1992, prolegômenos, p. XII05
Segundo o princípio da unidade de convicção, como enunciado e formulado pelo Ministro Cezar Peluzo no CC nº 7.204-1, "não convém que causas, com pedidos e qualificações jurídicos diversos, mas fundadas no mesmo fato histórico, sejam decididas por juízos diferentes". Nesse sentido, conclui o Ministro Peluzo, que se o mesmo fato houver de ser submetido à apreciação jurisdicional por mais de uma vez, o mais razoável é que o seja pelo mesmo ramo judiciário, "por conta dos graves riscos de decisões contraditórias, sempre inteligíveis para os jurisdicionados e depreciativas para a justiça".06
Art. 125. Aos juízes federais compete processar e julgar, em primeira instância:I - as causas em que a União, entidade autárquica ou emprêsa (sic) pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés assistentes ou opoentes, exceto as de falência e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Militar;
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio Homo sacer - o poder soberano e a vida nua 1 Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002
CINTRA, Antônio Carlos; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 1990
GORZ, André O Imaterial São Paulo: Anablume, 2005
NEGRI, Antonio; HARDT, Michael Multitud – guerra y democracia en la era del imperio Barcelona: Debate, 2004
NEVES, Celso Comentários ao código de processo civil – vol. VII – 4ª ed – Rio de Janeiro: Forense, 1992
VIRNO, Paolo A grammar of de the multitude New York – Los Angeles: Semiotext(e), 2004