5 O PACOTE “ANTICRIME”
A Lei nº 13.964/19, que ficou conhecida como Pacote “Anticrime”, corresponde à mais recente alteração da legislação processual penal.
Ganha destaque pelo número de diplomas normativos que alterou, pela regulamentação de novos institutos (juiz das garantias e acordo de não persecução penal) e positivação de outro já existente (audiência de custódia), mas principalmente pela intenção de avançar no sentido da democratização do processo penal.
Esta sessão é dedicada ao estudo e ao desenvolvimento de uma análise crítica sobre os efeitos de mais uma reforma fragmentada à lei processual penal, mas que, pelo menos em um primeiro momento, faz crer que não se trata de somente “mais uma” reforma, comprometendo-se em estabelecer o tão aguardado processo penal acusatório.
{C}5.1 {C}O projeto original (PL nº 822/19)
Inicialmente, para melhor compreensão de certos aspectos da chamada Lei “Anticrime”, cabe aqui uma breve análise de sua origem e histórico.
Proposto pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Fernando Mouro, o projeto de lei intitulado Pacote “Anticrime” (PL nº 822/19) surge como proposta de enfrentamento do aumento da criminalidade, em especial a corrupção e o crime organizado, questões estas que ganharam grande destaque midiático e popular desde a deflagração da Operação “Lava-Jato”.
Apresentado ao Congresso Nacional Pelo Poder Executivo em 19 de fevereiro de 2019, o projeto original visava o endurecimento das normas penais e processuais penais, com a alteração de 14 leis, visando o estabelecimento de medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa. Em matéria processual, os seus principais pontos eram a possibilidade de execução da pena após a condenação em segundo grau e a introdução de versões do plea bargaining.
A exposição de motivos alertava sobre o aumento da criminalidade no país, uma vez que seria “[...] possível afirmar que nunca o Estado brasileiro se viu tão acuado pela criminalidade [...]”, e que “o Brasil atravessa a mais grave crise de sua história em termos de corrupção e segurança pública”. Assim, as reformas propostas teriam como finalidade a adequação do ordenamento jurídico pátrio a uma nova realidade, contudo, respeitando as previsões e garantias constitucionais.
Em que pese a promessa de observância dos postulados constitucionais, o projeto propôs polemicas modificações de questionável constitucionalidade. A título de exemplo pode ser citada a inserção do artigo 395-A, que previa possibilidade de negociação de acordo para aplicação imediata da pena, entre o recebimento da denúncia ou queixa-crime e o início da instrução, sem observação do devido processo legal, abrangendo todas as espécies de crime{C}[4].
Pode-se, assim, concluir que a ideia original do Pacote “Anticrime” não teve como objetivo inicial contribuir em alguma medida no desenvolvimento de bases processuais penais adversariais. Pelo contrário, o PL nº 822/19 seguiu a velha fórmula de propostas de reformas legislativas que apelam ao recrudescimento penal e processual penal como solução para a violência[5], remetendo a ideais autoritários e ao direito penal do inimigo.
Ademais, os avanços introduzidos pelo projeto aprovado (Lei 13.964/19) se devem, em grande parte, às emendas legislativas ao projeto inicial (LIMA; RENATO BRASILEIRO DE, 2020, p. 104).
5.2 A Lei nº 13.964/19 e seus avanços
De acordo com o que já foi destacado no presente trabalho, a proposta inicial da Lei “Anticrime” foi elaborada isoladamente pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública. Em conformidade com seus objetivos democráticos, o processo legislativo proporcionou em certa medida o necessário debate e a participação de uma pluralidade de ideias.
Durante a tramitação legislativa, diversos pontos do Pacote “Anticrime” foram rechaçados, inclusive aqueles tidos como centrais, sendo desconstruído pelo Congresso Nacional.
De tal forma, o projeto de reformas acabou tomando novos rumos e, por fim, foi sancionado e publicado no dia 24 de dezembro de 2019, passando a vigorar no dia 23 de janeiro de 2020.
O texto aprovado é composto por algumas medidas iniciais do Ministério da Justiça e Segurança Pública, de uma comissão de juristas coordenada por Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal de Justiça, e por alterações da Câmara dos Deputados. Demais disso, foram aproveitados os debates acerca do Projeto do Novo Código de Processo Penal (PLS nº 156/09) para inclusão de certas disposições (NOVO; BENIGNO NÚÑES, 2020).
De fato, algumas alterações introduzidas pela lei em questão demonstram preocupação e esforços legislativos para entregar uma versão da reforma mais alinhada aos valores democráticos e constitucionais.
O melhor exemplo disso, indubitavelmente, foi a inserção do artigo 3º-A ao Código de Processo Penal (“O processo penal terá estrutura acusatória...”), cuja revisão não fazia parte do projeto original, mas inspirou-se no texto da PLS nº 156/09 (LIMA; RENATO BRASILEIRO DE, 2020, p. 104). O dispositivo, enfim, encerra os debates acerca de qual seria o sistema processual penal adotado por nosso ordenamento jurídico, consagrando de forma expressa a adoção do modelo acusatório.
Buscando reestruturar o processo penal brasileiro, a Lei nº 13.964/19 introduziu ainda outros dispositivos que avançam nesse sentido. Embora a eficácia de vários deles se mantenha suspensa em razão da liminar concedida nas ADI's nº 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, alguns são dignos de nota.
Em consonância com a Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 7º, 5, do Decreto nº 678/92), a Lei “Anticrime” positivou o regramento das audiências de custódia por meio dos artigos 310 e 287, do Código de Processo Penal, garantindo o controle da legalidade e a avaliação da necessidade ou não da prisão cautelar.
Andou bem o legislador ao modificar as regras sobre o arquivamento do inquérito policial (artigo 28 do Código de Processo Penal), afastando o indesejável atuação do magistrado no controle sobre a deliberação do Ministério Público, com a possibilidade agora de recurso do ofendido. Assim, reposicionou os sujeitos processuais aos seus devidos lugares, de forma a impedir que o juiz emita antecipadamente qualquer juízo de valor probatório (PRADO; GERALDO, 2005, n.p).
Ao artigo 157 adicionou-se o §5º, buscando preservar a imparcialidade do julgador ao impedir que aquele que teve contato com uma prova ilícita seja o mesmo a proferir a sentença.
Ainda no sentido de preservar a idoneidade dos julgamentos, passou a contar do rol de nulidades do artigo 564 o inciso V, que torna nula a decisão judicial carente de fundamentação.
Por último, não poderia deixar de ser destacado a adição denominado “Juiz das Garantias”.
Incluiu o já referido artigo 3º-A, seguido dos artigos 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F, que trouxeram o juiz das garantias. De acordo com os dispositivos, o magistrado atuará como garantidor da legalidade da investigação criminal, salvaguardando os direitos individuais.
A figura do juiz das garantias atuará no curso do inquérito policial com amplos poderes para a promoção do controle da legalidade, devendo zelar pelos direitos do preso, determinar o trancamento do procedimento quando não houver fundamento razoável para que prossiga etc.
Em que pese também tenha lhe sido o poder de agir e de determinar a produção de provas, tal fato não gerará perplexidades porque suas funções se limitam à fase inquisitiva, e cessam com o recebimento da denúncia, a partir de onde outro juiz atuará no decorrer do processo penal.
O objetivo é claro.
A atividade de um magistrado durante as investigações, além de evitar ilegalidades e abusos, manterá o julgador totalmente afastado da atividade investigatória e livre e preservará sua imparcialidade.
O novo instituto está em plena consonância com o sistema acusatório incorporado pela Constituição Federal, em observância a rígida separação das posições dos sujeitos processuais (LIMA; RENATO BRASILEIRO DE, 2020, pg. 107). Somente quando o julgador é mantido longe da produção das provas é que pode garantir a paridade de armas e decisões justas.
Feitas tais observações, para os fins a que se presta este trabalho importa analisar em que grau a minirreforma promovida pelo Pacote “Anticrime” contribuiu na busca pela efetivação do sistema penal acusatório no Brasil.
5.3 {C}Temos agora um sistema processual penal de bases acusatórias?
A gestão das provas é um aspecto fundamental na caracterização de um modelo processual penal.
De acordo com Fiori (2010), o sistema acusatório pressupõe que o magistrado não se envolva com a atividade probatória, reservando-se à posição de espectador, de sujeito processual imparcial.
No processo penal adversarial está estabelecido de forma rígida a separação entre as figuras do julgador, do acusador e do defensor, tal como previsto na Constituição Federal de 1988, que concebeu a figura do magistrado como a de um garantidor dos direitos individuais fundamentais, e a do Ministério Público como a de órgão acusador que possui a titularidade da ação penal pública. Dessa maneira, o Estado-juiz é afastado de qualquer atividade que não corresponda à sua posição como julgador.
Como anota Lopes Jr. (2020), o respeito ao actum trium personarum não basta para a concretização do processo penal acusatório, uma vez que a separação de funções processuais implica a atribuição da iniciativa probatória às partes. Portanto, o juiz não deve assumir a atividade instrutória, pois esta pertence às partes, e se assim fizesse estaria se sobrepondo à posição da defesa e da acusação.
Nesse seguimento, a redação do artigo 3º-A é apropriada e animadora, pois está em consonância com o princípio acusatório e as normas constitucionais, ao prever que serão “vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.
Nada obstante, não se pode ignorar o quão paradoxal soa afirmar a estruturação de um modelo processual penal acusatório a partir uma legislação originariamente inquisitiva como o vigente Código de Processo Penal.
Certamente a reforma poderia ter sido mais abrangente nesse sentido, e revogado expressamente os poderes instrutórios que a legislação infraconstitucional confere ao julgador. Nessa linha, cito aqui o artigo 196 do Código de Processo Penal, permite que, a todo tempo, o magistrado poderá proceder de ofício ao interrogatório; o artigo 209 admite que o juiz ouça outras testemunhas além das arroladas pelas partes; o artigo 234 permite ao julgador determinar de ofício a juntada aos autos de documentos; em, especial, o inciso I, do artigo 156, que possibilita ao juiz ordenar de ofício a produção de provas mesmo durante o inquérito policial.
A referida disposição, acrescentada pela Lei nº 11.690/08, sempre foi alvo de críticas por seu caráter nitidamente inquisitivo, em que o julgador assume função que cabe ao Ministério Público e à Polícia Judiciária, na busca por elementos informativos.
A questão pode se tornar um problema a partir do momento em que surjam opiniões pela mitigação do art. 3º-A (LOPES JUNIOR; AURY, 2020, p. 54). Crer que os poderes judiciais previstos constitucionalmente são necessários para garantir a maior efetividade das investigações, usando para tanto o afastamento da inviolabilidade de domicílio, permissão de interceptação telefônica e expedição de mandado de prisão, constitui grave erro (FIORI; ARIANE TREVISAN, 2010, p. 74). Significa resgatar práticas inquisitivas, ligadas ao mito da “verdade real”. O juiz não é garante da eficiência das investigações, mais dos direitos e princípios constitucionais ligados ao processo.
Admitir tal prática seria aceitar o julgamento prematuro, pondo em xeque a imparcialidade do julgador e a isonomia entre acusação e defesa. Na lição de Coutinho (2009) a atividade jurisdicional é posta em risco quando ao juiz é dado o poder instrutório, mesmo na fase inquisitiva, vez que ao assumir uma função tipicamente acusatória o julgador volta-se à acusação. Por conseguinte, julgará de forma parcial, pois acaba por formar seu convencimento sob a perspectiva do acusador.
Ora, de certo que a construção das novas bases acusatórias do processo penal brasileiro deve passar, precipuamente, pelo reposicionamento e adequação da figura do juiz ao lugar que lhe é conferido no Estado Democrático de Direito. Afastar o julgador da função instrutória não significa suprimir suas atribuições jurisdicionais (FIORI; ARIANE TREVISAN, 2010, p. 71), e não se confunde com a busca por esclarecimentos acerca das provas produzidas pelas partes.
O fim último da configuração acusatória é preservar o julgamento imparcial, e a finalidade deste é preservar a igualdade entre acusação e defesa, tornando o processo penal confiável e justo.
Assim, o artigo 159, I, do Código de Processo Penal, juntamente com os demais artigos que acolhem a atuação judicial de ofício na produção de provas, são incompatíveis com o novo artigo 3º-A, e devem ser entendidos como tacitamente revogadas nos termos do artigo 2o, § 1o, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Decreto-Lei nº 4.657/42 (LIMA; RENATO BRASILEIRO DE, 2020, pg. 42). De outro modo não poderia ser, sob pena do esvaziamento do novel dispositivo.
Outro demérito da lei em questão são os resquícios que apresenta do projeto original (PL nº 822/19), o qual, conforme já observado, em nada se coaduna com o ideal de um processo penal adversarial.
Pode ser citada aqui a nova redação do artigo 492, I, alínea “e”, do Código de Processo Penal, cuja previsão é semelhante à modificação pretendida pelo Anteprojeto da Lei “Anticrime”[6], porém menos abrangente. Permite a execução provisória da pena no procedimento do Tribunal do Júri, caso haja condenação igual ou superior a 15 anos de reclusão. Prevê ainda “sem prejuízo de recursos que vierem a ser interpostos”, ou seja, cria uma exceção ao efeito suspensivo que em geral é atribuído ao recurso de apelação.
Em que pese discussões recentes acerca do tema, o Supremo Tribunal Federal julgou as ADC’s nº 43, 44 e 54 firmando nova tese no sentido de que a execução provisória da pena após o acórdão condenatório em segundo grau é inconstitucional, em homenagem ao princípio da presunção de inocência previsto no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal e artigo 283, do Código de Processo Penal. Ademais, preserva-se assim os princípios do devido processo legal, nos termos do artigo 5º, LIV, da CF, bem como o princípio do duplo grau de jurisdição, previsto no artigo 8, II, “h”, da Convenção Americana de Direitos Humanos e implicitamente na Constituição Federal.
Nesse contexto, o artigo 492, I, alínea “e”, do Código de Processo Penal, já nasce em desconformidade com as previsões constitucionais. Consegue ainda ser mais problemático do que o caso julgado pela Corte Suprema, visto que possibilita a execução da pena logo após a sentença condenatória de primeiro grau.
Há nesse ponto uma grande contradição no texto da reforma. Compromete com a edificação de um modelo processual penal adversarial, em que o acusado é tido como sujeito de direitos, enquanto viola os direitos processuais mais básicos, à semelhança do que outrora ocorria nos procedimentos inquisitivos (PRADO; GERALDO, 2005, n.p).
Não poderia deixar de ser salientado que a Lei nº 13.964/19 segue a velha tradição das reformas parciais, as quais foram feitas aos montes desde que o Código de Processo Penal de 1941 entrou em vigor, a fim de reparar certos pontos na legislação processual penal.
Em sua maioria, foram projetos legislativos elaborados e levados a cabo por grupos e comissões diversas, buscando atender à diferentes demandas e objetivos diferentes, e no mais das vezes sem a participação de profissionais e acadêmicos de direito (LOPES JUNIOR; AURY, 2020, p. 553). Nesse passo, nem sempre tem se obtido o aperfeiçoamento legal, mas sim uma série de normas desconexas uma com as outras, e ainda mais com o texto original do Código de Processo Penal. Como resultado do descompasso entre essa série de reformas pontuais, a interpretação da norma processual penal sob uma mesma lógica e conjunto de princípios resta cada vez mais prejudicada (CHOUKR; FAUZI HASSAN, 2002, p. 92-93).
Volto a ressaltar que o Pacote “Anticrime” apresenta sérios pontos de contradição, ignorando a existência de diversos dispositivos legais em oposição ao princípio adversarial, e que podem atrasar a efetiva observação ao artigo 3º-A, do Código de Processo Penal, na disparatada hipótese de manutenção em certa medida dos poderes instrutórios do magistrado. Além disso, a nova previsão do artigo 492, I, alínea “e”, do Código de Processo Penal, representa verdadeiro retrocesso quanto aos princípios garantistas.
Não se pode negar o notável avanço concebido pela Lei nº 13.964/19, e por isto espera-se que a eficácia dos trechos suspensos seja reestabelecida, parece pouco provável que as controvérsias que cercam o tema do sistema processual penal brasileiro se encerrem por aqui, vez que, por todos os aspectos expostos, a previsão expressa da adoção do sistema acusatório corre o risco de permanecer como uma mera formalidade.
Por fim, cabe destacar, como fez Fiori (2010), que mudança legislativa alguma poderá, por si só, fazer com que se abandone antigas práticas inquisitivas, pois o processo penal concretamente acusatório ainda dependerá da adequação desta nas mãos do aplicador do direito.