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O direito a morte digna

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17/01/2021 às 16:50
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5. Autonomia da vontade do paciente e a morte digna

As leis já aprovadas que versam sobre o direito do paciente à uma morte digna representam ato em prol da dignidade e de respeito à autonomia de vontade do paciente, de sorte a legitimar a ação do médico em proporcionar uma morte digna ao seu paciente e em respeitar sua autonomia sobre o próprio corpo. Dessa forma, isso significa cuidar da integridade do ser humano, respeitando sua vontade e sua natureza.

Sobre a autonomia da vontade discorre Ronald Dworkin estabelecendo que a autonomia de qualquer indivíduo está diretamente relacionada com a sua integridade, independentemente de suas escolhas, valores ou percepções que possam ter de si mesmas. Defendendo a doutrina da “autonomia precedente”, ele conclui, que “o direito de uma pessoa competente à autonomia exige que suas decisões passadas sobre como devem tratá-la em caso de demência sejam respeitadas mesmo quando contrariem os desejos que venha a manifestar em uma fase posterior de sua vida”. Quer dizer, deve ser respeitado o modo pelo qual o individuo se desenvolveu, cultuou sua personalidade, além dos valores éticos, culturais e religiosos acumulados durante a sua própria vida.[23]  

No contexto da morte com intervenção, deve prevalecer a idéia de dignidade como autonomia. Além do fundamento constitucional, que dá mais valor à liberdade individual do que às metas coletivas, ela se apóia, também, em um fundamento filosófico mais elevado: o reconhecimento do indivíduo como um ser moral, capaz de fazer escolhas e assumir responsabilidades por elas.[24]

É exatamente em face do respeito à autonomia da vontade do paciente que é possível admitir, por exemplo, que a vida de uma pessoa acometida de uma doença terminal, não seja prolongada à custa de tratamento que imponha um sofrimento desproporcional aos benefícios esperado, impondo-se o prolongamento da vida sem nenhuma qualidade.

Assim, as leis normatizando a forma pela qual deva ser respeitado o consentimento livre e informado do paciente, consistem, fundamentalmente, em respeitar a vontade do paciente, atual ou antecipada, sobre como deseja ser atendido no final de sua vida. Para isso é imprescindível que o ordenamento jurídico garanta ao paciente o direito de aceitar ou rejeitar determinados tratamento e eleger outros, cujas decisões podem até incluir a forma como se deseja morrer.


6. Conclusões

De tudo quanto foi exposto, conclui-se que fixar diretrizes para o tratamento de doentes terminais respeitando-se sua vontade, ou de seus familiares mais próximos, quanto aos métodos artificiais de sobrevida, é uma imperiosa necessidade decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana. Isso porque toda pessoa é digna só por existir, mas essa dignidade, que antecede o seu próprio nascimento, acompanha-a por toda a vida e deve ser garantida, inclusive, em seu leito de morte.

Não se trata de jurisdicizar a eutanásia em suas várias formas, nem muito menos de normatizar o suicídio assistido, pois formas diferentes. Também não se trata de permitir a morte, mas de garantir a autonomia do paciente frente às opções de tratamento oferecidos pelo médico em situações em que o tratamento apenas irá prolongar o sofrimento do enfermo e de seus familiares, nos casos de estado terminal ou incurável de saúde.

Assim, a iniciativa e aprovação de leis que regulem a “morte digna” deve ser aplaudida como uma forma de permitir que as pessoas, frente a situações irreversíveis de saúde, possam optar por escolher uma forma digna de viver a própria morte.


7. Bibliografia

ANDORNO, Roberto. Bioética y dignidad de la persona, 2ª. ed. Madri: Editorial Tecnos, 2012.

BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. Dignidade e autonomia individual no final da vida. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2012-jul-11/morte-ela-dignidade-autonomia-individual-final-vida>

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

FARIA, Alessandra Gomes de; CABRERA, Heidy de Avila. Eutanásia: Direito à morte digna. In AZEVEDO, Álvaro Villaça e LIGIERA, Wilson Ricardo (Coord). Direitos do paciente. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 488-507.

FRANCO MONTORO, André. Cultura dos direitos humanos in Direitos Humanos: legislação e jurisprudência (Série Estudos, n.º 12), Volume I. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1999.

GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Daño moral por muerte. Buenos Aires: Astrea, 2010.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 16ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.

MELO, Nehemias Domingos de. Lições de Direito Civil – teoria geral, 4ª. ed. São Paulo: Rumo Legal, 2018.

MOLD, Cristian Fetter. Apontamentos sobre a lei andaluza de direitos e garantias da dignidade da pessoa durante o processo de morte. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=614>, acesso em 14/10/2012.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. 2ª. ed., São Paulo: Atlas, 2002.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 3ª. ed. São Paulo: Max Limonard, 1997.

_____. Temas de direitos humanos, 6ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Manual de filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2004.

SENISE LISBOA, Roberto. Manual de direito civil – teoria geral do direito civil, 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v.1.

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TINANT, Eduardo Luis. Reflexiones sobre la ley de muerte digna. Buenos Aires: Sup. Esp. Identidad de gênero, 2012 (mayo), 28/05/2012, 141.

_____. Bioética jurídica, dignidade de la persona y derechos humanos, 2ª. ed. Buenos Aires: Editorial Dunken, 2010


Notas

[1] MELO, Nehemias Domingos de. Lições de direito civil, p. 62.

[2] MORAIS, Alexandre. Direito Constitucional, p. 61.

[3] GONZALEZ, Matilde Zavala de. Daño moral por muerte, p.3.

[4] FARIAS, Alessandra Gomes e CABRERA, Heidy de Avila. Eutanásia: Direito à morte digna in Direitos do paciente, p. 493.

[5] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 9.

[6] COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p.67.

[7] RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Manual de filosofia do direito, p. 361.

[8] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 129.

[9] Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948

[10] Nesse sentido, Roberto Senise Lisboa, Manual de Direito Civil, p. 73

[11] PIOVESAN, Flavia. Temas de direitos humanos, p. 48.

[12] FRANCO MONTORO, André. Cultura dos direitos humanos, p. 28.

[13] MORAIS, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada, p. 16.

[14] ANDORNO, Roberto. Bioética y dignidad de la persona, p. 72.

[15] Apontamentos sobre a lei andaluza de direitos e garantias da dignidade da pessoa durante o processo de morte.IBDFAM, Belo Horizonte, 31 maio 2010, p. 1. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=614>

[16] Bioética y dignidad de la persona, p. 155.

[17] Além da mencionada  lei aprovada na Argentina, outros países já adotavam a mesma media, dentre eles: Holanda, Bélgica e Luxemburgo foram os primeiros países a decidir regulamentar a morte digna. Três estados dos EUA a permitem, assim como a Suíça.

[18] Mais de duas décadas após a legalização da prática, em 2018 o Governo Colombiano, por ordem do Tribunal Constitucional, preencheu uma lacuna: adotou normas regulamentares para a morte digna nos casos envolvendo menores de idade.

[19] Cf. Eduardo Luis Tinant. Reflexiones sobre la lei de muerte digna, p. 141.

[20] TINANT, Eduardo Luis, Reflexiones sobre la lei de muerte digna, p. 141

[21] https://www.terra.com.br/noticias/brasil/pacientes-poderao-decidir-por-morte-digna-em-caso-de-situacao-terminal,aa51dc840f0da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html

[22] Bioética jurídica, dignidade de la persona y derechos humanos , p. 108.

[23] DWORKIN, Ronald.Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais, p. 325.

[24] BARROSO, Luís Roberto e MARTEL, Letícia de Campos Velho. Dignidade e autonomia individual no final da vida. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2012-jul-11/morte-ela-dignidade-autonomia-individual-final-vida>

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Sobre o autor
Nehemias Domingos de Melo

Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). Professor convidado nos cursos de Pós-Graduação em Direito na Universidade Metropolitanas Unidas (FMU), Escola Superior da Advocacia (ESA), Escola Paulista de Direito (EPD), Complexo Jurídico Damásio de Jesus, Faculdade de Direito de SBCampo, Instituo Jamil Sales (Belém) e de diversos outros cursos de Pós-Graduação. Cursou Doutorado em Direito Civil e Mestrado em Direitos Difusos e Coletivos, É Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Tem atuação destacada na Ordem dos Advogados Seccional de São Paulo (OAB/SP) onde, além de palestrante, já ocupou os cargos membro da Comissão de Defesa do Consumidor; Assessor da Comissão de Seleção e Inscrição; Comissão da Criança e do Adolescente; e, Examinador da Comissão de Exame da Ordem. É membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Ed.IOB – São Paulo) e também foi do Conselho Editorial da extinta Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor (ed. Magister – Porto Alegre). Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo Legal e, dentre os quais, cabe destacar que o seu livro “Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum”, foi adotada pela The University of Texas School of Law (Austin,Texas/USA) e encontra-se disponível na Tarlton Law Library, como referência bibliográfica indicada para o estudo do “dano moral” no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Nehemias Domingos. O direito a morte digna. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6409, 17 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87970. Acesso em: 26 abr. 2024.

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