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As Declarações de Direitos e o seu distanciamento da realidade: reflexões a partir de um atentado terrorista

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09/04/2024 às 08:23

Resumo:


  • O presente trabalho analisa a relação entre os atentados terroristas na França em 2015 e a crise de legitimação dos direitos humanos universais não concretizados para grande parcela da população.

  • O discurso de direitos humanos, que não se concretiza no cotidiano, pode levar a atos de violência e impor à elite a concessão de benesses em favor dos menos favorecidos.

  • Os direitos humanos, muitas vezes, são promessas vazias que servem para controlar ideologicamente a população, mas cuja efetividade é limitada, podendo levar a convulsões sociais em sociedades desiguais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3. O DIREITO E O CUMPRIMENTO DO SEU PAPEL SOCIAL

A essa altura, impõe-se uma indagação: o Direito vem cumprido o seu papel na atualidade? A resposta é sim, dentro da proposta de efetivação do próprio Direito, visto como norma dotada da possibilidade de ser concretizada mediante coerção oriunda do Estado.

Não se pode dizer que o Direito não goza de eficácia, quando as declarações de Direitos Humanos, por exemplo, bem como as declarações de direitos presentes nos diversos textos constitucionais, não se encontram desempenhando a contento o seu papel. Isto é, na verdade, um engano do observador. Esses direitos presentes em tais documentos, não são direitos reais, são meras promessas voltadas ao amortecimento de conflitos na sociedade, cujos membros pensam possuir determinadas garantias, quando na verdade são destinatários de meras promessas, cuja efetividade é praticamente inexistente.

Mencionar a existência de direitos, como saúde, moradia e alimentação, para quem se encontra doente e sem assistência, desabrigado ou faminto chega a constituir uma violência moral contra o indivíduo. No entanto, essa postura é adotada diariamente pelos Estados. E isso não é feito porque o modelo de Estado Capitalista é mais cruel do que outros que já existiram no passado. Na verdade, o discurso em forma de promessa dos dominantes em relação aos subordinados na escala social sempre foi uma técnica utilizada nos mais diversos momentos históricos.

Nas sociedades escravagistas da antiguidade, por exemplo, a condição de escravo era justificada pela existência de uma determinada ordem cósmica que definia a posição dos homens na sociedade. Para isso, justificações filosóficas ou religiosas eram utilizadas, de forma que, não obstante a grande superioridade numérica de subalternos em relação a quantidade de dominantes (o que viabilizaria o êxito de possíveis revoltas), a quantidade delas em tais sociedades foram bastante diminutas e geralmente limitadas a uma pequena quantidade dos explorados que se insurgiram contra as condições de vida a que eram submetidos15.

No Feudalismo, por sua vez, com a divisão social em estamentos, a ordem das coisas era mantida com base no forte discurso religioso que predominava na sociedade, exercendo a Igreja Católica a função de amortecedora de eventuais conflitos que pudessem surgir.16

Com a rejeição crescente da posição social do homem definida segundo uma ordem cósmica ou divina, as sociedades capitalistas atuais buscaram encontrar outros mecanismos de dominação discursiva voltados a assegurar a estabilidade social num contexto de fortes diferenças econômicas entre os indivíduos. Esse papel vem sendo legado às declarações de direitos, que muito prometem e pouco concretizam em favor dos menos favorecidos.

A dimensão concretizadora dos direitos, quer eles estejam presentes em documentos internacionais de direitos humanos ou nos próprios textos constitucionais, depende da capacidade reivindicatória dos mais diversos grupos sociais, pois os que se encontram no papel de dominantes não fazem concessões sem que sejam compelidos a isso.

Dessa forma, o aspecto de promessas vazias que ostentam os direitos declarados persistirá, a não ser que os integrantes do topo da pirâmide sejam forçados a fazer concessões em nome da manutenção da organização social que os beneficia.

No entanto, a capacidade de reivindicação dos explorados pelo sistema político-econômico será sempre proporcional a conscientização do papel que eles ocupam na sociedade. Essa tomada de consciência precisa ser acompanhada pelo interesse de associação com os demais indivíduos que estão na mesma situação, viabilizando o surgimento de grupos de reivindicação que, à medida que se tornam maiores, podem lograr êxito em alterar a própria forma de organização da sociedade, tal como aconteceu, por exemplo, na Revolução Francesa de 1789 e na Revolução Russa de 1917.

Portanto, é necessário fazer a diferenciação entre o que é Direito efetivo, que se impõe coercitivamente a todos os seus destinatários, e o que é direito ideológico (se é que assim o podemos chamar), que representa na sociedade o papel de meras promessas, cuja concretização sempre fica relegada a segundo plano, albergando-se em justificativas, por exemplo, como a inexistência de recursos financeiros disponíveis para que o direito prometido possa ser usufruído pelos indivíduos dele supostamente destinatários.

Esse “direito” em forma de promessa, presente nos mais diversos documentos internacionais de Direitos Humanos, bem como nas declarações de direitos de muitos textos constitucionais dos países do Ocidente é mero discurso, sendo necessário, para que alcance alguma efetividade, que grupos de pressão se formem dentro da sociedade, com a finalidade de compelir os integrantes dos estratos mais favorecidos da sociedade a fazerem concessões, pois, do contrário, eles continuarão como promessas vazias e, sendo normas sem capacidade de imposição aos destinatários mediante coerção, direitos não podem ser considerados, pois lhes faltará a indispensável eficácia.


4. OS SINAIS DE ESGOTAMENTO DAS PROMESSAS DE DIREITOS COMO FATOR DE CONTENÇÃO DOS CONFLITOS NUMA SOCIEDADE DESIGUAL

Iniciamos estas reflexões com uma breve menção aos episódios ocorridos no início de janeiro de 2015 envolvendo os irmãos Cherif e Said Kouachi e Amedy Coulibaly, cidadãos franceses que supostamente deveriam se encontrar integrados ao modelo de sociedade ocidental mas que, ao contrário disso, contra ela se insurgiram e praticaram atos terroristas em suposta defesa da religião muçulmana e do seu profeta Maomé.

A indagação que se coloca é o que teria motivado pessoas supostamente inseridas na sociedade francesa atual, construída sob o famoso lema da Revolução Francesa de 1789, a se insurgirem contra o seu país?

Embora pudéssemos dirigir nosso enfoque para questões relativas a diferenças entre culturas, conflitos entre religiões e outros temas similares, preferimos considerar a situação econômica a que os descendentes de imigrantes se encontram expostos na França como uma explicação plausível.

Quando se avalia esse contexto econômico, chega-se à conclusão de que o direito à liberdade de exercício, por exemplo, de qualquer atividade econômica capaz de assegurar uma vida digna ao indivíduo, a igualdade de tratamento pelo Estado de todos cidadãos e a fraternidade que deveria existir no seio da sociedade, de forma que os menos favorecidos sejam prontamente assistidos em suas necessidades, constituem uma quimera, uma falácia, cujo amortecimento ideológico gerado pelas promessas de direitos, em especial em virtude da crise econômica vivenciada pela Europa na atualidade, encontra-se dando sinais exaurimento17.

Num contexto de convulsão social, é muito difícil dizer para pessoas famintas e desprovidas de atendimento às suas necessidades básicas, que elas possuem determinados direitos, cuja eficácia elas não enxergam em suas vidas. O papel do “direito” ideológico no amortecimento de conflitos por meio de promessas sem real concretude, é limitado. Quando as pessoas descobrem o quanto estão sendo enganadas por esse discurso, a semente da revolta, da rebelião, do anseio niilista de extirpação de todas as estruturas sociais existentes, começa a surgir.

Talvez sejam os efeitos do despertar da população do engodo ideológico produzido por um direito inexistente que supostamente asseguraria a felicidade de todos os indivíduos, que gerou em BURKE (2014) a perplexidade que ele externou quando se deparou com os rumos tomados pela Revolução Francesa de 1789.

Naquele momento histórico, a massa dos excluídos pode constatar que o reino existente, supostamente constituído para assegurar o bem-estar e a felicidade de todos, conduzido pela figura paternal de um rei, cujo único interesse seria servir ao seu povo, era uma falácia. O que na verdade existia era uma estrutura de opressão focada em assegurar os privilégios de uma minoria que era beneficiária do trabalho e da riqueza gerada pelo trabalho da maior parte da população.

Nesse despertar, não adianta tentar levar o povo à crença de que é possível a modificação dos rumos do Estado, corrigindo as suas distorções de forma servil e reverente, tal como BURKE (2014, p. 114-115) defendeu18. Quando a semente da revolta encontra terreno fértil, a explosão do magma da indignação popular é incontrolável.

É importante, por consequência, que não se atribua aos eventos ocorridos na França em janeiro de 2015 o perfil apenas de um suposto “choque de civilizações”, tal como pretendeu HUNTINGTON (1997). A capacidade de transmissão de informações na atualidade tem levado cada vez mais pessoas a enxergar o quadro de exploração e injustiça social a que se encontram relegadas, o que pode ser a semente para que revoltas, capazes de desconstruir as estruturas de Estados, disseminem-se por todo o mundo, independente do sistema político-econômico socialmente aplicado.

Por consequência, é fundamental que se leve em consideração que esse papel do “direito” que aqui chamamos de ideológico, desprovido da capacidade de ser efetivamente concretizado - uma vez que a sua finalidade é apenas prometer benesses como forma de amortecimento de insurreições entre a população alijada da maior parte dos benefícios do sistema - aparenta se encontrar em estágio de esgotamento, assim como se exauriram, no passado, por exemplo, o discurso de justificação da ordem social a partir da determinação divina.

Logo, se as concessões da classe dominante não se ampliarem, talvez o quadro de convulsão social que o mundo atualmente vivencia conduza à desconstrução do modelo econômico vigente, restando aos beneficiários dele, quando e se isso vier a ocorrer, apenas prantear sobre as suas cinzas, tal como BURKE (2014), que via o seu mundo monarquista e estruturado sob privilégios de nobres bem-nascidos consumido pelas chamas da Revolução Francesa.


CONCLUSÃO

Os Direitos Humanos, tal como os conhecemos na atualidade, não surgiram nos últimos cem ou duzentos anos, como muitas vezes se defende. Ao contrário, eles possuem as suas raízes na antiga doutrina do Direito Natural, que não desapareceu, porém sofreu um processo de metamorfose e adaptação, agregando-se conceitualmente à doutrina moderna dos Direitos Humanos.

Ao se analisar as diversas declarações de direitos, quer se façam presentes em documentos internacionais, quer estejam em textos constitucionais internos, verifica-se que elas, ao agregarem os chamados Direitos Humanos, fazem-no sem uma preocupação maior com a efetividade, constituindo, portanto, apenas um discurso de cunho ideológico, voltado a transmitir para os excluídos do usufrutos de tais benesses apenas a mensagem de que, uma vez eles vindo a serem titulares de fato dos direitos e garantias presentes em tais declarações, receberão a devida proteção do sistema jurídico. Enquanto isso não ocorre, devem, reverentemente, respeitar o exercício do direito garantido por quem já o incorporou ao seu patrimônio jurídico.

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Verifica-se, portanto, que da forma como a defesa dos Direitos Humanos se encontra concebida, em especial sob as luzes do Liberalismo, tem-se uma proteção de direitos a posteriori, uma vez que, somente após se tornar titular do direito é que o indivíduo passa a ter uma real proteção dele, haja vista que, no estágio anterior, ele é apenas detentor de promessas.

Essa faceta individualista presente nas diversas declarações de direitos tem como escopo basilar a defesa do direito de propriedade, assegurado como direito de primeira grandeza nos mais importantes documentos jurídicos ocidentais produzidos após 1789.

Dessa forma, o direito como discurso, presente nas diversas “declarações”, tem a finalidade de promover o amortecimento de conflitos sociais, uma vez que por meio delas se legitima a atuação do Estado no exercício da proteção da minoria que já é titular do direito declarado, ao mesmo tempo em que se produz uma contenção ideológica da maioria dos excluídos, que anseia se tornar futuramente detentores de direitos similares, oportunidade em que também poderão contar com a proteção do sistema jurídico.

No entanto, os diversos conflitos que se assiste atualmente na sociedade, leva-nos a concluir que esse papel de controle ideológico exercido por essas declarações de direitos está adentrando numa fase de exaurimento, pois com a difusão rápida de informações, um número crescente de indivíduos percebe que a forma de organização do sistema inviabiliza que eles, de fato, venham a ser titulares dos direitos garantidos, o que leva a convulsões sociais que despontam sob as mais diversas formas, sendo uma das mais letais na atualidade aquela que se reveste de extremismo religioso, tal como se assistiu no início de 2015 na França.

Com isso, percebe-se que a elite dominante necessitará fazer concessões mais amplas de direitos como forma de se autopreservar, pois, do contrário, um ambiente de revoltas violentas poderá se instalar, conduzindo a uma implosão do modelo atual de organização político-econômica em um futuro que pode estar próximo.


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Sobre o autor
Gilvânklim Marques de Lima

Doutor e mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Juiz Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Gilvânklim Marques. As Declarações de Direitos e o seu distanciamento da realidade: reflexões a partir de um atentado terrorista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7587, 9 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88179. Acesso em: 11 dez. 2024.

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