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As Declarações de Direitos e o seu distanciamento da realidade: reflexões a partir de um atentado terrorista

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09/04/2024 às 08:23
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A partir dos atentados terroristas de 2015 na França, observa-se como as promessas não cumpridas de direitos humanos podem minar a legitimação desses direitos e desestabilizar os sistemas jurídicos ocidentais pós-guerra

Resumo: O presente trabalho objetiva analisar, a partir dos atentados terroristas ocorridos no início de 2015 na França, como um sistema jurídico sedimentado em declarações com poucos reflexos no cotidiano de uma elevada parcela da população excluída do usufruto de direitos sociais, pode não ser capaz de se perpetuar. Tem-se como problema de pesquisa investigar qual a relação entre os atentados terroristas praticados na França no início de 2015 e o quadro de crise de legitimação do discurso de direitos humanos universais que não são concretizados para uma grande parcela da população. Como hipótese, considera-se que um quadro de direitos prometidos e nunca concretizados integralmente, pode representar o combustível capaz de implodir os sistemas jurídicos ocidentais do pós-guerra, se um cenário de concessões similares ao verificado durante o apogeu do Estado de Bem Estar Social na Europa, não for sinalizado pelas classes dominantes à crescente massa de excluídos. O método de abordagem adotado foi o indutivo e a documentação indireta foi a técnica de pesquisa utilizada, mediante consulta à bibliografia referenciada. Conclui-se que atos de violência como os discutidos no trabalho possuem raízes num quadro de insatisfação social com direitos prometidos e nunca concretizados, o que impõe às classes dominantes uma maior concessão de benesses em favor dos menos favorecidos, sob pena de implosão do sistema socioeconômico tal como o conhecemos.

Palavras-chave: Declarações. Direitos Humanos. Discurso. Dominação.

Sumário: Introdução; 1 Sinal de alerta em forma de atentado terrorista; 2 O direito como discurso ideológico; 2.1 Do Direito Natural ao “triunfo” dos direitos humanos; 2.2 Os Direitos Humanos e o individualismo; 2.3 As declarações de direitos como técnicas de dominação; 2.4 Existem direitos humanos universais?; 3 O Direito e o cumprimento do seu papel social; 4 Os sinais de esgotamento das promessas de direitos como fator de contenção dos conflitos numa sociedade desigual; Conclusão.


INTRODUÇÃO

Episódios violentos, como os atentados terroristas ocorridos na França no início de 2015, seguidos por diversos outros atos similares praticados em países do Ocidente nos últimos anos, de autoria de cidadãos desses próprios países, parecem sinalizar que a promessa de igualdade e paz social que as declarações de direitos proclamadas após a Segunda Guerra Mundial e dotadas de pretensões universais, gradativamente vêm se convertendo em discurso de difícil aceitação num cenário de supressão gradativa das bases do Estado de Bem Estar Social construído sobre as cinzas daquele conflito.

Investigar qual a relação entre os atentados terroristas praticados na França no início de 2015 e o quadro de crise de legitimação do discurso de direitos humanos universais que não são concretizados para uma grande parcela da população, constitui o problema desta pesquisa.

Como hipótese, considera-se que um quadro de direitos prometidos e nunca concretizados integralmente, pode representar o combustível capaz de implodir os sistemas jurídicos ocidentais do pós-guerra, se um cenário de concessões similares ao que se verificou durante o apogeu do Estado de Bem-estar Social na Europa não for sinalizado pelas classes dominantes à crescente massa de excluídos, a quem se vem negando direitos básicos, como, por exemplo, acesso à alimentação básica.

O objetivo da pesquisa volta-se a analisar como um discurso de direitos humanos que não se concretiza no cotidiano de grandes parcelas da população apresenta sinais de exaurimento, sendo os atos de violência praticados contra o modelo de organização da sociedade um reflexo desse esgotamento.

A pesquisa foi construída segundo uma abordagem indutiva, tendo sido adotada a documentação indireta como técnica de pesquisa, mediante consulta à bibliografia referenciada.


1. SINAL DE ALERTA EM FORMA DE ATENTADO TERRORISTA

O início do ano de 2015 foi marcado pela ocorrência de fatos que nos convidam à reflexão: no dia 07 de janeiro, os irmãos Chérif e Said Kouachi invadiram a sede de uma revista humorística francesa conhecida como “Charlie Hebdo” e assassinaram doze pessoas. Dois dias depois, também em Paris, Amédy Coulibaly invadiu uma mercearia judaica e, após fazer refém alguns clientes, foi morto pela polícia, não sem antes assassinar quatro das pessoas por ele mantidas como reféns2.

A justificativa utilizada pelos responsáveis pelos ataques à revista “Charlie Hebdo” seria a publicação de charges que, na visão dos muçulmanos, depreciariam a imagem de Maomé, considerado como profeta pela religião islâmica, não podendo, portanto, ser utilizado de forma jocosa por uma publicação. Quanto aos fatos envolvendo Amédy Coulibaly, a invasão do estabelecimento comercial judaico provavelmente teve vinculação com o persistente conflito entre árabes (adeptos da religião islâmica) e judeus, que atualmente habitam o Estado de Israel3.

Outro ponto que chama a atenção no ocorrido diz respeito a origem dos responsáveis pelos ataques. Não se trata de estrangeiros que adentraram ao território francês com a exclusiva finalidade de praticarem atos terroristas. Ao contrário, eles eram franceses, filhos de imigrantes que se encontravam, supostamente, inseridos na cultura local.

O palco dos acontecimentos também é emblemático. Trata-se da França, país que em 1789 foi sacudido por um movimento revolucionário que modificou as bases do pensamento ocidental, colocando por terra uma estrutura de governo monárquico- absolutista, fixando as balizas do pensamento político moderno e, por consequência, das formas e sistemas de governo que atualmente conhecemos. Pode-se dizer que a França foi o berço do liberalismo ou, pelo menos, o espaço no qual sua ideologia conseguiu se firmar de maneira mais ostensiva para, a partir daí, disseminar-se por todo o Ocidente, valendo-se, para tanto, de sua histórica Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

O próprio lema da Revolução Francesa (liberdade, igualdade, fraternidade) tem servido para sistematizar os direitos humanos, que geralmente são divididos em direitos que protegem a liberdade, buscam fomentar a igualdade e o espírito de cooperação entre todos os povos4.

Com o movimento revolucionário francês, teve início a disseminação pelo Ocidente da ideia de que existem direitos inerentes ao gênero humano, inalienáveis por natureza, cabendo ao Estado e aos demais indivíduos os respeitarem de forma praticamente sacra, sendo que, de tal respeito, adviria a felicidade de todo o gênero humano.

Mas, os ataques do início de janeiro de 2015, perpetrados por indivíduos supostamente inseridos na sociedade e cultura francesa sinalizam que nem todos estão felizes no berço revolucionário do liberalismo, o que nos conduz a refletir a respeito do papel que o Direito desempenha, em especial no que diz respeito a sua atribuição de conter os potenciais conflitos existentes na sociedade.


2. O DIREITO COMO DISCURSO IDEOLÓGICO

2.1. Do Direito Natural ao “triunfo” dos direitos humanos

Estamos vivenciando a época em que o Direito, em especial os Direitos Humanos, são colocados como resposta para todas as mazelas da humanidade. Se há encarceramento injustificado, logo se procura abrigo na necessidade de respeito ao direito à liberdade individual como arma contra a arbitrariedade estatal. Se há pessoas sem abrigo, famintas, doentes ou socialmente excluídas, argumenta-se que a resposta para todos esses problemas se encontra no respeito ao direito à moradia, à alimentação e à saúde, todos eles acolhidos sob o manto do respeito à dignidade da pessoa humana5. Os Direitos Humanos são postos como resposta para todas as mazelas sociais.

Parece que a simples menção ao direito no ordenamento jurídico já é suficiente para solucionar todos os problemas. O legislador brasileiro, por exemplo, quando confrontado com o crônico problema da falta de moradia no Brasil, encontrou a solução mágica: fez constar, por meio da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, o direito à moradia como um dos direitos sociais a integrar o texto da Constituição Federal. Problema solucionado. A moradia é um direito de cada brasileiro. Se não existem recursos financeiros ou interesse político em concretizá-lo, isso já é uma outra questão, pois o legislador já fez a sua parte e, de forma reverente, consagrou a moradia, direito social elementar, como integrante de primeira grandeza do metafísico conceito de dignidade da pessoa humana6.

DOUZINAS (2009, p.19), ao descrever o cenário do suposto triunfo dos direitos humanos, destaca que eles “são alardeados como a mais nobre criação de nossa filosofia e jurisprudência e como a melhor prova das aspirações universais da nossa modernidade, que teve de esperar por nossa cultura global pós-moderna para ter seu justo e merecido reconhecimento”.

Vê-se, portanto, que os Direitos Humanos integram a mesma raiz histórico- filosófica da qual se abeberou o Direito Natural, que constituiu, ao longo de muito tempo, um discurso de resistência ou de justificação de ordenamentos jurídicos diversos.

Quando se buscava confrontar o ordenamento jurídico, considerá-lo injusto ou contrário aos interesses do indivíduo, o Direito Natural servia como ferramenta de resistência, lastreando o argumento de que a prática do direito posto ou positivado, afrontava a um direito superior, de origem cósmica, divina ou racional, eterno e imutável, de forma que, uma vez desconsiderado pelo direito positivado, tornava este último ilegítimo e, por consequência, passível de ser resistido pelos eventuais prejudicados7.

Mas, por outro lado, quando se pretendia assegurar um quadro de submissão de todos em face do ordenamento jurídico do Estado, tornando-o imune a questionamentos, o mesmo discurso do Direito Natural era utilizado, desta vez para informar aos súditos que o direito positivado era uma mera transcrição do Direito Natural, eterno e imutável e, por consequência, superior aos próprios homens.

É por isso que, como lembra KELSEN (2005, p. 151), Kant defendia que qualquer resistência do povo em face do legislador seria ilegítima, pois o direito positivado seria uma mera transcrição do Direito Natural. Dentro dessa visão conservadora, pode-se dizer, valendo-se ainda das palavras de KELSEN (2005, p. 150), que “a resistência somente é justificável se o uso da força pelo governo não só for injusto mas também ‘ilegítimo’ – isto é, contrário não apenas ao Direito natural mas também ao Direito positivo.”

Verifica-se, portanto, que o Direito Natural constituiu ao longo do tempo um discurso, moldável de acordo com os interesses de quem o defendia, podendo servir de argumento para resistência ou justificação do ordenamento jurídico positivado.

Logo, como lembra VILLEY (2007, p.3), o Direito Natural não desapareceu no Século XIX, conforme foi anunciado por alguns teóricos. Ao contrário, ele recebeu uma nova roupagem e assumiu a atual configuração que os Direitos Humanos ostentam.

2.2. Os Direitos Humanos e o individualismo

Os direitos humanos, ao contrário do que defendem os seus entusiastas, não parece haver se distanciado muito do círculo discursivo em torno do qual o Direito Natural orbitou ao longo do tempo. O que se enxerga hoje é que aos Direitos Humanos se atribui uma faceta que muito os aproxima do papel de resistência que o Direito Natural já ostentou em seus primórdios.

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DOUZINAS (2009, p. 38), destaca que duas tendências assinalaram a passagem do Direito Natural clássico para a fase dos Direitos Humanos. Segundo ele, “a primeira transferiu o padrão de direito da natureza para a história e, com o tempo, para a humanidade ou a civilização. Este processo pode ser chamado de positivação da natureza.” Já a segunda tendência seria o que ele chamou de “legalização do desejo”. Nessa fase, “o homem foi transformado no centro do mundo, seu livre-arbítrio tornou-se o princípio da organização social, seu desejo infinito e irrefreável conquistou reconhecimento público."

O Direito Natural, portanto, foi humanizado ao se transformar nos direitos humanos tão mencionados na atualidade. Não existe mais uma ordem cósmica, divina, que inspira a positivação do direito. O que se tem, na atualidade, na formulação teórica dos Direitos Humanos, é um discurso no sentido de que o homem, ao nascer, traz consigo determinados desejos, anseios que devem ser tutelados pela ordem jurídica. Dentro dessa visão, o mundo, a organização da sociedade e tudo o mais, existe em função do ser humano, da sua dignidade e devem se voltar para satisfação desse ser desejante, que nunca estará completamente satisfeito.

É por isso que MARX (2010, p.48) argumenta que “os assim chamados direitos humanos, os droits de l’homme, diferentemente dos droits du citoyen, nada mais são do que os direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade (itálico no original).”

Para MARX (2010, p. 49-50), “a aplicação prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à propriedade privada.” Já a segurança “é o conceito social supremo da sociedade burguesa, o conceito da polícia, no sentido de que o conjunto da sociedade só existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e da sua propriedade (itálico no original).”

Os direitos humanos, em sua versão atual, fomentam o egoísmo. São os interesses individuais que precisam de satisfação, pois “o homem real só chega a ser reconhecido na forma do indivíduo egoísta, o homem verdadeiro, só na forma do citoyen abstrato” – itálico no original (MARX, 2010, p. 53).

Ao fomentar o individualismo, os Direitos Humanos, de inspiração burguesa, conseguem obstar qualquer ímpeto revolucionário, pois, como lembra LOSURDO (1998, p. 204), amparado nas lições de Haym, o individualismo se mostra como “a barreira mais eficaz não contra a conservação, mas contra a ‘revolução’”.

O que se verifica, portanto, é a existência de um discurso que pretende se arrogar a condição de norma de cunho universal, válido para toda humanidade, sem qualquer consideração relativa às diferenças culturais existentes entre os povos.

Mas os direitos humanos, norteados por uma visão associada ao Liberalismo8, encontram-se mais preocupados com a garantia da liberdade individual. Não é de somenos importância o fato de que a liberdade é colocada como o principal direito a ser tutelado pelo Estado mediante a não interferência nos negócios privados, devendo o Estado, apenas, assegurar a livre iniciativa de cada indivíduo.

Embora não se diga abertamente, mas o direito essencial a ser protegido segundo a visão do liberalismo é a propriedade privada. Desde a época em que prevalecia a doutrina do Direito Natural, a propriedade esteve no ápice dentre os direitos dignos de proteção. Kelsen (2005, p. 158), ao analisar esse contexto histórico, menciona que

(...), muitos dos seguidores da doutrina do Direito natural argumentam que um dos propósitos essenciais do Estado, isto é, do Direito positivo, é proteger o direito de propriedade estabelecido pelo Direito natural; e isso está além do poder do Estado, porque é contra a natureza abolir esse direito, que existe independentemente do Direito positivo.

Ainda segundo KELSEN (2005, p. 159), “não há direito absoluto à vida, mas há um direito absoluto à propriedade. A razão correta, implícita na natureza, ensina que a propriedade é ainda mais valiosa que a vida.”

A centralização do discurso de proteção dos direitos humanos na propriedade tem trazido dificuldades na universalização de tais direitos, uma vez que ele se torna monolítico e autoritário, pois não leva em consideração qualquer possibilidade de organização econômica de uma sociedade sem que haja a construção do sistema produtivo em torno da propriedade privada.

Os direitos humanos construídos a partir de um paradigma liberal fomentam o egoísmo, pois os interesses individuais acabam se sobrepondo aos anseios da coletividade. Quando se reclama, por exemplo, o atendimento do direito à saúde, à educação, à moradia, o indivíduo que o pleiteia não está interessado na universalização de tais direitos. O que ele pretende é o atendimento momentâneo e individualizado dos seus anseios sendo que estes, uma vez atendidos, satisfazem o pleito daquele indivíduo, o que lhe retira, na maioria das vezes, qualquer interesse em manifestar preocupação com a universalização do atendimento destes direitos em benefício da coletividade.

É por isso que, como lembra FEITOSA (2013, p. 93), “a luta pelos direitos humanos é a luta por sua concretização, é a luta para garantir os instrumentos de promoção da sociabilidade e não do isolamento e do egoísmo.”

Essa sistemática de promoção dos direitos humanos mediante promessas dirigidas ao indivíduo egoísta tem gerado um passivo impossível de ser atendido pelo Estado, tornando-os irreais (VILLEY, 2007, p. 5-6). Não existe orçamento estatal que possa garantir, por exemplo, tratamentos de “última geração” para todos os indivíduos que venham necessitar, independentemente da moléstia de que padeçam.

Com isso, ao prometer em excesso, levando em consideração os interesses particulares de cada indivíduo, os direitos humanos perdem concretude, tornando-se meras declarações voltadas a proteger quem já se encontra socialmente incluído ou ludibriar os excluídos, fazendo-os crer serem possuidores de direitos que estão bastante distantes de suas realidades.

O discurso se torna ainda mais vazio quando se considera o direito de propriedade, por exemplo. De nada vale garantir tal direito para quem se encontra sem acesso a ele. A proteção da propriedade dentro desse contexto, objetiva, apenas, tutelar quem já dispõe de propriedade privada, colocando-o a salvo de qualquer interferência de quem não possui acesso a tal direito.

Os Direitos Humanos norteados pelo liberalismo fomentam a proteção a posteriori deles, ou seja, os direitos são protegidos apenas em relação a quem já os possui, colocando-o a salvo da interferência dos despossuídos.

Dessa forma, quando se tutela o direito de propriedade, por exemplo, ele é assegurado aos proprietários, amortecendo nos despossuídos qualquer insurreição em face dele com a vazia promessa de que, no futuro, eles também poderão vir a se tornar proprietários e, por consequência, também terão a sua posição jurídica devidamente protegida pelo direito positivo.

Além disso, a presença do direito de propriedade dentro da Constituição cria no ordenamento jurídico uma limitação negativa para o legislador a qual, segundo a classificação de Bobbio, impossibilita que qualquer medida normativa venha a ser adotada de forma a violar o direito de quem já é proprietário (BOBBIO, 2014, p.63).

É preciso, portanto, levar em consideração que uma declaração de direitos, ainda que, na aparência, seja imbuída das mais respeitáveis intenções, pode trazer consigo o objetivo de assegurar situações jurídicas já consolidadas, colocando-as a salvo da interferência de qualquer indivíduo que por elas venham a ser prejudicados.

Adicionalmente, quando se declara a existência de direitos passíveis de proteção, cria-se a seguinte conjuntura: protege-se os interesses dos que já são detentores dos direitos declarados e, ao mesmo tempo, fomenta-se o anseio de acesso a tais direitos pelos despossuídos que, movidos pelo egoísmo fomentado pelo individualismo, passam a acreditar que, mediante seus próprios esforços, alcançarão no futuro, o acesso a tais benesses.

2.3. As declarações de direitos como técnicas de dominação

A técnica de declarar direitos, sem preocupação real com a sua efetividade, parece ser uma artimanha perfeita. Os direitos referidos são assegurados para quem já os possui e, em relação aos alijados das benesses, cria-se a ilusão de que poderão acessar a tais direitos no futuro e, uma vez tendo-os incorporado ao seu patrimônio jurídico, terão os seus interesses igualmente protegidos.

Em razão da baixa efetividade das declarações de Direitos Humanos, que oscilam no círculo de uma jurisprudência repetitiva e banalizada, os direitos que gozam de efetividade para os indivíduos no seu cotidiano continuam sendo uma espécie de concessão do grupo dominante (DOUZINAS, 2009, p. 21. e 36). Os processos revolucionários, que conduzem a substituição de uma classe dominante por outra trazem consigo o seu próprio ordenamento jurídico, legitimado a partir do modelo de produção normativa delineado pela nova ordem vigente9.

Logo, as declarações de direitos oriundas dos movimentos burgueses que se consolidaram no poder a partir de 1789, refletem os valores sociais e econômicos da burguesia, não sendo, por consequência, declarações de direitos válidas para todos os povos, em todas as culturas e sem limitação temporal.

Mas do que o produto de consciências humanas arrependidas em decorrência de atos de violência e massacres praticados, ensejando uma forma de ato penitencial, que busca resguardar uma tal suprema dignidade da pessoa humana, como defendeu COMPARATO (2013, p. 50), as declarações de Direitos Humanos buscam estruturar os valores considerados caros para o grupo dominante, servindo, por consequência, como norte para a estruturação do ordenamento jurídico.

É por isso que em todas as declarações de direitos produzidas após a consolidação da burguesia como classe dominante, a propriedade privada sempre esteve entre os direitos básicos a serem protegidos, ainda que dentro da sociedade existam grandes contingentes de desvalidos, sem qualquer acesso a tal direito ou a uma garantia real de que poderão usufruí-lo no futuro.

Com isso, as declarações de direitos são construídas com a finalidade de legitimar o ordenamento jurídico que protege o direito declarado para quem já o possui, sendo que, para os desamparados de tal direito, tais declarações servem apenas como uma promessa vazia, desprovida de qualquer efetividade.

2.4. Existem direitos humanos universais?

Nesse ponto, é preciso desmistificar a áurea de universalidade que os Direitos Humanos presentes nas declarações produzidas partir de 1789 buscam ostentar. Todas as declarações produzidas desde então representam apenas a consolidação textual de valores dominantes na sociedade ocidental que, travestidos de universais, buscam ser impostos aos demais povos, sem grandes considerações com as peculiaridades de cada cultura.

Os conflitos de valores que se assiste atualmente entre o Ocidente e o restante da humanidade não causam perplexidade quando se renuncia a uma visão defensora da existência de direitos válidos para todos os povos, tal como pretendido pelo universalismo. Por mais que consideremos os nossos valores como importantes e produtores de benesses para a humanidade, jamais poderemos impô-los a outros povos sem o estabelecimento de um diálogo intercultural sério, sem pretensões de dominação, ao contrário do que se assiste atualmente.

A cultura do outro, quando ostenta valores diferentes do Ocidente, é taxada de primitiva, merecendo, por consequência, ser combatida. Não se leva em consideração que os supostos Direitos Humanos declarados são produto de uma visão de mundo que não necessariamente é a melhor e, portanto, não pode excluir os valores presentes nas demais civilizações.

É preciso que seja disseminada a consciência de que os valores que se ocultam nas declarações de direitos não são universais, tal como se pretende difundir. Eles são mutáveis e, mesmo que estejam presentes em todas ou na maioria das culturas, a forma de aplicação ou mesmo de positivação nos diversos ordenamentos jurídicos é diferente e deve ser respeitada.

As divergências surgidas quando da construção do texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 bem demonstra que os valores e direitos nela consagrados não são universais. A proteção da propriedade presente neste documento foi objeto de repulsa dos países integrantes do então bloco socialista, que se recusaram a externar expressa anuência ao seu texto, optando pela abstenção10. Isso significa que esses países se encontravam na contramão da defesa dos direitos humanos? A resposta para essa indagação talvez não seja tão simples como não raras vezes se pretende fazer crer.

Talvez o núcleo da resposta deva ser buscado na constatação de que os direitos humanos presentes no texto da Declaração não eram tão universais como se pretendia. É sintomático o fato de que o enfoque primordial do texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 se encontrava centrado na proteção das liberdades individuais, valores bastante caros para a burguesia e o sistema econômico-filosófico que melhor a representa (o liberalismo). Já os direitos voltados à proteção social do indivíduo não mereceram a mesma preocupação, somente tendo sido objeto de pactos mais específicos na década 6011, quando já estava claro o esgotamento do Estado Liberal e a necessidade de concessão de direitos em favor das classes trabalhadoras, formando-se o que veio a ser conhecido como Estado de Bem-estar Social.

O Estado de Bem-estar Social nada mais foi do que uma concessão de direitos pela classe econômica e politicamente dominante no Ocidente. É falsa a ideia de que representou um novo modelo de Estado que substituiu o Estado Liberal. O que se verificou, na verdade, foi uma crescente insatisfação das classes operárias com as condições de exclusão e exploração a que eram relegadas, obrigando a classe dominante a fazer concessões, como forma de manutenção do statu quo.

Não houve, portanto, o surgimento de uma conjuntura político-social que tornou o ambiente fértil à proliferação de direitos humanos. À medida que se declarava direitos, como forma de amortecimento das insatisfações sociais, a violação destes mesmos direitos declarados persistia ou até se intensificava, a ponto de o Século dos Direitos (Século XX), ter sido também aquele no qual se perpetrou as suas mais cruéis violações (DOUZINAS, 2009, p. 21).

Dessa forma, quando as declarações de direitos, de eficácia praticamente nula, não se mostravam mais suficientes para amortecer os conflitos sociais e as medidas repressivas se exauriam sem maiores êxitos, então as classes dominantes passaram a fazer maiores concessões em favor dos despossuídos dos direitos declarados, sendo as benesses proporcionais aos níveis de organização e conscientização das classes trabalhadoras.

No entanto, não se pode jamais dizer que essa forma de tratamento dos conflitos sociais é um privilégio dos países capitalistas. No bloco das nações que formaram o eixo do socialismo real, a sistemática de tratamento também foi similar. À medida que se disseminava a ideia de que os negócios do Estado eram geridos em nome do povo, estruturava-se uma elite dominante, formada por burocratas membros do partido único que, apropriando-se do Estado, dele passaram a se utilizar em benefício próprio, em detrimento do povo, a quem coube, apenas, o papel de sustentar a estrutura do Estado e essa nova classe dominante, sendo os dissidentes, considerados como “traidores”, submetidos às mais cruéis punições e formas de aniquilamento12.

Na verdade, a técnica de declarar direitos, sem uma preocupação consistente com a sua efetividade é um mecanismo de dominação ideológica que vem sendo utilizado de forma bastante exitosa ao longo da história. No entanto, deve-se levar em consideração que o Direito é muito mais do que uma mera declaração de boas intenções - consoante se verifica da maioria dos documentos internacionais de proteção aos direitos humanos ou mesmo nos textos constitucionais - quando abordam os chamados direitos sociais. O Direito, para ser eficaz, precisa ser acobertado por mecanismos de coerção, capazes de impor a vontade da lei aos que contra ela se insurgem13.

Logo, pode-se concluir que direito sem capacidade de concretização é promessa vazia, destinado a alienar as classes subordinadas pelo sistema político-econômico levando-as a pensar serem detentoras de determinados direitos, de concretização difícil ou inviável em decorrência de mecanismos presentes na doutrina ou jurisprudência dos tribunais, tal como acontece com determinadas construções teóricas como a reserva do possível em confronto com a garantia de um mínimo existencial, a existência de normas de eficácia limitada ou normas de eficácia contida e outros instrumentos ideológicos cuja finalidade é mascarar a completa ineficácia de uma norma declarada14.

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Sobre o autor
Gilvânklim Marques de Lima

Doutor e mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Juiz Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Gilvânklim Marques. As Declarações de Direitos e o seu distanciamento da realidade: reflexões a partir de um atentado terrorista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7587, 9 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88179. Acesso em: 3 dez. 2024.

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