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Interpretação constitucional evolutiva dos direitos sociais.

Apontamentos sobre a mutação constitucional, a reserva do possível e o trabalho escravo no Brasil

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VI – Reserva do possível e suas espécies fática e jurídica

            Quando se planejam políticas públicas que, em essência, veiculam o atendimento aos direitos sociais, esbarra-se na escassez de bens materiais que, no meio econômico, representa um problema a ser resolvido mediante a alocação de recursos e, também, pela seletividade.

            No meio jurídico, e na interpretação das normas tendentes a implementar tais direitos, alude-se à expressão "reserva do possível", sustentando-se, grosso modo, que – malgrado possa haver direitos sociais reconhecidos nas normas nacionais ou internacionais a que o Brasil tenha aderido – apenas dentro das possibilidades orçamentárias e financeiras pode o Estado financiá-los.

            No estudo da reserva do possível, podem-se distinguir duas espécies, a fática e a jurídica. A primeira refere-se aos limites dos recursos públicos disponíveis ao passo que a reserva do possível jurídica relaciona-se com a necessária ponderação que deve ser feita em relação a todos os princípios em jogo, para decidir-se qual decisão tomar no caso concreto.

            Em relação a esse mecanismo de pesos e contrapesos, assevera Francesco Conte que, "entre essas duas reservas do possível – a fática e a jurídica – deve caminhar o administrador público na busca para tornar sua ação a mais eficiente possível. Observados os limites materiais e as imposições jurídicas, deve o administrador ponderar dentre as diversas alternativas possíveis aquela que promove o melhor custo-benefício. Nesse ‘balanço entre bônus e ônus’, entram não apenas os recursos financeiros em si, mas toda a gama de interesses coletivos e individuais afetados pela ação administrativa" [11].

            Rosalia Carolina Kappel Rocha, em relevante monografia escrita sobre o tema [12], refere-se à importante menção do Ministro do STF Celso de Melo:

            "O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se manifestar acerca da ´´reserva do possível´´. Com efeito, na ADPF 45 MC/DF, o Relator Min. Celso de Melo, afirmando que a referida Corte ‘não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas (...) -, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional’, não deixa de enfatizar o tema pertinente à ‘reserva do possível’, ‘notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas’. Assim é que menciona que os condicionamentos impostos, pela cláusula da ‘reserva do possível’, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração – de implantação sempre onerosa – ‘traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas’. Assim, a intervenção do Judiciário na seara dos direitos sociais não resta impossibilitada, devendo o julgador, entretanto, observar a razoabilidade da pretensão e a existência de disponibilidade financeira estatal".

            Contudo, importa ressaltar que – apurados os recursos orçamentários previstos em cada caso concreto e promovida a necessária ponderação entre os princípios e interesses envolvidos – não se poderá deixar de atender a um parcela dos direitos fundamentais básicos do cidadão, o que se convencionou denominar de "mínimo existencial". Isto é, existem direitos e situações específicas em relação às quais não se concebe possa o Estado abster-se, alegando falta de recursos públicos ou outros interesses públicos.

            Há que se aplicar ao caso a teoria dos "limites dos limites", pela qual a ponderação dos princípios e garantias constitucionais se dá pela harmonização, impondo limites a cada um desses interesses em conflito. Nada obstante, mesmo a essa ponderação – limites impostos a cada direito – são impostos limites, não se podendo comprimir e comprometer um direito a tal ponto de atingir seu "núcleo essencial". Esse "núcleo essencial", portanto, é corolário do próprio mínimo existencial que não se permite possa deixar de ser atendido, sob pena de desmantelamento da própria sociedade enquanto todo harmônico.

            É possível arrolar diversos exemplos em que se aplica tal teoria. Um deles é o caso de pessoas que necessitam urgentemente de medicamentos: se determinado cidadão encontra-se à beira da morte, como por exemplo em virtude de falta de medicamentos para o combate à síndrome de imunodeficiência adquirida, o fato de o custeio de saúde ser previsto ou não em norma do Ministério ou de Secretarias da Saúde não pode ser argumento para o Estado deixar de atender ao enfermo, sendo que o juiz que se deparar com o caso, geralmente em sede de liminar em Mandado de Segurança, deve conceder a medida em favor do paciente, tendo em vista, no caso concreto, a premência da situação e a importância do direito à vida em detrimento de questões orçamentárias ou burocráticas.


VII – Implicações do desrespeito aos direitos humanos mediante Organismos Internacionais

            Deve-se ter em conta que o não-atendimento dos direitos sociais pelo Estado pode acarretar, além de conseqüências judiciais, sociais e políticas internas, também repercussões internacionais.

            Especificamente quanto aos direitos humanos, acentua Flávia Piovesan que a Comissão Interamericana, desde maio de 2001, possui em seu regulamento disposição (art. 44) no sentido de que os estados que não cumprirem as recomendações emanadas por aquela instituição internacional, terão os casos submetidos à Corte Interamericana, salvo decisão fundada da maioria absoluta dos membros da Comissão [13].

            Quanto à responsabilização dos países integrantes da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, vale referência ao caso mundialmente conhecido em que a República brasileira fez acordo, em setembro de 2003, reconhecendo a sua responsabilidade internacional pela violação dos direitos humanos por não ter cumprido sua obrigação em proteger as pessoas que trabalham em condições análogas à de escravo (crime previsto no art. 149 do Código Penal). Dentre os milhares de casos como esse que são constatados em nosso país, o caso de um trabalhador, chamado José Pereira, chegou à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, e o governo brasileiro assumiu o compromisso de continuar a envidar esforços na erradição desse tipo de escravidão moderna e foram pagos ao trabalhador R$ 52.000,00 [14].

            Importa trazer à discussão, por pertinente, a recente observação feita por Flávia Piovesan [15], de que atualmente cresce o processo de judicialização dos conflitos, tendo sido, criado até mesmo, e pela primeira vez na história da humanidade, um Tribunal Penal Internacional, para julgar crimes graves contra a humanidade, compreendendo os crimes de genocídio, de guerra e de agressão. A criação desse Tribunal foi aprovada em Roma, em 17/7/1998, para vigorar a partir de 1o/7/2002, para buscar o equacionamento da garantia do direito à justiça, o fim da impunidade e a soberania do Estado, à luz do Princípio da Complementariedade. Esse princípio significa que "a Jurisdição do Tribunal Penal Internacional não substitui a local, mas a ela é complementar e subsidiária" [16].

            Não pode haver dúvida da submissão do Brasil a tribunais penais internacionais, caso tenha aderido ao instrumento internacional que os tenha instituído, principalmente com a recente alteração do texto constitucional operado pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, a qual incluiu no art. 5º o parágrafo 4o, ipsis verbis:

            "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

            (...)

            § 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão". (sem grifos no original).

            A partir desses fatos é possível dimensionar a necessidade de que o estado brasileiro, bem como toda a sociedade e instituições, promovam a implementação gradativa dos direitos humanos fundamentais, pois a sua recusa ou retardamento pode acarretar até mesmo a responsabilização do Governo e de pessoas físicas e jurídicas perante comissões e cortes internacionais especialmente criadas para esse mister e às quais aderiu espontaneamente a república brasileira.


VIII - Conclusão

            Como se expôs, o Estado Social de Direito hoje instalado em nosso país reclama uma postura das instituições – Estado, empresas e sociedade em geral – guiada pelo solidarismo e pela fraternidade social, no que toca à implementação dos direitos fundamentais sociais previstos na Carta Política de 1988, bem como nas leis e demais normas nacionais e instrumentos internacionais aos quais o Brasil tenha manifestado adesão.

            Como visto, além das sanções na ordem interna que podem advir no não-reconhecimento progressivo dos direitos humanos, há, ainda, responsabilidade da República brasileira perante comissões e cortes de justiça internacionais, devendo-se registrar a recente criação do Tribunal Penal Internacional, a inclusão do parágrafo 4º no art. 5o da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 45/2004 e a indenização que o Brasil se obrigou por acordo internacional a pagar ao trabalhador José Pereira, submetido a condições análogas à de escravo.

            Há que se considerar, de outra parte, que todos esses argumentos mencionados neste estudo devem ser tomados como fundamento para uma decisão política da sociedade e das instituições brasileiras – entre elas a Magistratura e o Ministério Público –, tomando como primordial em uma sociedade pluralista e solidária o reconhecimento dos direitos humanos fundamentais sociais e sua evolutiva implementação.


NOTAS

            1. Expressão a que alude Luís Roberto Barroso, em sua obra Interpretação e Aplicação da Constituição. 4a edição. São Paulo, Editora Saraiva, 2001, pág. 145.

            2. SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988. Disponível em <http://www.direitopublico.com.br/pdf/revista-dialogo-juridico-01-2001-ingo-sarlet.pdf>. Pág. 14. Acesso em 01/12/2005.

            3. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, pág. 31.

            4. Idem, págs. 34 e 35.

            5. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. Págs. 75/76. in A Nova Interpretação Constitucional. Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. BARROSO, Luís Roberto (ORG). Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003.

            6. Os documentos internacionais de proteção aos direitos humanos e a legislação brasileira. Disponível em <http://www.acaoeducativa.org.br/opa/opa02.html>. Acesso em 01/06/2006.

            7. Sísifo no limite do imponderável ou direitos sociais como limites ao poder reformador, págs. 105/106, in Constituição de Democracia – Estudos em Homenagem a J. J. Gomes Canotilho. BONAVIDES, Paulo; MARQUES DE LIMA, Francisco Gérson; e BEDÊ, Fayga Silveira. (Org.). São Paulo: Editora Malheiros, 2006.

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            8. Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988. Pág. 34. Disponível em <http://www.direitopublico.com.br/pdf/revista-dialogo-juridico-01-2001-ingo-sarlet.pdf>. Acesso em 01/12/2005.

            9. Formas Atípicas de Trabalho. São Paulo, Editora LTr, 2004, pág. 133.

            10. Idem, pág. 134.

            11. Eficiência e democracia. Disponível em <http://clipping.planejamento.gov.br/ Noticias.asp?NOTCod=243076>. Acesso em 11/1/2006.

            12. A Eficácia dos Direitos Sociais e a Reserva do Possível. Págs. 22/23. Disponível em <https://redeagu.agu.gov.br/UnidadesAGU/CEAGU/revista/Ano_V_novembro_2005/rosalia-eficacia.pdf>. Acesso em 05/06/2006.

            13. Direitos Humanos e a Jurisdição Constitucional Internacional, págs. 126, in BONAVIDES, Paulo; MARQUES DE LIMA, Francisco Gérson; e BEDÊ, Fayga Silveira. (Org.) Constituição de Democracia – Estudos em Homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Editora Malheiros, 2006.

            14. O tema foi objeto de excelente monografia de autoria de Telma Barros Penna Firme: O Caso José Pereira: A Responsabilização do Brasil por Violação de Direitos Humanos em Relação ao Trabalho Escravo. Pág. Disponível em <http://www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/ brasil/documentos/telma_final.pdf>. Acesso em 01/06/2006.

            15. op. cit., pág. 125.

            16. op. cit., pág. 125.


BIBLIOGRAFIA

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            SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004.

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Sobre o autor
Marco Antonio Sevidanes da Matta

analista de controle externo do Tribunal de Contas da União, bacharel em Direito e Engenharia, pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTA, Marco Antonio Sevidanes. Interpretação constitucional evolutiva dos direitos sociais.: Apontamentos sobre a mutação constitucional, a reserva do possível e o trabalho escravo no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1151, 26 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8839. Acesso em: 20 abr. 2024.

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