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A legitimidade da atuação do juiz a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva

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05/09/2006 às 00:00
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4. A subjetividade do juiz e a necessidade de explicitação da correção da tutela jurisdicional mediante a argumentação jurídica

É evidente que a necessidade de compreensão da lei a partir da Constituição confere ao juiz maior subjetividade, o que vincula a legitimidade da prestação jurisdicional à explicação da sua correção. Mas, o problema da legitimidade da tutela jurisdicional, no Estado contemporâneo, está em verificar se é possível atribuir correção à decisão do juiz, ou melhor, encontra-se na definição do que se pretende dizer com correção da decisão jurisdicional.

Na verdade, não é possível chegar a uma teoria da decisão correta, isto é, a uma teoria que seja capaz de sustentar a existência de uma decisão correta para cada caso concreto. Porém, a circunstância dessa impossibilidade não pode retirar do juiz o dever de demonstrar que a sua decisão é racional e, nessa linha, a melhor que poderia ser proferida diante da lei, da Constituição e das peculiaridades do caso concreto. 14

Acontece que uma decisão não é racional em si, pois a racionalidade da decisão não é atributo dela mesma. Uma decisão "se mostra" racional ou não. Para tanto, necessita de "algo", isto é, da racionalidade da argumentação. Essa argumentação, a cargo da jurisdição, é que pode demonstrar a racionalidade da decisão e, nesse sentido, a decisão correta. 15

É certo que a decisão deve se guiar pela lei, mas isso obviamente não é suficiente como argumento em favor de uma decisão correta. Decisão racional não é o mesmo do que decisão baseada apenas em dados dotados de autoridade; a decisão judicial exige que a argumentação recaia em pontos que não podem ser dedutivamente expostos.16 Ou melhor, a racionalidade do discurso judicia l necessariamente envolve a racionalidade do discurso que objetiva um juízo prático ou moral 17.

Segundo Alexy, não são possíveis teorias morais materiais que dêem uma única resposta, intersubjetivamente concludente, a cada questão moral, porém são possíveis teorias morais procedimentais que formulem regras ou condições da argumentação ou da decisão prática racional, sendo que a teoria do discurso prático racional é uma versão muito promissora de uma teoria material procedimental. Essa teoria tem uma grande vantagem sobre as teorias morais materiais, pois é muito mais fácil fundamentar as regras da argumentação prática racional do que as regras morais materiais.18

Para o aperfeiçoamento da racionalidade da argumentação judicial, Alexy propõe a passagem por quatro procedimentos ou a criação de um procedimento com quatro etapas ou graus: o primeiro é o discurso prático, envolvendo um sistema de regras que formula uma espécie de código geral da razão prática; o segundo é o procedimento legislativo, constituído por um sistema de regras que garante uma considerável medida de racionalidade prática e, nesse sentido, justifica-se dentro das linhas do discurso prático. Depois seguem o discurso jurídico e o procedimento judicial.19

A teoria do discurso jurídico se assemelha à teoria do discurso prático por também constituir uma teoria procedimental fundada em regras de argumentação e ser incapaz de levar a um único resultado, caracterizando-se por ser sujeita à lei e à Constituição, aos precedentes judiciais e à dogmática. O discurso jurídico restringe a margem de insegurança do discurso prático, mas obviamente não permite chegar a um grau de certeza suficiente, não eliminando a insegurança do resultado 20.

No procedimento judicial, do mesmo modo do que ocorre no procedimento legislativo, há argumentação e decisão. Os resultados do procedimento judicial são razoáveis, segundo Alexy, se as suas regras e a sua realização satisfazem as exigências dos procedimentos que lhe antecedem, isto é, as regras do discurso prático, do procedimento legislativo e do discurso jurídico 21.


5. A argumentação jurídica em prol da técnica processual adequada ao direito fundamental à tutela jurisdicional

Quando se trata da argumentação em prol da técnica processual adequada ao direito fundamental à tutela jurisdicional, é preciso relacionar a argumentação com as modalidades de compreensão da lei: i) interpretação de acordo, ii) interpretação conforme, iii) declaração parcial, iv) concretização da norma geral e v) supressão da omissão inconstitucional.

Na interpretação de acordo, argumenta-se em prol de uma interpretação que, sendo capaz de atender às necessidades de direito material, confira a devida efetividade ao direito fundamental à tutela jurisdicional.

Na interpretação conforme, argumenta-se que a lei, consideradas as necessidades do caso concreto e o direito fundamental à tutela jurisdicional, precisa de "algo mais" ou de "um ajuste" para não ser dita inconstitucional. Na declaração parcial de nulidade, o argumento deve ser no sentido de que determinadas interpretações inviabilizam o efetivo atendimento das necessidades de direito material e, por conseqüência, a atuação do direito fundamental, mas há uma interpretação que se ajusta perfeitamente ao caso.

Como é óbvio, a questão se complica quando se pensa na concretização das normas processuais abertas e na supressão da omissão legal inviabilizadora da realização do direito fundamental à tutela jurisdicional. Isso porque, nessas hipóteses, a margem de poder do juiz é maior e, assim, a possibilidade de arbítrio também.

No caso de concretização de norma processual aberta, a necessidade de justificar a utilização da técnica processual é, antes de tudo, decorrência da própria estrutura dessa modalidade de norma, instituída para dar ao juiz poder necessário para atender às variadas situações concretas.

Lembre-se que as normas processuais abertas - como, por exemplo, a do art. 461 do CPC - devem ser concretizadas a partir das necessidades reveladas no caso concreto, pois se destinam a dar ao juiz poder para dar efetividade ao direito material. Isso quer dizer que, ao aplicar essas normas, o juiz tem o dever de encontrar uma técnica processual ou um "modo" processual que seja capaz de atender ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. Mas, como esse "modo" é a expressão da concretização de uma norma aberta – que obviamente não se preocupa apenas com o direito do autor, mas igualmente com o direito do réu -, o juiz deve argumentar que o "modo" encontrado, além de dar efetividade ao direito fundamental à tutela jurisdicional, é o que gera a menor restrição possível ao demandado.

Na hipótese de omissão de regra processual ou de inexistência de técnica processual adequada ao caso concreto, a diferença, em termos de argumentação, é a de que o juiz deverá demonstrar que as necessidades de direito material exigem uma técnica que não está prevista pela legislação processual. Porém, ao juiz não bastará demonstrar a imprescindibilidade de determinada técnica processual não prevista pela lei, mas também argumentar, considerando o direito de defesa, que a técnica processual identificada como capaz de dar efetividade à tutela do direito é a que traz a menor restrição possível à esfera jurídica do réu.

Nos casos de concretização de normas abertas e de supressão de omissão inconstitucional, a identificação das necessidades dos casos concretos e o uso das técnicas processuais idôneas para lhes dar proteção obviamente devem ser precisamente justificados. Na verdade, o juiz deve estabelecer uma relação racional entre as necessidades do caso concreto, o significado da tutela jurisdicional no plano substancial (tutela inibitória, ressarcitória etc) e a técnica processual (sentença executiva, multa, busca e apreensão etc). Em outros termos, deve demonstrar que determinada situação de direito material deve ser protegida por certo tipo de tutela jurisdicional, e que, para que essa modalidade de tutela jurisdicional possa ser implementada, deve ser utilizada uma precisa técnica processual.

Antes de partir para o encontro da técnica processual adequada, o juiz deve demonstrar as necessidades de direito material, indicando como as encontrou no caso concreto. De maneira que a argumentação relativa à técnica processual se desenvolve sobre um discurso de direito material já justificado. Nesse caso existem dois discursos: um primeiro sobre o direito material, e um outro, incidente sobre o primeiro, a respeito do direito processual. O discurso de direito processual é um sobre-discurso, ou um meta-discurso, no sentido de que recai sobre um discurso que lhe serve de base para o desenvolvimento. O discurso jurídico processual é, em outros termos, um discurso que tem a sua base em um discurso de direito material. 22

É certo que a idoneidade desses dois discursos se vale dos benefícios gerados pela realização e pela observância das regras do procedimento judicial. Mas, ainda assim, não se pode deixar de perceber a nítida distinção entre um discurso de direito material legitimado pela observância do procedimento judicial e um discurso de direito processual que, além de se beneficiar das regras do procedimento judicial, sustenta-se sobre um outro discurso (de direito material).23

O discurso de direito processual, ou seja, o que elege a técnica processual adequada em razão da exigência de uma norma aberta ou o que identifica a necessidade de uma técnica processual não prevista na lei, não representa qualquer ameaça à segurança jurídica, na medida em que parte de um discurso que se apóia nos fatos e no direito material. O discurso processual objetiva atender a uma situação já demonstrada pelo discurso de direito material, e não pode esquecer que a técnica processual eleita deve ser a mais suave, ou seja, a que, tutelando o direito, cause a menor restrição possível ao réu.

A justificação, obedecendo a esses critérios, dá às partes a possibilidade de controle da decisão jurisdicional. A diferença é a de que, em tais situações, o controle da atividade do juiz é muito mais complexa e sofisticada do que aquela que ocorria com base no princípio da tipicidade, quando o juiz apenas podia usar os instrumentos processuais definidos na lei. Mas essa mudança de forma de pensar o controle jurisdicional é apenas reflexo da necessidade de se dar maior poder ao juiz – em parte a ele já entregue pelo próprio legislador ao fixar as normas abertas – e da transformação do próprio conceito de direito, que submete a compreensão da lei aos direitos fundamentais.


Notas

1 Dimaras, Nikolaos, Die enge Beziehung des Zivilrechts zum Zivilprozessrecht und der Einfluß der Verfassung auf das Ziviprozessrecht, in FS Beys, Band I, Athen 2003, p. 291 e ss.

2 Os procedimentos dos Juizados Especiais Cíveis.

3 Wautelet, P., Le droit au procès équitable et l’égalité des armes, in L’efficacité de la Justice Civile en Europe –Caupain Therése/De Leval Georges (Hrsg.) Bruxelles 2000, pp. 101-129;

Couture, Eduardo, Der verfassungsmäßige Schutz des Prozesses, ZZP 67 (1954) 128; Dimaras,

Nikolaos, Die enge Beziehung des Zivilrechts zum Zivilprozessrecht und der Einfluß der

Verfassung auf das Ziviprozessrecht, in FS Beys, Band I, Athen 2003, p. 291 e ss.; Kirchhof,

Paul, Verfassungsrechtliche Maßstäbe für die Verfahrensdauer und die Rechtsmittel, FS

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Doehring, 1989, p. 438.

4 Schwab, Karl-Heinz/Gottwald, Peter, Verfassung und Zivilprozess, in Effektiver Rechtsschutz, 1983, pp. 1-10; v. Lorenz, Dieter ,Grundrechte und Verfahrensordnungen , NJW 1977, 865.

5 Art. 273 – (....)

§2º "Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado".

(...).

6 Ver item adiante.

7 Ver item adiante.

8 Dimaras, Nikolaos, Die enge Beziehung des Zivilrechts zum Zivilprozessrecht und der Einfluß der Verfassung auf das Ziviprozessrecht, in FS Beys, Band I, Athen 2003, p. 291 e ss.; Lorenz, Dieter, Grundrechte und Verfahrensordnungen, NJW 1977, 865.

9 V. Luiz Guilherme Marinoni, Tutela inibitória , São Paulo: Ed. RT, 2003, 3ª. ed.

10 V. Luiz Guilherme Marinoni, Técnica processual e tutela dos direitos, São Paulo, Ed. RT, 2004.

11 Sobre a regra da proporcionalidade, ver, no direito brasileiro, Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros, 1993, p. 314 e ss; Luis Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, São Paulo, Saraiva, 1996; Raquel Denize Stumm, Princípio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1995, Suzana de Toledo Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle da constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, Brasília, Brasília Jurídica, 1996; Paulo Arminio Tavares Buechele, O princípio da proporcionalidade e a interpretação da Constituição, Rio de Janeiro, Renovar, 1999.

12 V. Michele Taruffo, La motivazione della sentenza civile . Padova: Cedam, 1975, p. 194-195, Michele Taruffo, Funzione della prova: la funzione dimostrativa, Rivista trimestrale di diritto e procedura civile , 1997, p. 553-554; Michele Taruffo, Il controllo di razionalita’ della decisione fra logica, retorica e dialettica, in: www.studiocelentano.it/le nuove voci del diritto; Michele Taruffo, La motivazione della sentenza, Revista de Direito Processual Civil (Genesis Editora), v. 30, p. 674 e ss; Michele Taruffo, Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz, Conferência proferida na Faculdade de Direito da UFPR; Curitiba, março de 2001, p. 17.

13 A "execução" sob pena de multa somente tem sentido em relação ao devedor que possui patrimônio suficiente para responder ao crédito. Na hipótese de devedor sem patrimônio, não cabe, como é óbvio, a "execução" sob pena de multa. Assim, na hipótese de antecipação da "execução", o juiz deve dar ao réu a oportunidade de justificar o não adimplemento. Além disso, é fundamental que o juiz estabeleça prazo suficiente para o réu adimplir, sendo que a sua justificativa também pode ser no sentido de que necessita de mais tempo para cumprir a obrigação (V. Luiz Guilherme Marinoni, A antecipação da tutela, São Paulo: Ed. RT, 2004, 8ª. ed).

14 V. Chayes, A., How Does the Constitution Establish Justice? 101 Harv. L. Rev. 1026 (1988).

15 Schlüter, Wilfried, Das Obiter Dictum, München, Beck, 1973, pp. 29-33.

16 A respeito da argumentação jurídica, além das teses precursoras de Perelman (Perelman e Olbrecht-Tyteca, Trattato dell’argomentazione, Torino: Einaudi, 1966), Viehweg (Tópica e jurisprudência, Brasília: UNB, 1979) e Toulmim (The uses of argument, Cambridge: Cambridge Universiy Press, 1958), são fundamentais as teorias de MacCormick (Legal reasoning and legal theory, Oxford: Oxford University Press, 1978) e Alexy (Teoria da

argumentação jurídica, São Paulo: Landy, 2001)

17 Sobre a conexão entre direito e moral no pensamento de Alexy, ver a polêmica travada entre Alexy e Bulygin, La pretensión de corrección del derecho, Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2001; v. ainda Robert C. Farrel, Legislative Purpose and Equal Protection´s Rationality Review, 37 Vill. L. Rev. I, 7 (1992).

18 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 530.

19 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, cit, p. 531.

20 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, cit, p. 532; v. Jules Coleman, Truth and Objetivity in Law, 1995, Legal Theory 33, p. 48-54.

21 Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, cit, p. 532.

22 Dujardin , Roger, L’efficacité des procédures judiciaires au sein de l’Union Européenne et les garanties des droits de la défense, L’efficacité de la Justice Civile en Europe – Caupain Therése/De Leval Georges (Hrsg.) Bruxelles 2000, p. 41-80 ; v. Dütz, Wilhem, Rechtsstaatlicher Gerichtsschutz im Privatrecht, Bad Homburg, Berlin/Zürich, 1970, pp. 2-20.

23 Stickelbrock, Barbara, Inhalt und Grenzen richterlichen Ermessens im Zivilprozess, Köln 2002, p. 4-15.

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Sobre o autor
Luiz Guilherme Marinoni

professor titular de Direito Processual Civil dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UFPR, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, pós-doutor pela Universidade de Milão, advogado em Curitiba, ex-procurador da República

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINONI, Luiz Guilherme. A legitimidade da atuação do juiz a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1161, 5 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8846. Acesso em: 18 abr. 2024.

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