5. Necessidade de Adequação do Instituto da Usucapião à Multipropriedade
Sabe-se que a posse, consumada em sua substância, é o primórdio para a instauração desse tipo de ação petitória e, a variar conforme a modalidade de usucapião aderida, deve se sustentar durante o período mínimo de dois anos, como ocorre no caso da usucapião de ex-cônjuge ou ex-companheiro, vide o dispositivo 1.240-A do Código Civil Brasileiro de 2002. Incorporando-se de maneira literal e inalterada o requisito da continuidade à posse frente à multipropriedade, a usucapião caberia na única hipótese de todos os multiproprietários estarem omissos e haverem abandonado o imóvel, passando o usucapindo, após dois anos de posse justa, de boa-fé e initerrupta, a ser elegível à apropriação de todas as frações de tempo. Sobrevir-lhe-ia, uma vez suas propriedades adquiridas após o devido processo legal, a opção de extinguir ou manter o regime em análise, mas desde logo podendo usar, gozar, dispor e opor seu direito de sequela (reaver de injusta posse ou detenção) sobre o imóvel em qualquer época do ano (vez que se tornaria titular de todas as quotas temporais matriculadas junto à unidade principal).
Diante desse cenário legislativo, que se manteve inalterado ainda após a recente incorporação de inovador regime imobiliário, em se adotando a interpretação literal do dispositivo, são drasticamente reduzidas ao possuidor de unidade periódica as possibilidades de consolidação da proposta original do instituto da usucapião: enaltecer a função social da propriedade. O instituto da usucapião, em todas as suas modalidades, é explícito ao impor que o período durante o qual o domínio que deve ser exercido pelo usucapindo seja initerrupto. O fato, todavia, de a legislação brasileira, que discorre extensivamente sobre a prescrição aquisitiva geradora de propriedade originária por meio da usucapião, não ter tratado diretamente de sua possiblidade frente ao contexto em análise, bem como não lhe ter sido acrescido texto legal correspondente, abriria espaço para interpretar, à luz da função social da propriedade, que o período initerrupto do exercício do domínio por parte do potencial usucapindo, adequado ao cenário peculiar delineado pela multipropriedade, materializar-se-ia na ocupação do imóvel durante a plenitude de cada uma das frações de tempo de titularidade do multiproprietário omisso.
O direito italiano explicita, no artigo 1.158 do atual Código Civil, que o período de posse, no caso, de vinte anos, seja continuado. Contudo, a doutrina italiana afirma convictamente que “a posse contínua não significa uma posse exercitada mediante uma ingerência assídua sobre o bem: é sobretudo necessária uma situação em que o possessor tem a possibilidade de expedir, quando o quiser, atos de senhoria relativamente à coisa”22. Mais além, há quem reconheça a possibilidade de moldagem direta do dispositivo do Código Civil Italiano ao universo da multipropriedade, de modo que o mesmo seria interpretado no significado de que o poder de fato sobre as coisas deve continuar por vinte anos solares, considerando-se os ciclos dos períodos titulados pelo proprietário23. Logo, se acordando os enunciados ao instituto multiproprietário, apresenta-se que, desde que ao possessor caiba exercer alguma das faculdades do direito de propriedade dentro das frações de tempo reservadas ao então proprietário, durante o período demandado para instaurar ação petitória de usucapião, configurar-se-ia legitimado para tanto.
Sabe-se, então, que as faculdades do direito real na multipropriedade são exercíveis somente dentro da moldura que cada fração de tempo delimita e que há um rol de obrigações legais concernentes a essa espécie de propriedade, listadas no artigo 1.358-J CC/02. Dentre essas regras, há-se de destacar aquelas cujo descumprimento é propício a interferir nos direitos dos demais multiproprietários, como a obrigação de “desocupar o imóvel até o dia e hora fixados no instrumento de instituição ou na convenção de condomínio em multipropriedade, sob pena de multa diária” e a de “não modificar, alterar ou substituir o mobiliário, os equipamentos e as instalações do imóvel”. Assim, além da interpretação especial conferida ao requisito temporal na usucapião da fração de tempo, far-se-ia necessário, durante a ação petitória, do levantamento do instrumento de constituição da multipropriedade ou da convenção de condomínio, documentos esses que, em consonância com o caput do referido artigo, podem abranger obrigações suplementares, a fim de que o usucapindo possa conceder seu consentimento expresso quanto às suas obrigações legais e convencionais ao se apropriar dessa espécie de propriedade.
Assim sendo, a admissibilidade da materialização da usucapião frente a propriedades de unidades periódicas se revela legalmente tangível, no entanto, experimentalmente tende a ser excepcional. Em se ilustrando, raro seria um multiproprietário de uma fração de sete dias (mínimo legal estabelecido pela Lei 13.777/18) não adimplir e não o ocupar a cada ano, especialmente em se observando a finalidade turística geralmente projetada ao se aderir ao regime multiproprietário. Para tanto, ainda, o suposto usucapindo haveria de conhecer o panorama fático e se comunicar com o administrador para se certificar na inadimplência do proprietário e satisfazer as despesas fixas e flutuantes dos períodos em que teria usufruído do bem, a fim de constituir seu direito autônomo de posse frente ao Registro de Imóveis, com base na Teoria Social da Posse, munindo-se de provas para a instituição da ação petitória de propriedade da unidade periódica. Mais difícil ainda, seria na hipótese de o titular da fração de tempo o ser frente a muitos períodos intercalados durante o ano, de modo que, para se consagrar a usucapião, o possuidor haveria de ocupar contínua e integralmente todas as frações de tempo, que, ainda mais improvavelmente, estariam à disposição.
Inversamente, a usucapião de cônjuge ou companheiro poder-se-ia revelar mais simplificada, em se sendo titular de uma semana em cada ano e em caso de abandono financeiro por parte do nubente apartado. Suscintamente, embora legalmente admissível, para se revelar exequível, há-se de expectar um cenário deveras invulgar, principalmente em se considerando o propósito majoritariamente turístico ao se submeter ao instituto.
Muito importa mencionar que o mercado imobiliário pode estar propenso a intensificar a divisão em matrículas, convertendo-se condomínios edilícios de algumas regiões em multipropriedade: a potencial redução de custos fixos e variáveis ou sazonais e a consequente facilitação de se atingir a segurança financeira constituiria uma medida prudente de evitar possíveis reflexos negativos da inflação face ao mercado imobiliário locatício. Além disso, tribunais por todo o país têm tomado diferentes decisões quanto à questão da locação por temporada entre particulares por meio do intermédio de plataformas digitais. Conforme o entendimento do TJ-RS24, o não vínculo entre os inquilinos, a alta rotatividade de pessoas e a reforma no apartamento para a construção de novos quartos com o intuito de acomodar mais pessoas são fatores que caracterizam a exploração do espaço como hospedagem, atividade comercial proibida por muitas convenções do condomínio25. Perante esse cenário, é esperado que muitos imóveis sobre os quais não se intende exercer em tempo integral as faculdades do direito da propriedade passem a adotar o formato de joint ownership proposto pela tendência que se revela a multipropriedade, que faz, diante do exposto, seguramente jus a regulamentação própria no que tange às transcendências de sua classificação.
Notas
1 The History Of Vacation Ownership. Canadian Vacation Ownership Association’s website https://www.canadianvoa.org/the_history_of_vacation_ownership.shtml
2 Timeshare – RCI’s website https://www.wyndhamhomeexchange.com/pre-rci-it_IT/learn-about-timeshare/why- timeshare.page
3 Loyola Consumer Law Review Volume 18 | Issue 4 Article 4 2006 Timeshare Ownership: Regulation and Common Sense David A. Bowen (pgs 461 a 467)
4 La”propriété temporaire”, essai d’analyse des droits de jouissance à temps partagé (pg 4). Sylvie Pieraccini. Droit. Université du Sud Toulon Var, 2008.
5 Timeshare Sales Law, Rules and Regulations (1983) Code of Alabama Title 34 Professions and Businesses Chapter 27 Article 3 Vacation Time-Sharing Plans - Section 34-27-50. Definitions (8). https://codes.findlaw.com/al/title-34-professions-and-businesses/al-code-sect-34-27-50.html
6 La”propriété temporaire”, essai d’analyse des droits de jouissance à temps partagé. (pg 68) Sylvie Pieraccini. Droit. Université du Sud Toulon Var, 2008. Disponível em https://tel.archives-ouvertes.fr/tel- 00365379/document
7 Índex do UK Timeshare Act of 1992, disponível em https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1992/35/contents/enacted
8 Íntegra do Decreto-Lei Português 275 de 1993 em https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=648&tabela=leis&so_miolo=
9 PROPERTY LAW AND PROCEDURE IN THE EUROPEAN UNION General Report Final Version (pg 16) - European University Institute (EUI) Florence/European Private Law Forum Deutsches Notarinstitut (DNotI) Würzburg Real - scientific co-ordinators: Dr. habil. Christoph U. Schmid, Ph.D. European Private Law Forum European University Institute, Florence; Christian Hertel, LL.M. Director DNotI (German Notary Institute), Würzburg; with contributions by Dr. Hartmut Wicke, LL.M., DNotI, Würzburg - 31.5.2005.
10 Diretiva Europeia 94 de 1994 em Língua Portuguesa em https://eur-lex.europa.eu/legal- content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A31994L0047
11 Diretiva Europeia 122 de 2008 https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A32008L0122
12 Texto da Lei Espanhola disponível em https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1998-28992
13 Decreto Legislativo 427 de 1998 https://www.parlamento.it/parlam/leggi/deleghe/98427dl.htm
14 Lei Brasileira 13.777/2017 em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13777.htm
15 Final Report Evaluation Study on the Application of the Timeshare Directive 2008/122/EC. EUROPEAN COMMISSION Directorate General for Justice and Consumers. March 2015.
16 Loyola Consumer Law Review Volume 18 | Issue 4 Article 4 2006 Timeshare Ownership: Regulation and Common Sense David A. Bowen (pgs 461 a 467)
17 MACHADO, Hébia Luiza. Função socioambiental: solução para o conflito de interesses entre o direito à propriedade privada e o direito ao meio ambiente ecologicamente preservado. MPMG Jurídico, 2008
18 A CONTROVÉRSIA DO DIREITO REAL DA MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA NO DIREITO PRIVADO (2017). Monografia de SANDRA FERREIRA DE CARVALHO PERES - Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
19 DIREITO DAS COISAS. Penteado, Luciano de Camargo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, (pgs 304 e 305)
20 REsp 1546165/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 06/09/2016
21 Primeiras linhas de direito processual civil. SANTOS, Moacyr Amaral. (pg 348)
22 Website do escritório de advocacia “Brocardi”, citando Cass. 80/1300 https://www.brocardi.it/codice-civile/libro-terzo/titolo-viii/capo-ii/sezione-iii/art1158.html
23 "Multiproprietà: tra realità e relatività" (pg 72). SCUOLA DOTTORALE INTERNAZIONALE "TULLIO ASCARELLI" Diritto – Economia – Storia SEZIONE “Diritto Privato per l‟Europa” Area Diritto Civile XXVI Ciclo - Tutor Ch.mo Prof. S. Mazzamuto; Coordinatore Ch.mo Prof. G. Grisi ; Dottorando CLAUDIO BRUNO, Anno Accademico 2014/2015.
24 TJ-RS – Agravo de Instrumento AI 70079530549, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS. Relator: Dilso Domingo Pereira. Julgado em 13/03/2019.
25 STJ pode proibir aluguel de apartamentos via aplicativos. Matéria escrita por Yuri Soares para a revista AEC Web em 23/10/2019. Disponível em https://www.aecweb.com.br/revista/noticias/stj-pode-proibir- aluguel-de-apartamentos-via-aplicativos/19353