Sumário: 1. Panorama Legislativo Espaço-Temporal e Mosaico de Nomenclaturas. 2. Conceito e Natureza da Multipropriedade Imobiliária no Brasil. 3. Contornos Gerais da Usucapião Imobiliária, Posse e a Função Social e Econômica da Propriedade. 4. Natureza Jurídica da Multipropriedade frente a Institutos Possessórios e Desapropriadores. 5. Necessidade de Adequação do Instituto da Usucapião à Multipropriedade.
1. Panorama Legislativo Espaço-Temporal e Mosaico de Nomenclaturas
A propriedade de férias compartilhadas surge nos anos 1960, na França1, diante de um cenário de intensa movimentação do mercado locativo na região dos Alpes, próximo à Suíça. Desde então, vem sendo muito comercializada por intermédio de grandes multinacionais, como a RCI, acrônimo de Resorts Condominiums International2, empresa alemã com sua primeira filial aberta em Indianapolis, nos Estados Unidos, no ano de 1974.
O conceito de compartilhamento de tempo, assim, é introduzido nos EUA, na década de 1970, sob a égide do direito do consumidor3, de modo que o comprador não obtém qualquer participação acionária no resort ou hospedaria, mas, sim, recebe o direito de usar a unidade de timeshare por um período de tempo especificado, após o qual o título se retrocede ao desenvolvedor. Constituir-se-ia, assim, um direito de acomodação temporária adquirido por uma longa duração, em residência de turismo4. Esse mecanismo seria comparável ao conceito brasileiro de direito real de propriedade resolúvel, que se submete ao cumprimento de uma condição estabelecida ou ao advento do termo convencionado, de modo a serem “também resolvidos também os direitos reais concedidos na sua pendência” (artigo 1.359 CC/02).
A Timeshare Sales Law, Rules and Regulations, promulgada no estado do Alabama em 19835, caracteriza, no mesmo sentido, o Plano de Propriedade de Compartilhamento de Tempo de Férias (Vacation Time Sharing Ownership Plan ) como
“qualquer acordo, plano ou dispositivo similar, seja por arrendamento em comum, venda, escritura ou por outros meios, que esteja sujeito a contrato [...] para uso da unidade de compartilhamento de tempo, pelo qual o comprador recebe uma taxa indivisa de propriedade simples interesse e direito de usar acomodações ou instalações, ou ambos, por um período específico durante um determinado ano, mas não necessariamente por anos consecutivos, que se estendem por um período superior a um ano.”
De modo semelhante redige a Lei grega nº 1.652/86 sobre locação a tempo compartilhado, tratando-a como um negócio que combina elementos do contrato de locação ao de hotelaria. Essa qualificação se adapta facilmente ao direito grego, esse que proíbe que estrangeiros detenham direitos reais imobiliários em território nacional6. A americana fractional ownership, joint ownership ou, ainda, timeshare ownership, por sua vez, corresponde à propriedade de um bem factualmente indivisível, porém estruturado em condomínio quanto às faculdades de uso e gozo, sendo essas limitadas a uma quantidade de dias em períodos específicos ou reservados do ano, correspondendo ao que é tratado pelo Direito Brasileiro sob a denominação de Multipropriedade.
O UK Timeshare Act of 19927 classifica o regime em análise como qualquer acomodação de morada usada ou destinada a ser usada, total ou parcialmente, para fins de lazer por uma classe de pessoas que tenham direitos de uso ou participem de acordos sob os quais possam usar esse alojamento por períodos intermitentes de curta duração.
A República Portuguesa, no ano de 1993, aprovou por meio do Decreto-Lei nº 275/938, o direito real de habitação periódica limitados a um período certo de tempo de cada ano sobre as unidades de alojamento integradas em hotéis-apartamentos, aldeamentos turísticos e apartamentos turísticos.
Nesse contexto, de reconhecimento em muitos países na Europa do timeshare como um direito de propriedade sui generis 9 , desponta a Diretiva 94/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia de 26 de Outubro de 199410, relativa à proteção dos adquirentes quanto a certos aspectos dos contratos de aquisição de um direito de utilização a tempo parcial de bens imóveis. Essa fora posteriormente atualizada pela Diretiva 2008/122/EC11, que estende seu âmbito de aplicação às férias de longa duração como resposta à evolução do setor, em decorrência do aumento da oferta de produtos e serviços relacionados ao timeshare, além de facilitar a uniformização da legislação europeia.
Assim, na Espanha, o artigo 1º da Lei 42/199812 reconhece o direito de aproveitamento por turno como direito real limitado sobre bens imóveis, consistindo na faculdade de desfrute exclusivo durante um período específico do ano, compreendendo tanto a estrutura da coisa quanto o seu mobiliário; e o Decreto Legislativo italiano nº 42713 do mesmo ano acrescenta ao direito de gozo de bens imóveis a tempo parcial que esse pode se dar por um período determinado ou determinável do ano, não inferior a uma semana, assim como trata o Direito Brasileiro.
Enquanto isso, no Brasil, a matéria foi primordialmente codificada de forma direta e exclusiva apenas no ano de 2018, por meio da Lei 13.777/1814.
2. Conceito e Natureza da Multipropriedade Imobiliária no Brasil
Esse instituto, recém-acrescido ao ordenamento jurídico brasileiro no rol taxativo de direitos reais, corresponde ao que em países anglófonos frequentemente é conhecido por timeshare 15 ou fractional ownership, regime de propriedade fracionada estendido a bens imóveis (no Brasil, essencialmente relativo a bens imóveis) por meio do qual múltiplos são os titulares do direito real de propriedade de um bem indivisível, sobre o qual têm as faculdades inerentes àquele limitadas à fração de tempo que se titula, além de deveres nos limites dessa ficção jurídico-temporal idealizada (artigo 1.358-I CC/02). Cabe acrescentar que a época ou temporada do ano em que o uso lhe é de direito também exerce influência sobre as responsabilidades pecuniárias do proprietário frente ao imóvel, o que permitiria que frações de tempo quantitativamente correspondentes façam jus a pecúnia atributiva mais ou menos elevada.
Define-o o Código Civil Brasileiro de 2002, alterado pela Lei da Multipropriedade Imobiliária (Lei 13.777/2018):
Art. 1.358-C. Multipropriedade é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde à faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada.
O referido surge em um contexto benéfico àquele que pretenderia, por exemplo, adquirir um imóvel para uso periódico, geralmente com fins de lazer. Passa o sujeito a desembolsar, para tanto, valores monetários menos significativos, além de, assim, reduzir-se o tempo de ociosidade dos imóveis e as despesas com sua manutenção e segurança, que passam, desde logo, a ser compartilhadas entre os condôminos.
Alguns países, como assinalado anteriormente, fazem referência ao sistema de time-sharing como sendo o direito pessoal16 que pressupõe a cessão onerosa de uso, mas por tempo específico e determinado, e cuja aquisição não implica a transmissão da propriedade, sendo o instituidor do regime de uso o único proprietário. Nesse sentido, a regulamentação competiria à Lei Geral do Turismo (Lei 11.771/2008) e ao Decreto 7.381/2010, que em seu artigo 28 o define como a “relação em que o prestador de serviço de hotelaria cede a terceiro o direito de uso de unidades habitacionais por determinados períodos de ocupação, compreendidos dentro de intervalo de tempo ajustado contratualmente”.
Como tratada pelo recém inovado Direito Brasileiro, em decorrência de sua natureza de direito real sobre bens imóveis, a fim de se consolidar uma fração de tempo em multipropriedade, faz-se necessária solenidade por meio d’escritura pública junto ao Registro de Imóveis da região (artigo 1.227 CC/02 e artigo 172 Lei 6.015/73). Ainda, vale mencionar, que a unidade temporal pode ser fixa e definida, flutuante ou, ainda, mista, diferindo, mais uma vez, do regime hoteleiro, que demanda pré-determinação do período no instrumento particular celebrado entre as partes.
Como fontes normativas do instituto em questão, prevê o Código Civil Brasileiro de 2002, no artigo 1.358-B. A, que “a multipropriedade reger-se-á pelo disposto neste Capítulo e, de forma supletiva e subsidiária, pelas demais disposições deste Código e pelas disposições das Leis nºs 4.591 , de 16 de dezembro de 1964 ( Lei do Condomínio ), e 8.078 , de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor)”.
O regime de multipropriedade é caracterizado, assim, pela pluralidade de unidades periódicas vinculadas a um imóvel-base, indivisível, e o instituto subsiste ainda que todas as frações de tempo sejam tituladas por um mesmo proprietário (arts. 1.358-D e 1.358-C, parágrafo único CC/02). Nesse caso, caber-lhe-ia a opção de manter ou de extinguir a divisão ficto-temporal estabelecida. A unidade periódica na qual se exerce o direito real de propriedade e durante a qual se dispõe de posse e domínio integral do imóvel pode ser objeto de cessão e de alienação (artigo 1.358-I CC/02) e, embora se assemelhe ao instituto do condomínio edilício ou horizontal, não figura o direito de preferência entre os condôminos, salvo se esse houver sido resguardado no instrumento d’instituição ou na convenção de condomínio (art. 1.358-L caput e § 1º CC).
3. Contornos Gerais da Usucapião Imobiliária, Posse e a Função Social e Econômica da Propriedade
Sabe-se que uma das possibilidades de aquisição originária da propriedade de bem imóvel figura por meio de usucapião (prescrição aquisitiva), em uma ou mais de suas diversas modalidades:
Especial Constitucional Urbana ou pró-moradia, prevista pela Constituição Federal Brasileira de 1888, em seu artigo 183 e incluída no Código Civil Brasileiro por meio do artigo 1.238, dos artigos 9º e 10º do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e do artigo 25 da Lei da regularização fundiária rural e urbana (Lei 13.465/2017); Especial Constitucional Rural ou pro labore (art. 191. CRFB/88 e art. 1.239. CC/02); Extraordinária (art. 1.238. CC/02);
Do Cônjuge ou Companheiro (art. 1.240-A CC/02); Ordinária (art. 1.242. CC/02);
Coletiva (art. 10º do Estatuto da Cidade – Lei 12.257/2001);
Extrajudicial (art. 216-A da Lei dos Registros Publicos – Lei 6.015/73 e Provimento 65 CNJ).
Os requisitos gerais da posse para permitir usucapião são posse justa, inferida contrario sensu do artigo 1.200 CC/02 como aquela que não é violenta, clandestina e precária; contínua/initerrupta; de boa-fé, que tem como requisitos não ignorar vícios e não prejudicar terceiros; e com justo-título (exceto no que tange à modalidade extraordinária, hipótese em que as duas últimas premissas não são mandatórias). Rudolf Von Ihering, inaugurador da Teoria Objetiva no século XIX para a definição da posse, a enxerga à luz da situação jurídica de fato, de modo que essa dependeria, resumidamente, da manifestação d’affectio tenendi, abrangente do corpus (domínio físico) e do animus, o agir em nome próprio frente à coisa, mas sem a vontade de ser proprietário, vez que age restringido por limites legais ou convencionais, como um contrato de locação. Já seu contemporâneo Friedrich Von Savigny, no século XIX, caracteriza a posse como fato jurídico à luz da Teoria Subjetiva ou Teoria da Vontade, devendo-se fazer presente, além da detenção física da coisa, o animus domini, o agir frente a ela em nome próprio, como se dono fosse (realizar investimentos no imóvel, reformas, benfeitorias úteis, voluptuárias, de acréscimo etc.) e a vontade de sê-lo, passando a posse a constituir um degrau para aquisição da propriedade. Por isso, à luz de sua teoria, vale mencionar, o inquilino, o usufrutuário e o credor pignoratício são meramente detentores, vez que têm limitação legal para uso e disposição da coisa, e menor é o elenco dos legitimados à propositura de ação de usucapião. A Teoria Social, por sua vez, não dialoga com as demais, vez que não busca caracterizar a posse, diferindo-a da detenção, mas sim, passa a tratar dela como direito subjetivo autônomo, podendo, por conseguinte, ser levado a registro, sem necessidade de sentença judicial.
Ainda, pode ser instaurada ação de reintegração de posse e d’interdito proibitório, em esbulho ou turbação concretos ou iminentes (artigos 560 e 567 CPC/15). Como reflexo dessa teoria, a Lei 13.465/17, da Regularização Fundiária, em seu artigo 26, legitima a posse de bens privados, essa que pode ser transmitida por ato inter-vivos e causa-mortis, bem como convertida em propriedade (artigo 186 CRFB/88).
Profere o Código Civil Brasieiro de 2002, em seu artigo 1.196: “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade” e no artigo 1.228 caput e § 1º: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. ; § 1º - O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais [...]”. Ao tratar da posse como modelo da propriedade, induz-se que possuidor é aquele que exerce um dos poderes inerentes à propriedade à luz da função social.
Ao limitar incessantemente a possibilidade de adquirir uma propriedade por meio de usucapião a 1 (uma) ação petitória por modalidade e ao reduzir os prazos para a usucapião extraordinária e ordinária relativa a bens imóveis “se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou realizado investimentos de interesse social e econômico”, o Código Civil atenta objetiva a regularização fundiária, ao passo que prestigia a função social da propriedade (arts. 5º, inc. XXIII e 170, inc. III CRFB/88 e art. 1.228, § 1º CC/02), que determina que a propriedade urbana ou rural deverá, além de servir aos interesses do proprietário, estar em consonância com as necessidades e os interesses da coletividade e com a proteção do meio ambiente17.
A função social da propriedade, embora introduzida pela Constituição Federal Brasileira de 1988 como conceito aberto e indeterminado, tem sua caracterização orientada em se distinguindo a propriedade rural, em consonância com o art. 186. CRFB/88, da urbana, sobre a qual discorrem o artigo 182 § 2º CRFB/88 e o artigo 40 da Lei 10.257/2001, Estatuto da Cidade. Os requisitos a serem obedecidos a fim de examinar o cumprimento da função social da propriedade rural seriam aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Enquanto isso, “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”, esse último abrangido pelo Estatuto da Cidade.
Além disso, pode ser também possível relacionar, ainda que não expresso no ordenamento jurídico, a função social da propriedade à proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III CRFB/88) e ao direito fundamental à moradia (art. 6º CRFB/88).
O titular de fração de tempo que não comparece à propriedade durante o período para si discriminado, ou que não envia terceiros, seja por meio de locação temporária ou de cessão temporária de uso do imóvel, a fim de o preencher humanamente, estaria atentando contra a função social da propriedade, como resultado dessa reiterada omissão, podendo mesmo caracterizar renúncia ou abandono. Enquanto isso, o uso e gozo exercidos pelo terceiro durante a detenção initerrupta do imóvel na integralidade dos -sempre vacantes- períodos titulados pelo multiproprietário omisso constituiriam a posse in natura, já que, conforme prevê o artigo 1.204 CC/02, essa decorre do exercício de ao menos uma das faculdades inerentes do direito real de propriedade.
4. Natureza Jurídica da Multipropriedade e Institutos Possessórios e Desapropriadores
Vez que se trata o instituto da multipropriedade de direito real de propriedade, ulteriormente ao surgimento da Lei 13.777/18, tem-se que as unidades periódicas são suscetíveis de alienação, locação e cessão gratuita ou onerosa, conforme explicitamente disposto no artigo 1.385-I CC/02, dos direitos do multiproprietário. Ainda, cada unidade periódica detém inscrição ou matrícula imobiliária individualizada e é um fato gerador de tributo real próprio, obrigações propter rem, que acompanham a coisa, a exemplo, o IPTU, conforme disposição dos artigos 1.358-J CC/02 e 176§§ 10º,11º da Lei dos Registros Publicos (Lei 6.015/73). Desse modo, assim como ocorre frente ao condomínio edilício, não haveria solidariedade entre os multiproprietários, que seriam indiferentes a eventual penhora e expropriação da unidade periódica do inadimplente18, ainda mais em se considerando que, conforme prevê o artigo 1.358-L CC/02, “a transferência do direito de multipropriedade [...] não dependerá da anuência ou cientificação dos demais multiproprietários”.
O mesmo artigo acrescenta, ainda, que a transferência da quota-tempo e sua produção de efeitos perante terceiros dar-se-ão na forma da lei civil (solenidade no Registro de Imóveis, vide artigos 1.227 CC/02 e 176 Lei 6.015/73) e o artigo 1.358-T do CC/02 impõe, especificando que a renúncia translativa da unidade temporal seja realizada em favor do condomínio, de modo a dever, infere-se, na conjuntura de cessão de direitos, o antigo titular arcar com o imposto de transmissão da propriedade. A redação do artigo instiga a consideração de que é possível, também, a renúncia abdicativa, implicando a extinção dos diretos do proprietário para com sua quota-tempo sobre o imóvel. Sobre o tema, aborda Luciano de Camargo Penteado19: “A renúncia tem por efeito tornar o bem sem dono, isto é res nullius. Deste modo, perde a titularidade subjetiva, convertendo-se em bem vago que, preenchidos os pressupostos, poderá ser arrecadado. Assim como a alienação, a renúncia só produz efeitos quando levada a registro no CRI competente (1.275 CC parágrafo único).”
Analisa o ministro do Superior Tribunal de Justiça do estado de São Paulo João Otávio, que expressou, ainda anteriormente à codificação em lei especial e incorporação ao Código Civil Brasileiro de 2002, em voto no REsp nº 1.546.165-SP20, que “o multiproprietário, no caso de penhora do imóvel objeto de compartilhamento espaço- temporal (time-sharing), tem, nos embargos de terceiro, o instrumento judicial protetivo de sua fração ideal do bem objeto de constrição”, e que “é insubsistente a penhora sobre a integralidade do imóvel submetido ao regime de multipropriedade na hipótese em que a parte embargante é titular de fração ideal por conta de cessão de direitos em que figurou como cessionária.” Dessa maneira, corrobora que“eventual penhora deverá recair sobre o direito real de propriedade sobre a unidade periódica, ressalvados os casos de impenhorabilidade legal”. Convém apontar que jamais poderão ser penhorados os móveis que guarnecem o imóvel, pois eles estão vinculados às demais unidades periódicas de modo indivisível (vide artigo 1.358-D CC).
Cabe acrescentar que, devido à sua natureza axiomática de direito real, a fração de tempo na multipropriedade alcançaria, ainda, a proteção sumulada ao bem de família (s.486 STJ e artigos 1º e 5º da Lei nº 8.009/90), sobre a impenhorabilidade do único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente. Essa hipótese, todavia, sob o cenário projetado pela multipropriedade, seria raríssima, dependendo que o multiproprietário constituísse múltiplas multipropriedades, de modo que a soma das unidades periódicas tituladas convergisse na integralidade do ano civil. Essa hipótese, além de deveras insólita, exigiria interpretação individualizada do dispositivo que trata da impenhorabilidade do bem de família, visto que o indivíduo não seria proprietário de um único imóvel utilizado para residência, mas sim de múltiplas unidades periódicas, às quais tem acesso e detenção em períodos de tempo não congruentes.
Nesse panorama, vislumbra-se a adjudicação, codificada e caracterizada por Moacyr Amaral Santos21 como “um ato executório, um ato processual de índole coativa, por meio do qual o Estado, no exercício de sua função jurisdicional, e para realização da sanção formulada no título executivo, transfere ao exequente, ou outro credor, para satisfação e extinção do seu crédito, bens do devedor”. Cândido Rangel Dinamarco a conjectura como “um dos modos pelos quais se faz a expropriação, ou seja, tanto quanto a arrematação é ela uma alienação forçada”. Consoante ao que fora analisado anteriormente (art. 1.358-S CC/02), é possível perder a propriedade de uma fração temporal por meio de adjudicação, ainda que em favor do condomínio, quando relativo a dívidas internas. Interpretando-se de modo análogo, e n’ausência de disposição em contrário, poderia também haver o ato executivo e coercitivo de expropriação em favor de terceiro, no que tange a dívidas externas ao condomínio. Desse modo, constitui-se mais uma forma de perda da propriedade imóvel.
Interessa reportar que o parágrafo único no mesmo dispositivo, que aborda o caso de a fração-tempo elegível a adjudicação em decorrência de dívidas internas ser de condomínio destinado essencialmente a negócios de locação, poderia ser analisado como mecanismo único de anticrese legal (art. 1.419. c/c 1.507 CC/02), por meio do qual a fração de tempo transmutar-se-ia coercitivamente em direito real de garantia de frutos.
Nesse sentido, consolida-se o entendimento de que a fração de tempo na multipropriedade tem natureza incontestável de direito real independente, podendo ser objeto de transmissão, renúncia, perda e, ainda, transfigurar-se em objeto real de garantia de obrigação principal, notavelmente nos casos apreciados, de adjudicação, anticrese, alienação fiduciária e de todos os demais. A multipropriedade imobiliária, assim, pode ser definida como múltiplas propriedades relacionadas a um mesmo imóvel indivisível, acrescidas de obrigações específicas discriminadas no artigo 1.358-J, notadamente a conservação do imóvel e do mobiliário que o compõe e o limite temporal no que concerne às suas faculdades. A “fração de tempo”, que corresponde a essa propriedade individualizada decorrente da multipropriedade, que é acrescida de deveres e tem suas faculdades limitadas pelo tempo, realçada sua res habilis, capacidade de ser configurada como objeto de comercialização, é digna de todas as demais formas de perda e aquisição da propriedade, dentre as quais, a usucapião.