No último dia 24 de agosto de 2006, o Presidente da República sancionou a Lei nº 11.343, denominada Nova Lei de Tóxicos, que entrará em efetivo vigor nos próximos quarenta e cinco dias, e que revogou os antigos diplomas que tratavam do assunto, quais sejam, as Leis 6368/76 e 10.409/2002.
Com relação ao usuário e/ou dependente de drogas, a novíssima Lei estabeleceu, no parágrafo 1º do artigo 48, que o agente de qualquer das condutas previstas no artigo 28 e seu § 1º daquela Lei (que tipifica a conduta do usuário e/ou dependente de drogas) será processado e julgado nos moldes preconizados na Lei dos Juizados Especiais (artigo 60 e seguintes da Lei 9099/95), e a ele não se imporá prisão em flagrante, inexistindo previsão de pena privativa de liberdade ou multa, e sim medidas judiciais, tais como advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programa ou curso educativo.
Todavia, surpreendido nessas condições, deverá ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado.
Se ausente a autoridade judicial (o que por óbvio ocorrerá, haja vista a inexistência de Plantão Judiciário do Jecrim), a lavratura do termo circunstanciado e requisições dos exames e perícias necessários deverá ser feita pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada sua detenção, oportunidade em que o agente será submetido a exame de corpo de delito, se o requerer, e em seguida será liberado.
Fiquemos por enquanto nesses aspectos da novel Lei de Tóxicos e que comportam alguns questionamentos.
De fato, segundo Luiz Flávio Gomes, a posse de droga para consumo pessoal deixou de ser crime (e nem passou a ser contravenção) e de modo algum permite a pena de prisão, tratando-se, portanto, de ilícito "sui generis", cujas sanções cominadas devem ser aplicadas não por uma autoridade administrativa, sim, por um juiz (juiz dos juizados ou da vara especializada). [01]
Se assim o é, como enfrentar a situação em que o agente, ao ser surpreendido nesse tipo de conduta, recusa-se a acompanhar o policial até o Juizado ou até a Delegacia de Polícia respectiva?
Ou ainda quando, além de desobedecer, acaba resistindo a ser conduzido coercitivamente até aqueles órgãos?
De outra banda, indaga-se como deve proceder a Autoridade Policial ou seus agentes diante de uma eventual denúncia da prática da conduta descrita no artigo 28 (ou do seu § 1º) do novo diploma legal, cujo fato estiver ocorrendo no interior da residência do suspeito. Sob o ordenamento anterior, vigorava o entendimento que havia no sentido de que em tal hipótese é cabível a busca e apreensão, a qualquer hora do dia ou da hora, por se tratar de delito permanente, cuja prisão em flagrante é admitida. Contudo, uma vez que não mais existe a possibilidade de prisão – ainda que em flagrante – para esse tipo de delito, a licitude de tal diligência se afigura discutível.
Penso que, com relação a eventual desobediência ou resistência do agente surpreendido naquelas condições previstas no artigo 28 mencionado, o disposto no § 6º do citado artigo poderia, em tese, ser usado analogicamente para tal situação, de sorte a retirar a tipicidade desses delitos e tornando tais fatos penalmente atípicos, uma vez que para garantia do cumprimento daquelas medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente, a admoestação verbal e multa.
E assim deve ser pela simples e já conhecida razão de que para a configuração do delito de desobediência não basta o fato material do não cumprimento da ordem legal dada pelo funcionário competente, sendo indispensável que, além de legal a ordem, não haja sanção especial para o seu não cumprimento. [02]
No caso, a vingar o entendimento de que os delitos previstos nos artigos 329 e 330 do Código Penal podem ser aplicados na eventual recalcitrância do agente, frustrada ficaria o espírito da Lei 11.343/2006, uma vez que esses dispositivos são crimes e a prisão em flagrante é perfeitamente cabível na hipótese.
Em outras palavras, o agente deixaria de sofrer qualquer medida de constrição de sua liberdade em face do artigo 28 da nova Lei, porém seria preso e conduzido por ter cometido desobediência ou resistência quando surpreendido como usuário de drogas, em conseqüência do que poderia ser responsabilizado criminalmente, enquanto que naquela outra hipótese no máximo seria admoestado ou multado, se recalcitrante.
A busca e apreensão domiciliar nas situações do artigo 28 e § 1º da mencionada Lei, smj, também está vedada. De fato, o artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal de 1988, dispõe que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. (grifei).
Ora, se o § 2º do artigo 28 dispõe que, em se tratando da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, ipso facto, eventual busca e apreensão nessa modalidade delituosa é vedada em face daquela norma constitucional.
E mais. Nem poderia haver expedição de mandado judicial para averiguação de eventual conduta prevista no artigo 28 e § 1º, acaso estivessem ocorrendo em domicílio durante o dia, uma vez que o artigo 240 do CPP disciplina situações que envolvam infrações penais, o que, por si só, afasta sua incidência nas hipóteses do artigo 28 e seu § 1º da Lei 11.343/06, que prevê ilícito sui generis, como já dito, e não infrações penais.
Tempos difíceis esses para a Autoridade Policial e seus agentes. No espaço de apenas dezesseis dias (de 08 a 24 de agosto de 2006), duas leis polêmicas foram sancionadas pelo Poder Executivo – ambas contendo situações embaraçosas para os operadores do Direito, principalmente na fase policial.
A Lei 11.340/2006, sancionada no dia 08, ao mesmo tempo em que exige da ofendida (naquelas condições do artigo 129, § 9º do CP) a representação perante a autoridade policial, por outro lado afasta a incidência in totum da Lei 9.099/95 para os efeitos daquela Lei, olvidando-se o legislador que justamente o artigo 88 deste último diploma é que, de forma inovadora, havia passado a exigir essa condição de procedibilidade para os delitos de lesão corporal dolosa leve e lesão corporal culposa.
Agora, a novíssima Lei de Tóxicos, sancionada no dia 24, descriminaliza a conduta do usuário e/ou dependente de droga, mas não disponibiliza aos agentes de Polícia Judiciária os instrumentos legais necessários e suficientes para dar enfrentamento às eventuais recalcitrâncias e resistências dos respectivos autores dos ilícitos sui generis previstos no artigo 28 e seu § 1º, bem como inviabiliza busca e apreensão quando a conduta for praticada no âmbito doméstico, em caso de flagrante delito ou mesmo por determinação judicial.
Com razão, Luiz Flávio Gomes enfatiza no artigo já mencionado que a posse de droga para consumo pessoal não mais pertence ao Direito penal, mas constitui, sem sombra de dúvida, um típico exemplo de Direito judicial sancionador.
E se assim o é, o usuário de drogas só poderá ser conduzido pelo agente público se assim o desejar, bem como sua casa tornou-se inviolável mesmo quando nela estiver exercendo seu "direito" de consumir ou cultivar drogas, sem, por óbvio, qualquer conotação de mercancia.
Por derradeiro, interessante observar que o agente a quem for imputada a conduta de usuário de droga poderá se recusar a assinar o termo de comparecimento em juízo, previsto no parágrafo único do artigo 69 da Lei 9099/95, sem que disso resulte sua autuação em flagrante, haja vista que a ele não se imporá prisão em flagrante, bem como sua detenção está vedada, conforme se infere dos §§ 2º e 3º do artigo 48 da Lei 11.343/06.
Durma-se com um barulho desses.
Notas
01 GOMES, Luiz Flávio. Nova Lei de Tóxicos: Descriminalização da Posse de Droga Para Consumo Pessoal. Disponível em: www.lfg.com.br/public_html/article.php?story. Acesso em 25 de agosto de 2006.
02 RT 399/283.