Prisão para os casos de falsa vacinação?

22/02/2021 às 17:47
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Como responsabilizar os profissionais da saúde que estão sendo flagrados aplicando irregularmente a vacina contra a Covid-19 no Brasil, mediante a exposição dos delitos previstos no ordenamento jurídico pátrio.

Há quase um ano o Brasil registrava o primeiro caso de infectado pelo coronavírus [1], um homem de sessenta e um anos de idade que havia viajado para a Itália deu entrada em um hospital de São Paulo.

De lá para cá, o país mergulhou em uma crise de saúde pública sem precedentes, seja em razão da novidade em si que é uma pandemia por uma doença de tão fácil contágio, a falta de estudos científicos específicos, diversas trocas de comando para o cargo de Ministro da Saúde, falta de clareza quanto às políticas públicas a serem adotadas, o mal exemplo de muitos em furar as regras de isolamento e de utilização de máscara, a disseminação de fake news sobre tratamento precoce, o esgotamento do número de leitos hospitalares em várias cidades e até a inacreditável falta de oxigênio nas unidades de saúde, dentre outros motivos. Isso sem contar a consequente crise econômica que deixou milhões de pessoas sem emprego, determinou o fechamento de empresas, o aumento do preço de produtos básicos alimentares e de fármacos, etc.

Eis que então surge uma luz no fim do túnel: em 17 de janeiro deste ano a Anvisa liberou o uso emergencial de duas vacinas contra a Covid-19 no Brasil[2], a Coronavac, produzida em parceria entre o laboratório chinês Zinovac e o Instituto Butantan, e a AstraZeneca, desenvolvida pela Universidade de Oxford e produzida pela Fiocruz. A notícia lançou um sopro de esperança na população brasileira, que já acompanhava pelos noticiários a vacinação que estava acontecendo em outros países ao redor do mundo, e ansiava pela imunização.

Tão logo os lotes com as doses foram sendo distribuídas aos estados da federação, registros de “fura-fila” e falsas aplicações foram sendo noticiados, causando verdadeiro espanto, haja vista que, além da dificuldade de se vencer os obstáculos naturais decorrentes da logística em imunizar a população de um país tão grande como o Brasil, não se contava que o fator humano seria um problema, que alguns se colocariam em primeiro plano em detrimento daqueles considerados como prioridade, tampouco que alguns profissionais detentores do compromisso legal de impedir a propagação de doenças, fossem dolosamente impedir que cidadãos recebessem a vacina.

Quanto àqueles que não obedeceram à ordem de imunização, se ocupantes de cargos públicos estão sendo exonerados, impedidos de receber a segunda dose ou apenas recebe-la quando chegar o momento do grupo em que se enquadra. Por exemplo, em janeiro deste ano, o Ministério Público do Estado da Bahia{C}[3] ajuizou ação por improbidade administrativa contra um prefeito que se colocou à frente da população do seu município e foi o primeiro a ser vacinado, em afronta aos princípios da impessoalidade e da moralidade, com pedido de condenação ao pagamento de indenização coletiva no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).

Em relação àqueles que não são servidores públicos, só há notícias de impedimento da aplicação da segunda dose (além da exposição da atitude egoísta), como no caso do Ministério Público do Estado do Acre[4], o qual emitiu recomendação para que a Secretaria de Estado de Saúde deixe de aplicar a segunda dose da vacina em estagiários de psicologia da policlínica da Polícia Militar, após a veiculação de notícia de que uma das estagiárias, esposa de um Coronel da entidade, havia sido vacinada, em detrimento aos demais profissionais da saúde que estão na linha de frente ao combate da Covid-19.  

Ressalta-se que tais atitudes são tão moralmente repreensíveis que diversos destes profissionais da saúde flagrados simulando a aplicação da vacina estão sendo imediatamente afastados do trabalho, ou mesmo até sendo demitidos na esfera administrativa, sem prejuízo de investigação nas demais searas jurídicas. Na esfera cível, a conduta pode configurar improbidade administrativa, viabilizando sanções como a perda do cargo público, suspensão de direitos políticos e pagamento de multa, em caso de procedência.

Já no âmbito criminal, ultima ratio, o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 132, estabelece pena de detenção de três meses a um ano para aquele que expõe a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente. O artigo 268 do mesmo diploma prevê o delito de infração de medida sanitária preventiva, com pena de detenção de um mês a um ano, e multa. E há, também, o crime de peculato, mais grave, capitulado no artigo 312 do Código Penal, quando o agente público se apropria de bem do qual tem a posse em razão do cargo para desviá-lo em proveito próprio ou alheio, com pena prevista de dois a doze anos de reclusão, e multa.

O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro[5], em 19/02/2021, denunciou uma técnica de enfermagem pela prática dos crimes de peculato e por não cumprir determinação do poder público para impedir propagação de doença contagiosa, previstos, respectivamente, nos artigos 312, caput, e 268, parágrafo único, ambos do Código Penal, haja vista ter sido filmada simulando a vacinação de um idoso, pois ela não apertou o êmbolo da seringa com o imunizante, com o intuito de desviar, em proveito próprio, o medicamento.  

Por ocasião do oferecimento da exordial acusatória, o Órgão Ministerial requereu a decretação da prisão preventiva da referida profissional, salientando que “sua liberdade traz riscos para a ordem pública, sendo a custódia cautelar preventiva medida necessária para a prevenção dos crimes narrados”.

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Ressalta-se, ainda, o posicionamento de que a vacinação irregular pode configurar, inclusive, crime de tentativa de homicídio, considerando o dolo eventual do profissional da saúde ao assumir o risco de o falsamente imunizado falecer em decorrência da Covid-19, mediante a aplicação de vacina sem conteúdo.

Neste sentido, André Luís Callegari[6] defende que:

(...) os profissionais da saúde que agiram dessa forma não só praticam uma ação dolosa (intencional) ao não aplicarem o imunizante como também assumem o risco de morte do paciente, pois, ao não estar de fato imunizado, o paciente poderá morrer ao contrair a doença. Assim, além do artigo 132 do Código Penal (expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente), uma vez havendo o efetivo contágio do paciente, creio que, em análise perfunctória, é possível a acusação de tentativa de homicídio contra o profissional que deixe intencionalmente de aplicar a dose da vacina.

Se não fosse só por essa vertente penal, também é de ressaltar que os profissionais da saúde estão numa posição de garantes, nos exatos termos do artigo 13, parágrafo segundo, do Código Penal, ou seja, são responsáveis pela causação do resultado pelo risco assumido em face da posição de garantia.

Assim, se o paciente supostamente imunizado pelo profissional da saúde vier a falecer em face de contrair o coronavírus, em tese o profissional da saúde seria responsável por essa morte. Isso está de acordo com as normas legais da posição de garante, em que a causalidade é normativa imposta por um dever de agir no caso específico.

De acordo com este raciocínio, no momento tão grave de pandemia, a missão de salvar vida daqueles que trabalham na área da saúde, quando afastada conscientemente transcende à esfera ética ou moral e configura infração penal. Desta forma, ao colocar em risco de morte o cidadão, se subsume ao delito de tentativa de homicídio.

Assim, verifica-se que a conduta irregular dos profissionais de saúde não deve ficar impune, haja vista as graves consequências que podem resultar desta imunização fictícia, e o ordenamento jurídico pátrio já prevê medidas e penas a serem perquiridas para assegurar maior transparência na vacinação. Ora, se as políticas públicas iniciaram a vacinação por considerados grupos prioritários, foi justamente para permitir que os cidadãos mais suscetíveis a adquirirem a Covid-19 fossem logo imunizados. Se o indivíduo recebe uma aplicação sem conteúdo da vacina, pensa que está imunizado e automaticamente relaxa na adoção das medidas de prevenção da doença, podendo a vir a falecer caso seja infectado com o coronavírus, além de colocar em risco de contaminação todas as pessoas com as quais tiver contato, levando a um círculo vicioso que nunca conterá o avanço desta moléstia no país.

Portanto, a atuação enérgica por parte dos órgãos do sistema de justiça se impõe. A fiscalização pelos órgãos de classe dos profissionais da saúde também se revela imprescindível. E o acompanhamento da vacinação contra a Covid-19 pelos cidadãos é de suma importância, pois são os indivíduos que participam do processo de imunização que até agora levaram ao conhecimento público as condutas ilegais e que tanto prejudicam a sociedade brasileira, foram as gravações por celulares de familiares que tornou pública essa série de notícias de aplicação irregular das doses, quando se pretendia guardar para a posteridade o registro de imunização neste momento de pandemia.

Espera-se que o “jeitinho brasileiro” não seja mais uma vez motivo de vergonha, mas que leve à elucidação dos casos de falsa vacinação e responsabilização daqueles que menosprezam a vida alheia.


[1] Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/saude-e-vigilancia-sanitaria/2020/02/brasil-confirma-primeiro-caso-do-novo-coronavirus. Acesso em: 22/02/2021.

[2] Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2021/01/17/relatora-na-anvisa-vota-a-favor-do-uso-emergencial-das-vacinas-coronovac-e-de-oxford.ghtml. Acesso em 22/02/2021.

[3] Disponível em: https://www.mpba.mp.br/noticia/55453. Acesso em: 22/02/2021.

[4] Disponível em https://www.mpac.mp.br/mpac-recomenda-nao-aplicar-2a-dose-de-vacina-em-estagiarios-da-policlinica-da-pm/. Acesso em: 22/02/2021.

[5] Disponível em: http://www.mprj.mp.br/documents/20184/540394/076008152021__denncia_art_268_e_312_cp__vacina_covid_19__priso_preventiva.pdf. Acesso em: 22/02/2021.

[6] CALLEGARI, André Luís. Vacinar sem o conteúdo da vacina: tentativa de homicídio? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-fev-19/andre-callegari-vacina-conteudo-tentativa-homicidio. Acesso em: 22/02/2021.

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Sobre a autora
Tatiane Brandão Vilela

Analista Processual do Ministério Público do Estado do Acre

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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