6) CONCLUSÃO
À vista do exposto, e com a vênias de estilo àqueles que pensam diversamente, parece-nos inevitável e imperiosa a conclusão no sentido de afastar toda e qualquer restrição que se pretenda impor ao constitucional direito à vida (de 1ª geração) nas situações elencadas e enfrentadas ao longo destas breves considerações, sobretudo por ser dever do Judiciário, ex vi da vedação expressa em nosso arquétipo ao non liquet, dar tutela capaz de eficazmente assegurar a manutenção do direito material posto em juízo, [27] notadamente diante da inolvidável falência do modelo cronológico instituído para reger as famigeradas listas de espera, com o que se exigirá do magistrado, devidamente provocado via tutela jurisdicional, análise acurada, com espírito aberto e casuística de cada caso a ele submetido, devendo, ao decidir, sopesar sempre o princípio da proporcionalidade, sem se furtar de sua obrigação que emana do Diploma Constitucional, e estar atento a possíveis tentativas de fraude ao sistema - dentre elas, v.g., a comercialização de órgãos (vedada pela Constituição) e a burla injustificada à lista de espera -; isto porque, consoante admoesta o sempre fecundo magistério do mestre Piero Calamandrei, "as leis são fórmulas vazias, que o juiz cada vez preenche não só com sua lógica, mas também com seu sentimento. Antes de aplicar uma lei, o juiz, como homem, é levado a julgá-la; conforme sua consciência moral e sua opinião política a aprove ou a reprove, ele a aplicará com maior ou menor convicção, isto é, com maior ou menor fidelidade. A interpretação das leis deixa ao juiz certa margem de opção; dentro dessa margem, quem comanda não é a lei inexorável, mas o coração mutável". [28]
Nesse compasso, portanto, sendo vedada a autotutela, [29] e se é verdade que o novo processo não é mais um processo neutro, mas um processo que sabe que, da mesma forma que todos não são iguais, os bens que constituem os litígios não têm igual valor jurídico, [30] na realidade, o juiz passa agora a ter o poder-dever de dar efetividade ao seu trabalho – máxime em tais hipóteses, onde se discute o direito à vida -, prestando a tutela jurisdicional sempre de forma efetiva; jamais podendo se esquivar do seu dever de determinar o meio executivo adequado e cruzar os braços diante de eventual omissão legislativa ou de falta de clareza da lei - como se o dever de prestar a tutela jurisdicional não fosse seu, mas estivesse na exclusiva dependência do legislador -, [31] mesmo porque a toga não é um sudário. Por sob ela há um coração que pulsa, há sangue que flui, há nervos que tremem, há uma alma que sente. [32]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALAMANDREI, Piero. Eles, Os Juízes, Vistos por um Advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. 14ª ed., São Paulo: RT, 1998.
COUTURE, Eduardo Juan. Fundamentos do Direito Processual Civil. Traduzido por Rubens Gomes de Sousa. São Paulo: Saraiva, 1946.
MARQUES, José Frederico. Ensaio sobre a jurisdição voluntária. 2ª ed., São Paulo: Bookseller, 1999.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002.
NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 7ª ed., São Paulo: RT, 2003.
_______________________________________________. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. São Paulo: RT, 2006.
SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de Direito Processual Civil. Vol. III, 4ª ed., n. 2.052, São Paulo: RT, 1998.
Notas
01 TJSP - Agravo de Instrumento n. 306.823-5/5 – São Paulo – 8ª Câmara de Direito Público – Relator: Caetano Lagrasta – 28.05.03. Em igual sentido: "MEDIDA CAUTELAR – Liminar – Transplante duplo de órgãos – Prioridade no atendimento – Inadmissibilidade – Lista única de receptores editada por lei federal e regulamentada por decreto – Manutenção dos critérios insertos no Ofício n.º 3197 da Secretaria da Saúde – Impossibilidade – Incompatibilidade com o ato regulamentar vinculado – Liminar revogada – Recurso provido" (JTJ 210/259)
02 TJSP - Agravo de Instrumento n. 306.823-5/5 – São Paulo – 8ª Câmara de Direito Público – Relator: Caetano Lagrasta – 28.05.03.
03 TJRS, Apelação n. 70011591963 – 3ª Câmara Cível – Relator Luiz Ari Azambuja Ramos – 07.07.05. Em igual senda: "AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. SAÚDE PÚBLICA. PORTADOR DE CIRROSE ALCOOL + CHC. NECESSIDADE DE TRANSPLANTE DE FÍGADO. INSCRIÇÃO NO SISTEMA NACIONAL DE TRANSPLANTE. ALEGAÇÃO DE IMINENTE RISCO DE VIDA. ALTERAÇÃO DA ORDEM DE INSCRIÇÃO. AUSÊNCIA DE PROVA IMPRESCINDÍVEL. ÔNUS PROBATÓRIO DO AGRAVANTE. LIMINAR INDEFERIDA. A inobservância do critério cronológico da lista dos pacientes que estão a espera de um transplante de fígado só poderá ocorrer mediante respaldo da autoridade competente, o que inexiste no caso" (TJRS, Agravo de Instrumento n. 70008701203 – 4ª Câmara Cível – Relator: Wellington Pacheco Barros – 30.06.04)
04 Art. 10. O transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)
05 TJSP – Agravo de Instrumento n. 365.796-4/9– 6ª Câmara de Direito Privado – Relator: Magno Araújo – 11.11.04.
06 Ibidem.
07 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. São Paulo: RT, 2006, p. 118.
08 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 128-129.
09 TJSP, Apelação Cível n° 293.675.5/1-00.
10 RTJ 99/790.
11 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 292.
12 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 7ª ed., São Paulo: RT, 2003, p. 127.
13 Ibidem, p. 128. Nessa senda, nunca é demais recordar, memorável julgado do colendo STF, onde restou assente que: "a garantia constitucional alusiva ao acesso ao judiciário engloba a entrega da prestação jurisdicional de forma completa, emitindo o estado-juiz entendimento explícito sobre as matérias de defesa veiculadas pelas partes. nisto está a essência da norma inserta no inciso XXXV do art. 5º da Carta da República" (STF – RE nº 172.084, Rel. Min. Marco Aurélio de Melo, DJ 03/03/1995).
14 Justiça autoriza paciente a furar fila de
transplante. Consultor Jurídico, 01 fev. 2005. Disponível em:
15 Ibidem.
16 Ibidem.
17 Ibidem.
18 Acerca da firmeza e tenacidade exigidas do juiz ao julgar, oportuno invocar o sempre lúcido e fecundo magistério de Piero Calamandrei: "Não conheço outro ofício que exija, de quem o exerce, mais que o do juiz, um forte senso de viril dignidade, aquele senso que impõe buscar na sua consciência, mais que nas ordens alheias, a justificação do seu modo de agir, e de rosto descoberto assumir plenamente a responsabilidade por ele." (Eles, Os Juízes, Vistos por um Advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 351)
19 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 82.
20 Art. 9º da Lei 9.434/97: É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)
21 Como manda a CF/88: Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 4º - A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.
22 A qual deve ser manifestada nos termos da lei: Art. 9º, § 4º da Lei 9.434/97: O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada.
23 Art. 9º, § 3º da Lei 9.434/97: Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora.
24 Art. 2º, Parágrafo único, da Lei 9.434/97: A realização de transplantes ou enxertos de tecidos, órgãos e partes do corpo humano só poderá ser autorizada após a realização, no doador, de todos os testes de triagem para diagnóstico de infecção e infestação exigidos em normas regulamentares expedidas pelo Ministério da Saúde. (Redação dada pela Lei n.º 10.211, de 23.3.2001)
25 Segundo reza o Art. 2º, caput, da Lei 9.434/97: A realização de transplante ou enxertos de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano só poderá ser realizada por estabelecimento de saúde, público ou privado, e por equipes médico-cirúrgicas de remoção e transplante previamente autorizados pelo órgão de gestão nacional do Sistema Único de Saúde.
26 E justifica-se, nesta hipótese, o pedido de alvará, dado a manifesta deferência que faz o art. 9º da Lei 9.434/97, à necessidade de autorização judicial para que se aperfeiçoe o negócio-jurídico em questão (doação) - quando não for esta efetuada entre parentes consangüíneos até quarto grau ou cônjuge (situação em que a lei dispensa a autorização judicial) -, apresentando-se o referido pedido como hipótese típica de utilização de procedimento de jurisdição voluntária, notadamente, por não haver lide ou conflito de interesses, sendo o Estado chamado tão-somente para chancelar a vontade das partes, aperfeiçoando o negócio entabulado. Nesse descortino, válido colacionar o sempre lúcido escólio do saudoso e imortal Frederico Marques: "Justamente por ser a intervenção judicial o resultado de uma determinação específica da lei jurídico-material, a jurisdição voluntária constitui matéria de direito estrito, como já acentuara DAVID LASCANO. Logo, só onde houver a exigência da intervenção judiciária para se completar ou se realizar o negócio jurídico-privado, é que se desenha ou surge um caso de jurisdição voluntária" (MARQUES, José Frederico. Ensaio sobre a jurisdição voluntária. 2ª ed., São Paulo: Bookseller, 1999, p. 281). Em igual senda, leciona o pranteado Ernane Fidélis dos Santos: "Por serem exceção, os atos de jurisdição voluntária têm catalogação expressa e restrita, isto é, o juiz só interfere nos negócios dos particulares e nos atos de seu interesse quando a lei federal, ou a estadual que não a contraria, assim o determinar" (SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de Direito Processual Civil. Vol. III, 4ª ed., n. 2.052, São Paulo: RT, p. 312)
27 "Como a jurisdição é função estatal e seu exercício dever do Estado, não pode o juiz eximir-se de atuar no processo, desde que tenha sido adequadamente provocado: no direito moderno não se admite que o juiz lave as mãos e pronuncie o non liquet diante de uma causa incômoda ou complexa, porque tal conduta importaria em evidente denegação de justiça e violação da garantia constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional (const., art. 5º inc. XXXV, e CPC, art. 126)" (CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. 14ª ed., São Paulo: RT, 1998, p. 293)
28 Eles, Os Juízes, Vistos por um Advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 221-222.
29 "Quando o homem sente-se vítima de uma injustiça, de algo que ele considera contrário à sua condição de sujeito de direitos, não lhe resta outra saída senão recorrer à autoridade. Privado como se acha do poder de fazer justiça com as próprias mãos, fica-lhe, em substituição, o poder jurídico de solicitar a colaboração dos poderes constituídos do Estado." (COUTURE, Eduardo Juan. Fundamentos do Direito Processual Civil. Traduzido por Rubens Gomes de Sousa. São Paulo: Saraiva, 1946. p. 41.)
30 MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 7ª ed., São Paulo: RT, 2002, p. 25.
31 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: RT, 2004, p. 235.
32 ROSA, Eliasar. Dicionários de conceitos para o advogado. Rio de Janeiro: Rio, 1958, p. 41. A propósito, lembra Piero Calamandrei: "A missão do juiz é tão elevada em nossa estima, a confiança nele é tão necessária, que as fraquezas humanas, que não se notam ou se perdoam em qualquer outra ordem de funcionários públicos, parecem inconcebíveis num magistrado" (Eles, Os Juízes, Vistos por um Advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 263).