1 INTRODUÇÃO
O recente acordo entre Mercosul e União Europeia (Acordo Mercosul-UE) demonstra a realidade inquestionável de suas dimensões: dois blocos econômicos que somam 25% de toda a economia mundial e uma população de cerca de 800 milhões de pessoas.[1] Seu potencial é gigante e pode atingir patamares como 95% de produtos exportados pelo Brasil para o bloco europeu a taxa zero.[2] Em que pese esse fato, mesmo a União Europeia (UE) sendo, como um só bloco, o terceiro maior parceiro comercial do Brasil[3], o estado de Santa Catarina pouco, ou quase nada, exporta atualmente para aquele mercado.[4]
Conforme se observa dos dados do Observatório da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC), países da União Europeia sequer entram na lista dos principais destinos das exportações[5]. Considerando que o setor mais proeminente do estado é o de carne de aves (21% das exportações), abalado seriamente após a Operação Carne Fraca[6], e que o Acordo Mercosul-UE prevê uma quota de 180 mil toneladas a 0% para esse setor[7], é interessante que o documento seja ratificado pelos Parlamentos do Mercosul e seja incluído nos debates do estado de Santa Catarina para que seus desdobramentos possam trazer desenvolvimento local para o setor em questão.
Além disso, faz-se mister discutir a adequação local às regras sanitárias estabelecidas pelo acordo e sua adequação às regras internacionais da Organização Mundial do Comércio e as legislações da UE aplicáveis à avicultura. Assim, deve-se observar que os avicultores catarinenses devem estar atentos a essas regras: mesmo que o Acordo entre Mercosul e UE venha a ser alterado, as MSF devem permanecer compatíveis, em sua essência, com as normas internacionais do Acordo SPS da OMC e seu Anexo B e às leis existentes na UE.
Nesse intuito, o capítulo dois pretende demonstrar o Acordo Mercosul-UE e sua vinculação às regras da OMC, especialmente ao Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (Acordo SPS). No terceiro e quarto capítulos, analisam-se os princípio da Transparência e da Não-Discriminação (e eventuais medidas excepcionais) respectivamente. No quinto capítulo, são trazidos alguns dos principais mandamentos do Acordo SPS, da Comissão Codex Alimentarius, da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE - Office International des Epizooties) e das regras da UE para o setor aviário. No sexto, realiza-se recapitulação das análises e possíveis conclusões.
2 REGRAS SANITÁRIAS DO ACORDO MERCOSUL-UE
Malgrado sua possível transitoriedade até versão final, o Acordo entre Mercosul e UE tende a obedecer as regras e princípios gerais de comércio atinentes a medidas sanitárias e fitossanitárias (MSF) com base no Acordo SPS. Assim se extrai do excerto exposto pela própria OMC:
“Estes acordos [da OMC] são o fundamento para o comércio global. Em essência, eles são contratos garantindo aos membros da OMC importantes direitos comerciais. Eles igualmente vinculam os governos a manterem suas políticas comerciais transparentes e previsíveis, o que beneficia todos.”[8](Tradução nossa)
Essa afirmação é corroborada pela análise de seus dispositivos iniciais, que fazem referência a regramentos internacionais sobre MSF, principalmente o artigo 4º sobre direitos e obrigações, que determina: “As Partes reafirmam seus direitos e deveres sob o Acordo SPS/OMC. Nada no presente capítulo deve afetar os direitos e deveres que cada Parte possui sob a égide do Acordo SPS/OMC.”
Quanto ao artigo 2º, este dispõe que o Acordo deve seguir as MSF definidas no Anexo A do Acordo SPS, enquanto, no artigo 3º, há menção a regras internacionais de MSF do Anexo A do Acordo SPS, do Codex Alimentarius Commission e da OIE.
Dessa forma, em uma análise sobre os dispositivos do Acordo Mercosul-UE, denota-se que o documento consiste apenas um prolongamento das determinações internacionais sobre MSF, transcrevendo as regras internacionais para o âmbito Mercosul-UE. Assim, é interessante destacar algumas das principais regras internacionais, referenciando sua correspondência sobre o Acordo Mercosul-UE.
3 PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA
Nas instruções da OMC, a transparência sobre MSF é um dever dos governos, tanto para sua inclusão quanto alteração, e estes devem promover a informação e a comunicação sobre tais medidas às demais Partes, a fim de promover melhores padrões nacionais, bem como proteger o consumo e o comércio de protecionismo obscuro por meio de regramentos técnicos desnecessários.[9]
Isso é o que se prevê no art. 7º do Acordo SPS, que determina que “Os Membros notificarão as alterações em suas medidas sanitárias ou fitossanitárias e fornecerão informação sobre suas medidas sanitárias ou fitossanitárias de acordo com as disposições do Anexo B.”
O Acordo Mercosul-UE, por sua vez, está alinhado a esse mandamento sobre transparência por meio de seu art. 11, que determina que haja troca de informação sobre MSF de uma Parte, bem como exige a publicidade das informações, como MSF, pestes controladas e mudança nas MSF. Além disso, enquanto o mesmo artigo prevê a obrigação de se estabelecerem centros de comunicação para obtenção de informações, o art. 12 prevê o dever de notificação em casos de risco, que devem ser notificados aos centros de informação.
Como se percebe, o Acordo entre Mercosul e UE está alinhado ao princípio da Transparência sobre MSF da OMC. Assim, analisa-se o Acordo à luz do Acordo SPS, que, no que diz respeito à transparência, divide-se em três pontos em seu Anexo B: previsão de informação, interação com demais Partes e prazos .[10]
Nessa linha, quanto à informação, o Anexo B determina que os membros publiquem seus regulamentos, a fim de dar conhecimento geral. Além disso, em seu ponto 3, prevê a criação de centros de informação, junto aos quais demais membros possam receber informação e documentos referentes às MSF. Assim, adotando ou alterando uma MSF, a Parte deve informar as demais sobre sua decisão. Conforme ressalta Downes, esse dever de informar aplica-se quando três critérios são preenchidos: i) existência de uma proposta de MSF geral aplicável; ii) existência de MSF que não é substancialmente a mesma que padrões internacionais pré-estabelecidos, e iii) existência de efeito significativo no comércio com demais membros.[11]
No que tange à interação com demais Partes, Downes explica que o Acordo SPS exige que a Parte informante permita que as demais se possam manifestar quanto a MSF adotadas ou alteradas, de modo a evitar que estas não sejam mais restritivas ao comércio do que o necessário.[12]
Quanto ao prazo, o Anexo B não estabelece um limite quantitativo, mas qualitativo, dispondo que “[...] os Membros deixarão um intervalo de tempo razoável entre a publicação do regulamento sanitário e fitossanitário e sua entrada em vigor” e que, nos três critérios acima referidos, a Parte informante deve publicar uma nota com “[...] antecedência suficiente” para que todos possam tomar conhecimento do regulamento sobre MSF introduzido. De acordo com Downes, em uma Conferência Ministerial, foi esclarecido que esse intervalo deveria ser, no mínimo, de seis meses, enquanto o Comitê de MSF concordou num período de 60 dias para que membros possam comentar (ou opor-se) as medidas introduzidas por uma Parte, com possível prorrogação de 30 dias.[13] Quanto ao prazo, ainda, observa-se, no art 11 do Acordo Mercosul-UE, o prazo de 15 dias para responder a um pedido de informação de uma Parte referente a MSF previstas no parágrafo 1, alíneas “a” a “f”. Além disso, o art. 11 (1) “f “ estabelece que, na falta de evidências científicas relevantes, ao adotar medidas provisórias, a Parte deve relatar as informações que basearam sua medida em um tempo razoável. Já o art. 12 sobre notificações prevê a obrigatoriedade de informar sobre sérios riscos à saúde humana, animal ou vegetal em dois dias, enquanto riscos menos graves devem ser relatados em tempo razoável para evitar ameaças à saúde.
Como se observa, o Acordo Mercosul-UE, mesmo sendo provisório, tende a se alinhar aos dispositivos reconhecidos internacionalmente da OMC em seu Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias e seu Anexo B. Dessa forma, obedecendo diretrizes internacionais sobre transparência, apenas detalhando procedimentos e prazos não previstos pela OMC.
4 PRINCÍPIO DA NÃO DISCRIMINAÇÃO
O princípio da Não-Discriminação está contido nas regras internacionais de comércio da OMC e no Capítulo de MSF do Acordo Mercosul-UE. Neste, encontra-se no art. 6º, que dispõe que as Partes não devem aplicar medidas de forma arbitrária ou injustificadamente discriminatórias. No Acordo Geral da OMC, encontra-se logo no preâmbulo e nos artigos 1º e 3º que preveem os princípios da Nação Mais Favorecida e o Tratamento Nacional respectivamente.
O princípio da Não-Discriminação exige que os Estados membros devem garantir condições de comércio para os demais, incluindo seus produtos e pessoas, de modo a afastar regime discriminatório no comércio internacional.[14] Conforme Gulyaeva explica, por conta de o princípio não proibir que haja melhorias gerais nas condições de comércio com outros países e seus produtos, podem surgir comportamentos discriminatórios, e, a fim de os evitar, a OMC prevê o regime da Nação Mais Favorecida, contido no art. I, e o regime do Tratamento Nacional, art. III, ambos do GATT-94. Esses dois princípios são elementos essenciais do Acordo GATT e do sistema da OMC.[15] Dessa forma, respectivamente, o país que concede regime favorecido a uma país deve estendê-los aos demais, bem como o país membro deve tratar produtos e serviços estrangeiros, da mesma forma que trata seus nacionais.[16]
Quanto às MSF, Gulyaeva ressalta que estas não devem servir ao propósito de discriminação arbitrária ou injusta, tampouco devem servir de barreira oculta ao comércio internacional, conforme ressalta o art. 2(3) do Acordo SPS[17]. Em paralelo à exigência normativa da OMC, pode-se observar que o Acordo Mercosul-UE está alinhado aos princípios gerais de comércio da OMC de não discriminação, obedecendo às regras internacionais de comércio, determinando, por meio de seu art. 6º(2), que esta não deva ser arbitrária ou injustificada, tampouco que sirva de barreira técnica oculta.[18]
A exemplo da regra de Não-Discriminação, o caso “Australia - Measures Affecting Importation of Salmon” (DS18)[19] ocorrido mediante Painel na OMC provou questionamentos em torno do dispositivo 2(3) do Acordo SPS e a proibição de importação de salmão canadense na Austrália. O início da disputa deu-se em 1995, quando o Canadá questionou medida do governo da Tasmânia que instituía quarentena, ao permitir venda apenas de salmão fresco, “pronto para consumo”, excluindo importação do Canadá, de modo que este país alegou ser a medida inconsistente com o Acordo SPS. Após análise, o Painel verificou que o ato do governo australiano, ao requerer salmão “pronto para consumo”, não era baseado em uma análise de risco, violando os artigos do Acordo SPS 2(2)[20] sobre adoção de MSF sob evidências científicas , 5(1)[21] sobre necessidade de avaliação adequada às circunstâncias dos riscos à saúde, considerando técnicas de avaliação de risco, e 5(6)[22] sobre garantia de que as MSF não sejam mais restritivas ao comércio do que o necessário para a proteção da saúde. Assim, o Painel concluiu que o governo da Tasmânia adotou medidas proibitivas sem avaliação de riscos e sem evidência científica, discriminando o salmão canadense com medida de quarentena injustificada.
Nessa linha de pesquisa, como se observa, as regras de Não-Discriminação, regimes de Nação Mais Favorecida e Tratamento Nacional são princípios basilares do comércio internacional, e o Acordo Mercosul-UE, em seu art. 6(2), prevê-os na exata medida, a fim de evitar discriminação arbitrária ou injusta. Desse modo, conclui-se que, por mais que o Acordo não seja definitivo, tenderá a obedecer essas normas internacionais de comércio, conforme avaliado.
4.1 MEDIDAS EXCEPCIONAIS
As medidas excepcionais são casos de exceção aos princípios da Não-Discriminação, Nação Mais Favorecida e Tratamento Nacional, quando há motivos pertinentes para que uma Parte possa adotar medidas arbitrariamente para se proteger de algum fator.
Nesse sentido, Davey leciona que cinco são os casos de exceção à regra de discriminação contidos no Acordo GATT-94. A primeira refere-se aos art. XII e XVIII(B).[23] Aquele refere-se à permissão de uma Parte em restringir a quantidade ou valor de mercadorias importadas para resguardar seu balanço de pagamentos, enquanto este permite restrição de quantidade e valor de mercadorias importadas para garantir que a Parte tenha reservas suficientes para implementar seu programa de desenvolvimento econômico. A segunda exceção está contida no art. XIX do GATT-94, que prevê salvaguardas para proteger indústrias seriamente afetadas. A terceira refere-se ao art. XX, que dispõe sobre exceções gerais, dentre elas o tema do presente estudo (XX,b): medidas necessárias para proteger saúde humana, animal e vegetal. A quarta exceção, contida no art. XXI, refere-se a medidas de proteção nacional, no que concerne a materiais nucleares, armamentos, ações de guerra. E a quinta exceção, contida no art. XXIV, permite medidas diferentes, quando se formam uniões aduaneiras ou áreas de livre comércio.
No caso em estudo, as MSF, mormente no que concerne o setor aviário catarinense, subsumem-se ao disposto no art. XX,(b) sobre ações para proteger saúde humana, animal e vegetal. E esse é o mandamento que orienta o art. 14 do Acordo Mercosul-União Europeia. Vê-se que este documento, mesmo não estando em vigor, alinha-se às regras internacionais de comércio no que concerne MSF. Assim, o art. 14 dispõe que:
“Se uma Parte adotar medidas domésticas para controlar qualquer risco sério à saúde humana, animal ou vegetal, estas devem, independentemente do previsto no parágrafo 2º , também prevenir o surgimento de qualquer risco sanitário ou fitossanitário no território de outra Parte”
Já seu parágrafo 2º dita que “A Parte importadora deve, em caso de sérios riscos para saúde humana, animal ou vegetal, tomar medidas de urgência contra esses riscos.” Dessa análise comparativa legal, denota-se que a preocupação do Acordo entre Mercosul e UE independe da adoção de texto definitivo, pois está guiada para atender a premissas maiores constantes no Acordo Geral de Comércio da OMC (GATT-94).
Nesse sentido, demonstra-se que os princípios gerais de comércio da Transparência, Não-Discriminação, e os regimes de Nação Mais Favorecida e Tratamento Nacional estão presentes no Acordo Mercosul-UE e independem da entrada em vigor de seu texto. Assim, as MSF, principalmente aquelas que dizem respeito ao setor aviário catarinense, devem estar orientadas tanto para o Acordo quanto para as regras internacionais já contidas no ordenamento da OMC. Desse modo, além de os avicultores deverem atentar-se para esses regramentos, devem também fazer atenção às leis internacionais aplicáveis ao seu setor, que serão brevemente expostas.
5 REGRAS INTERNACIONAIS SOBRE MEDIDAS SANITÁRIAS NA AVICULTURA
Com o fim de conferir melhor preparo legal ao setor aviário catarinense, proporcionando maior conhecimento técnico-jurídico quanto aos instrumentos legais internacionais atinentes ao setor, apresentam-se os principais documentos jurídicos internacionais e estrangeiros. Nesse sentido, estudam-se brevemente as principais leis e diretrizes, com o fim de apoiar o setor aviário de Santa Catarina a alavancar sua produção e retomar sua exportação para o mercado internacional e, especificamente, para a UE dentro dos moldes do futuro Acordo Mercosul-UE. Assim, analisam-se os documentos contidos no art. 3º do Acordo Mercosul-UE, a ser: Anexo A do Acordo SPS, Comissão Codex Alimentarius e Organização Mundial para Saúde Animal (OIE).
5.1 ARTIGO 3º DO ACORDO SOBRE MEDIDAS SANITÁRIAS E FITOSSANITÁRIAS DA OMC: HARMONIZAÇÃO DE REGRAS INTERNACIONAIS
No intuito de analisar as leis internacionais sobre medidas sanitárias no comércio de carnes de frango, é necessário iniciar pelo Acordo SPS. O Acordo tem o objetivo de proteger a saúde humana, animal e vegetal em meio ao comércio internacional. Seu artigo 3º é específico para a questão da harmonização das regras internacionais nessa matéria.
O parágrafo primeiro destina-se à regra geral de harmonização das MSF, exigindo que estas estejam baseadas nas ordens de normas, guias e recomendações internacionais. O parágrafo segundo declara serem necessárias as MSF que visem à proteção da vida ou saúde humana, animal e vegetal se estiverem conforme as normas, guias e recomendações internacionais.
Interessante é notar o parágrafo terceiro, que possibilita a introdução de MSF diversas das normas, guias e recomendações competentes, caso sejam justificadas cientificamente e provem elevar o nível de proteção.
Ao caso em apreço, é mister ressaltar o parágrafo quarto, que determina a participação plena dos membros em organizações internacionais competentes e seus órgãos subsidiários, em especial a Comissão Codex Alimentarius e a OIE, a fim de promoverem a elaboração e revisão periódica de normas, guias e recomendações.
Nesse sentido de harmonização, passa-se à análise de dispositivos pertinentes contidos nas regras internacionais sobre MSF a que alude o Acordo SPS: Comissão Codex Alimentarius e diretrizes da OIE.
5.2 CODEX ALIMENTARIUS E ESCRITÓRIO INTERNACIONAL DE EPIZOOTIAS
Programa criado em 1963 entre a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), composto por 188 países mais o bloco da EU, a Comissão Codex Alimentarius (ou Codex apenas) possui o fim de elaborar e coordenar normas alimentares no âmbito internacional. Elabora normas sobre alimentos, códigos de práticas de higiene, avaliação de aditivos, de medicamentos veterinários e de níveis de pesticidas. Passou a ser considerada referência mundial após a conclusão do Acordo SPS, em 1995, ganhando destaque na política alimentar global. Assim, matérias atinentes a MSF levadas à OMC são resolvidas com base nas normas do Codex.[24]
O Acordo Mercosul-UE, em seu art. 3º, dispõe sobre a necessidade de referência às definições do Codex, evidenciando alinhamento com as regras internacionais de comércio encontradas nos Acordos da OMC. Como mencionado, o referido documento encontra-se logo no preâmbulo do Acordo SPS, que prevê a adoção de MSF com base em normas, guias e recomendações internacionais elaboradas por organizações internacionais competentes, entre elas a Comissão Codex Alimentarius. Além disso, o mesmo documento encontra-se importantemente referenciado pelo preâmbulo do Acordo SPS, bem como seus art. 3(4) e Anexo A, item 3, que busca orientações no Codex para tratar de normas, guias e recomendações quanto a alimentos, aditivos, drogas veterinárias e resíduos, pesticidas, contaminantes e métodos para análise e amostragem.
Nesse sentido, convém ressaltar a principal norma do Codex para o setor aviário, as “Diretrizes para controle de Campylobacter e Salmonella em carne de frango”. (CAC/GL 78-2011). Esse documento é baseado em estudos relativos a tratamentos de higiene em relação ao frango, desde sua criação até seu consumo, para promover a biossegurança do alimento, evitando contaminações com as duas bactérias. Seu objetivo, portanto, é “[...] prover informação aos governos e indústrias sobre controle de Campylobacter e Salmonella em frango para reduzir contaminação alimentar […]”[25] (Tradução nossa). Assim, as Diretrizes tratam do modo como se deve criar o frango para evitar contaminações, quanto tempo após se alimentar de ração deve ser abatido, como tratar aqueles contaminados, como descongelar e diversas outras orientações para manter a biossegurança do alimento.
A segunda organização mencionada é a Organização Mundial para Saúde Animal (OIE - Office International des Epizooties ou Escritório Internacional de Epizootias). Criado em 1924, é um órgão intergovernamental, com 182 países membros, tem a função de elaborar normas para garantir a saúde animal. No que toca a produção aviária, é relevante destacar o Capítulo 6.5 e 6.6 de seu Código de Saúde de Animais Terrestres.[26] Nessas duas subdivisões do Capítulo 6, a OIE determina regras de “ Procedimentos de Biossegurança na Produção Aviária” e “Prevenção, Detecção e Controle de Salmonella em Frangos”. Como disposto no Acordo Mercosul-UE e no próprio Acordo SPS, Anexo A (3), as normas da Organização Mundial de Saúde Animal devem ser levadas em consideração para o trabalho e produção no setor aviário.
Assim, conclui-se que, independente de alteração do Acordo Mercosul-UE, este deverá seguir os parâmetros internacionais de produção alimentar, obedecendo às regras GATT-94, em específico, ao Acordo SPS e, consequentemente, às regras internacionais da Comissão Codex Alimentarius e da Organização Mundial de Saúde Animal.
5.3 NORMAS DA UNIÃO EUROPEIA PARA IMPORTAÇÃO DE AVES DE TERCEIROS PAÍSES
Após a Operação Carne Fraca de 2017, observa-se considerável queda nas exportações brasileiras de aves conforme Quadro 1. Desde então, o setor aviário vem tentando se recuperar e, destacadamente, o catarinense, que se viu prejudicado com os embargos à UE.
Quadro 1 - Importação de carnes de aves das origens selecionadas.
Fonte: European Commission, 2020.[27]
Nesse enfoque, cabe analisar sucintamente a política da UE para produção aviária e seus regulamentos, a fim de contribuir com conhecimento técnico para o setor aviário catarinense, no intuito de que retome suas exportações livremente àquele bloco dentro dos padrões estabelecidos, visando principalmente o mercado tão logo o Acordo entre em vigor.
No que tange ao comércio internacional aviário, Horne e Achterbosch afirmam que não é provável que a implementação de novas regras sobre bem-estar animal tenha grandes impactos na composição de comércio global de aves[28]. Apesar disso, é mister ressaltar que a legislação da UE sobre MSF sobre organismos geneticamente modificados e hormônios em carnes restringiram importação de alimentos, tendo causado disputas no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC.[29]
Assim, considerando os padrões da UE e produção aviária, esclarece-se que é a Comissão Europeia a autoridade competente para harmonizar suas regras e representar seus 27 membros em negociações sobre importação. Desse modo, a Diretoria Geral da Comissão Europeia sobre Saúde e Segurança Alimentícia é a responsável pela segurança alimentar na UE, garantindo a padronização das normas sobre os produtos no bloco.[30] Conforme descreve em suas normas, todos os animais e produtos animais passam por inspeção no Posto de Inspeção de Fronteira (BIP, Border Inspection Post), em que são verificados todos requisitos veterinários.
Nessa linha, quanto a normas relativas a bem-estar animal, destaca-se que a matéria tem tido muito mais atenção pela UE que por qualquer outra região, a qual se posiciona sobre questões específicas sobre o meio-ambiente produtivo.[31] A exemplo dessa preocupação, cita-se a Diretiva 2007/43/CE sobre limites de densidade aviária em um mesmo local, que determina, em seu art. 3º, parágrafo 2º, uma densidade limite, em regra, de 33 kg/m², bem como questões de ventilação, temperatura, luminosidade.[32]
Ademais, é valioso atentar-se para a Diretiva do Conselho 2009/158/CE, que trata da importação de aves vivas. Em sua consideração n (6), o Conselho dispõe sobre harmonia do comércio intracomunitário com base em um regime comunitário aplicável também a terceiros países. O art. 1º diz que a diretiva se aplica a terceiros países, e o Capítulo III dedica-se a “Normas para importações provenientes de países terceiros”. Esse é o capítulo ao qual as exportações aviárias brasileiras, catarinense em especial, devem estar atentas, uma vez que define, dentre outros, i) a obrigatoriedade de uma lista criada pela Comissão para permissão de importação (art. 23, 2); ii) permite a importação sob condição de controle das doenças da gripe aviária e Newcastle, conforme se abstrai do art. 24; iii) autorização de importação sob condições de tratamento dos bandos de aves previstos no art. 25; e iv) obrigatoriedade de certificado de veterinário oficial do país exportador.[33]
Nesse andamento, destaca-se ainda a Diretiva n.º 99/2002[34] CE do Conselho sobre regras sanitárias aplicáveis à produção, transformação, distribuição e introdução de produtos de origem animal para consumo humano. Trata-se de um documento sobre regras de saúde animal para carne fresca, contemplando a cadeia de produção, processamento, distribuição tanto intra como extra-comunitariamente à UE conforme art. 1º[35]. Em seu art. 3º, sobre política sanitária intracomunitária, parágrafo (1), determina-se que o Estado-Membro assegure que as indústrias de alimentos não provoquem a propagação de doenças transmissíveis em animais, no parágrafo (3), determina-se, por exemplo, que i) os produtos sejam obtidos de animais oriundos de locais sujeitos a restrições sanitárias; ii) os animais não tenham sido abatidos em estabelecimento em que estivessem presentes, no momento do abate ou da produção, animais infectados pelas doenças indicadas na alínea “a” desse mesmo artigo e no Anexo I. Já o art. 4º estabelece derrogações para importação de territórios sujeitos a restrições sanitárias, desde que, por exemplo: i) o produto tenha sido manuseado, transportado e armazenado separadamente; ii) os produtos sejam submetidos a tratamento de maneira adequadamente identificada; iii) os produtos sejam tratados de modo suficiente a eliminar problemas sanitários; iv) o tratamento seja aplicado em um estabelecimento aprovado pelo Estado-membro onde o problema sanitário tenha ocorrido.
Quando se analisa o Capítulo II, em especial o art. 7º dessa Diretiva, observa-se que a aplicação desta estende-se aos terceiros países no que tange aos requisitos do art. 3º ou a medidas equivalentes que possam oferecer. Apesar disso, o Capítulo discorre sobre diversas exigências para que os estabelecimentos produtores fora da UE sejam habilitados à exportação comunitária, perpassando i) obrigatoriedade de inspeções e auditoria para verificar cumprimento das regras comunitárias pelas autoridades veterinárias competentes (art. 10º e art. 8º respectivamente) e ii) envio de documentação adequada acompanhada de certificado veterinário que obedeçam ao Anexo IV (Princípios Gerais de Certificação) (art. 9º).
Quanto a essa Diretiva, vale a pena salientar a referência que faz ao Regulamento (CE) n. 178/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho sobre normas gerais da legislação alimentar[36], à Diretiva (CE) n. 78/1997 do Conselho sobre organização dos controles veterinários de produtos oriundos de terceiros países[37], bem como ao Regulamento (CEE) n. 2.913/1992 do Conselho que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário[38]. Por último, frisa-se o Regulamento (CE) n. 798/2008 da Comissão que cria lista de terceiros países, territórios e zonas ou compartimentos autorizados a exportar e transitar aves e derivados e que estabelece as exigências veterinárias aplicáveis[39].
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a Operação Carne Fraca deflagrada em 2017, observa-se que o setor aviário catarinense ainda sente reflexos das suspensões e embargos de exportação de frangos para o mercado da UE. Diante da necessidade de adequação das normas técnicas de qualidade da produção aviárias, o presente artigo buscou analisar os principais princípios e normas técnicas envolvendo esse setor produtivo, com o fim de contribuir com um mínimo de conhecimento jurídico para avicultores de Santa Catarina.
Nesse sentido, diante da potencialidade do Acordo Mercosul-UE, convém ao setor catarinense estar atento às regras sobre medidas sanitárias e fitossanitárias do documento, porém considerando as outras fontes internacionais normativas às quais o Capítulo do Acordo sobre esse tema se alinha.
Dessa forma, analisaram-se, primeiramente, princípios gerais de comércio internacional sob a égide da OMC como o Princípio da Transparência e o da Não-Discriminação, compreendido nas regras de Nação Mais Favorecida e Tratamento Nacional.
Na ordem técnica, por sua vez, o estudo buscou ressaltar os principais documentos jurídicos internacionais atinentes a regras sanitárias e fitossanitárias. Para tanto, frisou-se o Acordo Geral da OMC e o Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias da OMC (Acordo SPS) e seu anexo A e B especialmente. Em seguida, houve breve análise da relevância jurídica internacional de órgãos de âmbito global destinados às questões de medidas sanitárias e fitossanitárias, como Comissão Codex Alimentarius e suas diretrizes, bem como a Organização Mundial de Saúde Animal. Por fim, ressaltou-se a importância de conhecimento legislativo de Diretrizes da UE para a produção no setor aviário, indicando as principais regras de produção, cuidados e abastecimento do mercado.
Nessa linha, com uma análise geral dos principais regramentos internacionais sobre a produção aviária e medidas sanitárias, espera-se que o setor catarinense possa retomar sua produção e exportação para a UE com maior conhecimento, sabendo como encontrar as normas que deve seguir para lograr respeitosa colocação internacional dentro de parâmetros internacionais sanitários.
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