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A ideologia da propriedade intelectual:

a inconstitucionalidade da tutela penal dos direitos patrimoniais de autor

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18/09/2006 às 00:00
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4.O velho paradigma da tutela penal da propriedade intelectual

A superação da ideologia da propriedade intelectual e o surgimento, na esfera cível, do Copyleft como novo paradigma de tutela dos direitos do autor não foram, até o momento, acompanhados pelo Direito Penal.

Os art.184, caput, do Código Penal e art.12 da Lei nº 9.609/98 mantêm-se fiéis à ideologia da "propriedade intelectual", tipificando a vaga conduta de "violar direito de autor".

A opção do legislador pela norma penal em branco é problemática, pois o tipo penal não pode fundar-se no mero descumprimento de uma norma civil.

"O conceito de tipo, introduzido por Beling na dogmática penal, pode ser definido de três diferentes pontos de vista: a) como tipo legal constitui a descrição do comportamento proibido, com todas suas características subjetivas, objetivas, descritivas e normativas, realizadas na parte especial do CP (e leis complementares); b) como tipo de injusto representa a descrição da lesão do bem jurídico, compreendendo os fundamentos positivos da tipicidade (descrição do comportamento proibido) e os fundamentos negativos da antijuridicidade (ausência de causas de justificação); c) como tipo de garantia (tipo em sentido amplo) realiza a função político-criminal atribuída ao princípio da legalidade (art.5º, XXXIX, CF), expressa na fórmula nullum crimen, nulla poena, sine lege, e compreende todos os pressupostos da punibilidade: além dos caracteres do tipo de injusto (tipicidade e antijuridicidade), também os fundamentos de reprovação do autor pela realização do tipo de injusto (culpabilidade), assim como as condições objetivas de punibilidade e os pressupostos processuais." [10]

Sob o aspecto de tipo legal, a expressão "violar direito de autor" não descreve o comportamento proibido de forma minimamente precisa. Ao remeter a um conceito da lei civil nº 9.610/98, esvanesce totalmente sua função de garantia, contrariando o princípio constitucional da taxatividade.

"Apesar de expressar-se a lei penal em palavras e estas não serem nunca totalmente precisas, nem por isso o princípio da legalidade deve ser desprezado, mas sim cabe exigir do legislador que ele esgote os recursos técnicos para dar a maior exatidão possível à sua obra. Daí, não basta que a criminalização primária se formalize em uma lei, mas sim que ela seja feita de uma maneira taxativa e com a maior precisão técnica possível, conforme ao princípio da máxima taxatividade legal." [11]

Lado outro, a lei civil não supre a função de garantia a ela delegada pela norma penal, pois na atual sistemática imposta pelo Copyleft, a tutela patrimonial dos direitos autorais é regra que admite inúmeras exceções de ordem meramente contratual. Assim, a intricada leitura dos referidos tipos penais implicaria em uma jornada da norma penal em branco à lei civil que a complementa, mas que, muita vez, remeteria o intérprete a uma licença com características contratuais, na qual o autor dispensaria a tutela legal dos seus direitos patrimoniais. Uma interpretação extremamente complexa até mesmo para profissionais do Direito, e praticamente impossível para o cidadão leigo, a quem a função de garantia dos tipos penais deveria contemplar. [12]

4.1. Em busca do bem jurídico

É sob o aspecto de tipo de injusto, porém, que se encontra a mais grave ofensa ao princípio da taxatividade. Isto porque a vaga descrição da conduta típica fundamenta-se na tutela penal de um bem jurídico tão impreciso, que contradiz a objetividade inerente à natureza do bem jurídico.

"Quando o legislador encontra-se diante de um ente e tem interesse em tutelá-lo, é porque o valora. Sua valoração do ente traduz-se em uma norma, que eleva o ente à categoria de bem jurídico. Quando quer dar uma tutela penal a esse bem jurídico, com base na norma elabora um tipo penal e o bem jurídico passa a ser penalmente tutelado.

Vejamos o que se passa com um pouco mais de clareza: o legislador encontra-se diante do ente "vida humana" e tem interesse em tutelá-la, porque a valora (a considera positiva, boa, necessária, digna de respeito etc). Este interesse jurídico em tutelar o ente "vida humana" deve ser traduzido em norma; quando se pergunta "como tutelá-lo?", a única resposta é: "proibindo matar". Esta é a norma proibitiva "não matarás"." [13]

Ainda que se conceba tipos penais complexos, como o roubo (em que se tutela a liberdade e o patrimônio), em todos eles a individualidade de cada um dos bens jurídicos tutelados deve estar perfeitamente demarcada. Desta forma, o bem jurídico deve ser caracterizado por um único e indivisível interesse jurídico a ser tutelado pela norma penal e não por um conjunto de interesses difusos reunidos arbitrariamente sob uma abstrata ideologia de "propriedade intelectual".

"A função de garantia individual exercida pelo princípio da legalidade estaria seriamente comprometida se as normas que definem os crimes não dispusessem de clareza denotativa na significação de seus elementos, inteligíveis por todos os cidadãos. Formular tipos penais "genéricos ou vazios", valendo-se de "cláusulas gerais" ou "conceitos indeterminados" ou "ambíguos" equivale teoricamente a nada formular, mas é prática e, politicamente, muito mais nefasto e perigoso." [14]

A doutrina nacional [15] indica os "direitos autorais" como bem jurídico penalmente tutelado pelo delito de "violação de direitos de autor". Estes, por sua vez, são considerados tão-somente uma espécie do gênero "propriedade intelectual". [16]

O delito de "violação de direitos de autor" é um tipo penal vago, fundamentado em um bem jurídico indeterminado. É uma verdadeira afronta ao princípio constitucional da taxatividade, pois reúne sob o rótulo de "propriedade intelectual" uma gama de interesses tão diversos quanto: o direito de atribuição de autoria, o direito de assegurar a integridade da obra (ou de modificá-la), o direito de conservar a obra inédita, entre outros direitos morais, e os direitos de edição, reprodução (copyright) e outros patrimoniais. Trata-se, portanto, de um tipo penal complexo que tutela não um, mas inúmeros bens jurídicos de natureza moral e patrimonial, agrupados sob a ideologia da "propriedade intelectual". [17]

Pela própria função de garantia do tipo penal, a decomposição do hipotético bem jurídico "propriedade intelectual" (ou "direitos autorais") em suas unidades mínimas tem conseqüências importantíssimas. Se é certo o interesse jurídico na tutela penal dos direitos morais do autor, a tutela penal dos direitos patrimoniais é bastante controversa.

Há um interesse individual e social em se tutelar a autenticidade de uma obra, bem como sua integridade. Não só é de interesse de Picasso que o público saiba que Guernica foi pintado por ele, mas também é de interesse do público e de historiadores da arte ter conhecimento de que aquela obra provém das mãos deste artista. Da mesma forma, é do interesse não só do autor, mas do público, que a pintura permaneça no tom monocromático, adequado ao tema, e que ninguém a modifique com detalhes em dourado.

A reprodução desta obra em livros de arte, porém, longe de lesar um interesse do artista ou do público, beneficiará a todos. Assim como é interessante para o artista ter seu trabalho apreciado por um público maior, é de interesse do público ter acesso à maior variedade de obras possível.

Não há qualquer interesse jurídico do autor em evitar a reprodução de sua obra, muito pelo contrário, quanto mais seu "trabalho intelectual" for divulgado, maior prestígio social ele ganhará. O interesse em limitar a reprodução da obra é tão-somente dos detentores dos meios de produção, que procuram manter um monopólio na distribuição da obra para, com isso, produzirem artificialmente uma escassez inexistente na era digital.

A decomposição do bem jurídico "propriedade intelectual" ou "direitos autorais" demonstra que há não só uma tutela de interesses diversos (morais e patrimoniais), mas de interesses de pessoas diversas: autor e "indústria cultural". Se o interesse patrimonial do autor é vender seu "trabalho intelectual" ao proprietário dos meios de produção, que irá consubstanciá-lo em meio físico e comercializá-lo, o interesse da "indústria cultural" é manter um monopólio do mercado que lhe garantirá a maximização dos lucros.

A tutela penal da "violação de direitos de autor" tal como é concebida hoje é um disparate jurídico que só se justifica quando encoberto pela ideologia da "propriedade intelectual". Tal delito tutela ao menos três bens jurídicos absolutamente diversos: a) os direitos morais do autor; b) o direito do autor à remuneração pelo trabalho intelectual explorado pelos detentores dos meios de produção e c) mirabile dictu, o direito de monopólio de mercado dos proprietários dos meios de produção.

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4.2. A tutela penal de uma obrigação civil

Quanto aos direitos morais do autor, por se tratarem de direitos personalíssimos, que abarcam interesses públicos e privados, é bastante justificável a tutela penal. Em relação aos direitos patrimoniais, porém, sua natureza eminentemente civil afasta qualquer interesse público na tutela penal, seja dos interesses dos autores em receberem uma remuneração por seu trabalho, seja dos interesses das empresas de manterem seu monopólio comercial.

A pirataria em meio físico atinge os interesses do autor, que tem seu "trabalho intelectual" comercialmente explorado sem a correspondente remuneração pelo proprietário dos meios de produção. Trata-se, no entanto, de uma dívida civil, jamais de ilícito penal.

Se o legislador ab absurdo criasse uma lei tipificando a conduta: "violar direito de locador", ninguém teria dúvidas em afirmar a absoluta inconstitucionalidade da norma.

Argumentar-se-ia, por certo, que os direitos do locador são vários e esta norma lesaria o princípio constitucional da taxatividade. Ainda que os diversos bens jurídicos tutelados por este delirante tipo penal complexo fossem decompostos, em determinado aspecto ele seria visivelmente inconstitucional: tratar-se-ia de uma criminalização do descumprimento de uma obrigação civil, vedada expressamente pela Constituição Federal:

"Art.5º, LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel."

E pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos – "Pacto de San José de Costa Rica":

Artigo 7 – Direito à liberdade pessoal –(...) 7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.

Se assim é em relação à tutela da propriedade material, razão alguma haveria para se proteger com maior ênfase uma abstrata "propriedade intelectual" que, neste aspecto, tutela o direito do autor a receber a remuneração por seu trabalho intelectual, explorado comercialmente por um proprietário dos meios de produção.

Deixar de receber uma renda ou salário, ainda que se trate de descumprimento de obrigação civil, jamais pode ser equiparado a uma lesão patrimonial semelhante ao crime de furto. No delito de furto há um decréscimo patrimonial, na violação de direitos autorais, o autor deixa de ter um acréscimo em seu patrimônio. No furto, há ofensa a um direito real; na violação de direitos autorais, a um direito obrigacional. Naquele temos uma vítima; neste, um credor.

A produção de obras intelectuais em meio físico que não foi autorizada pelo autor é, portanto, tão-somente um descumprimento de obrigação civil. Dada a sua natureza eminentemente privada e seu caráter exclusivamente pecuniário, sua criminalização afronta não só o princípio da intervenção penal mínima, mas também a vedação constitucional às prisões por dívidas.

A pirataria digital, por outro lado, lesa principalmente os interesses da empresa, pois no sistema capitalista o trabalho intelectual in natura não possui qualquer "valor de troca" e o autor só é remunerado diretamente com a venda da obra em meio físico. A fonte primordial de sua remuneração é o salário indireto, decorrente do prestígio adquirido com a repercussão de sua obra.

Assim, a criminalização da pirataria digital tem como única função garantir à "indústria cultural" o monopólio do direito de reprodução da obra (copyright), mesmo contrariando os interesses do autor na maior divulgação possível de seu trabalho intelectual. O Direito Penal é travestido, pois, em instrumento de regulação do mercado econômico, garantindo um monopólio de direito de cópia concedido pelo Estado aos detentores dos meios de produção.

Se o Estado brasileiro mantém seu contestável interesse na concessão deste monopólio do direito de reprodução aos proprietários dos meios de produção, deve limitar-se a garanti-lo por meio de sanções cíveis, tais como aquelas previstas no Título VII da Lei nº 9.610/98. A tutela penal deste monopólio viola não só o princípio da intervenção mínima, mas também e, principalmente, a vedação constitucional à prisão por dívidas.

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Sobre o autor
Túlio Lima Vianna

Professor de Direito Penal dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (2006) e Mestre em Ciências Penais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2001), onde também se bacharelou (1999). Autor dos livros Fundamentos de Direito Penal Informático (Forense, 2003) e Transparência pública, opacidade privada (Revan, 2007), este último com tradução para o espanhol publicada na Argentina (Ad-hoc, 2010). Tem participado como palestrante em dezenas de congressos e seminários nacionais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANNA, Túlio Lima. A ideologia da propriedade intelectual:: a inconstitucionalidade da tutela penal dos direitos patrimoniais de autor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1174, 18 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8932. Acesso em: 16 abr. 2024.

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