O DIREITO À SAÚDE DIANTE DA LIBERDADE RELIGIOSA
Rogério Tadeu Romano
I – A AÇÃO PROPOSTA
O procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao STF (Supremo Tribunal Federal) que suspenda em todo o Brasil decretos, municipais e estaduais, que proíbem a realização de cultos, missas e outras atividades religiosas de caráter coletivo. O argumento do PGR é de que, além de a Constituição assegurar a liberdade religiosa, a assistência espiritual é essencial para muitas pessoas enfrentarem a pandemia. Aras se manifestou na ação ajuizada pelo PSD contra o decreto do governo de São Paulo, que veta encontros religiosos presenciais. O pedido é de que a suspensão seja imediata para que, assim, seja possível celebrar a Páscoa.
O fundamento central da ação reside na alegada inconstitucionalidade da restrição desproporcional do direito fundamental à liberdade religiosa e de culto das religiões que adotam atividades de caráter coletivo", destaca a petição.
O documento acrescenta ainda que "há opções menos gravosas que podem ser adotadas para garantir o direito à saúde da população, sem prejuízo da realização das atividades religiosas de caráter necessariamente presencial".
O PSD argumenta que a vedação dirigida apenas às atividades religiosas, de caráter coletivo, cria "discriminação infundada, pois estabelece distinção não justificável sob o ponto de vista constitucional entre atividades religiosas que não têm ritos necessariamente presenciais e coletivos, daquelas que possam ser realizadas de maneira individual e não presencial".
A ação reitera ainda que está em curso um importante período religioso, a Semana Santa, onde as pessoas buscam "se socorrer em templos religiosos para professar sua fé em nome dos entes queridos que se foram ou pela saúde daqueles que estão acometidos pela doença".
II – O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data vênia, na relação meio e fins, envolvendo a proteção à vida e o exercício das atividades religiosas, está a vida como fator preponderante e é sobre ela que busca o Estado Democrático de Direito proteger, primordialmente.
Em resumo, do que se tem da doutrina no Brasil, em Portugal, dos ensinamentos oriundos da doutrina e jurisprudência na Alemanha, extraímos do princípio da proporcionalidade, que tanto nos será de valia para adoção dessas medidas não prisionais, os seguintes requisitos: a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento de fins visados; c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos.
Trago a lição de Willis Santiago Guerra Filho(Ensaios de teoria constitucional. Fortaleza, UFC, Imprensa Universitária, 1989, pág. 75) de feliz síntese:
¨Resumidamente, pode-se dizer que uma medida é adequada, se atinge o fim almejado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e finalmente proporcional em sentido estrito, se as vantagens superarem as desvantagens.¨.
Observem-se a necessidade e a adequação. Ambas se reúnem no princípio da proporcionalidade:
a)na primeira, desdobrando-se, sobretudo, na proibição de excesso, mas, também, na máxima efetividade dos direitos fundamentais, serve de efetivo controle da validade e do alcance das normas, autorizando o intérprete a recusar a aplicação daquela norma que contiver sanções ou proibições excessivas e desbordantes da necessidade de regulamentação;
b)na segunda, presta-se a permitir um juízo de ponderação na escolha da norma mais adequada em caso de eventual tensão entre elas quando mais de uma norma constitucional se apresentar aplicável ao mesmo fato.
Assim proíbe-se o excesso e busca-se a adequação da medida.
Há proibição do excesso como limite, separadamente do postulado da proporcionalidade, sempre que um direito fundamental esteja excessivamente restringido.
III – O PREPONDERANTE DIREITO À SAÚDE E AS RESTRIÇÕES TRAZIDAS ÀS ATIVIDADES
A saúde e a vida propenderam.
A saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos. O direito à saúde rege-se pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperem.
Na linha de Ingo W. Sarlet(O STF e os direitos fundamentais na crise da covid-19, Consultor Jurídico), diante disso é viável conciliar o estatuto de atividades religiosas essenciais com algumas restrições, quanto a determinadas formas de concretização, em prol da saúde pública, especialmente aquelas que, segundo o conhecimento médico-sanitário-científico, implicam notório risco de contaminação/propagação da pandemia, dentre as quais, no período de quarentena, a comemoração pública de festividades religiosas (emblemas de fenômenos massivos), as reuniões públicas (no que substanciem aglomeração e infringência às regras sanitárias), valendo o mesmo para ritos religiosos celebrados em comum, salvo alternativas tecnológicas que permitam o culto a distância. Não se visa com a medida, pois, dar um tratamento que afronte a igualdade. Para casos iguais, tratamento igual, como ensinava Ruy Barbosa. Se há aglomeração, na pandemia, diante dos preocupante números de internação, com mortes seguindo índices gravemente preocupantes, proíbem-se: atividades esportivas, lazer em áreas públicas, atividades culturais em espaço aberto ou onde haja aglomeração. Assim também com relação aos cultos nos espaços dos templos.
O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (decisão de 10 de abril de 2020, em sede de provimento liminar considerou que a proibição de culto religioso, por se tratar de particularmente intensa restrição da liberdade religiosa, exige uma rigorosa fiscalização de sua proporcionalidade à vista das atuais circunstâncias. No caso concreto, dado o objetivo da medida de fechamento das igrejas, sinagogas, mesquitas e outros locais de culto promovida, mediante decreto, pelo estado de Hessen, designadamente a proteção em face dos riscos à vida, integridade física e saúde, em especial numa fase em que o processo massivo de contaminação pelo coronavírus, com as suas respectivas sequelas, somente pode ser contido – de acordo com dados fornecidos por renomado instituto de pesquisa especializado na área de pandemias - com a interdição da aglomeração de pessoas. A corte também destacou que a medida restritiva estabelecida pela normativa estadual prevê a proibição temporária de cultos coletivos presenciais, admitindo, a depender da mudança do quadro, a sua revogação total ou parcial.
Não há uma restrição à atividade religiosa, nesse período de páscoa, que poderá ser realizada, como os cultos estão sendo ministrados, via internet, por meios próprios. Preserva-se o direito ao culto e preserva-se a saúde. Onde está o excesso das medidas tomadas?
As medidas que limitam e mesmo impedem, temporariamente (na pendência das razões legítimas que as ensejaram), a realização de cultos presenciais coletivos são constitucionalmente legítimas por assegurarem a coordenação mútua das condições de vida, inclusive espiritual, visando a reduzir a morte e a doença, em tempos de pandemia.
IV – O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM CONSONÂNCIA COM OS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E DA PRECAUÇÃO
Aplicam-se para o caso, em sua síntese, os princípios da prevenção e da precaução.
O objetivo do Princípio da Prevenção é o de impedir que ocorram danos à saúde, concretizando-se, portanto, pela adoção de cautelas, antes da efetiva execução de atividades potencialmente produtoras de danos.
O Princípio da Precaução, por seu turno, possui âmbito de aplicação diverso, embora o objetivo seja idêntico ao do Princípio da Prevenção, qual seja, antecipar-se à ocorrência das agressões à saúde.
Enquanto o Princípio da Prevenção impõe medidas acautelatórias para aquelas atividades cujos riscos são conhecidos e previsíveis, o Princípio da Precaução encontra terreno fértil nas hipóteses em que os riscos são desconhecidos e imprevisíveis, impondo à Administração Pública um comportamento muito mais restritivo quanto às atribuições de fiscalização e de licenciamento das atividades potencialmente danosas à saúde.
Precaução e proporcionalidade comungam-se:
Serve de exemplo a decisão no HC 184828 MC/DF,6 impetrado em favor dos diplomatas venezuelanos no Brasil, ameaçados de expulsão em plena pandemia: HABEAS CORPUS CONTRA O PRESIDENTE DA REPÚBLICA E O MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. DECISÃO DE RETIRADA IMEDIATA DE DIPLOMATAS E FUNCIONÁRIOS VENEZUELANOS. SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA MUNDIAL DE SAÚDE. FALTA DE URGÊNCIA E RISCO À VIDA E À SAÚDE DOS PACIENTES. MEDIDA CAUTELAR RATIFICADA. 4. Ilegitimidade da retirada compulsória imediata dos pacientes em meio à pandemia. A situação de emergência sanitária reconhecida pela Organização Mundial de Saúde e pelo Congresso Nacional coloca em risco a integridade física e psíquica dos pacientes, tornando irrazoável a ordem de saída imediata (ou em 48 horas) do território nacional. Violação a convenções de direitos humanos e de relações diplomáticas. Impossibilidade, fática e transitória, de retirada dos agentes diplomáticos e consulares venezuelanos do território brasileiro enquanto durar o estado de calamidade pública e emergência sanitária reconhecido pelo Congresso Nacional. A hipótese aqui se afigura menos dramática, mas a ideia subjacente é a mesma: onde há risco grave para os direitos fundamentais de quem quer que seja, aplica-se o princípio da precaução. Não há urgência ou emergência na retirada dos pacientes, sendo possível e razoável aguardar até o Congresso revogar o estado de calamidade pública e emergência sanitária que vivemos. Em suma: a decisão do Estado brasileiro é válida e produzirá os seus efeitos tão logo cessem as razões de saúde pública que motivaram a suspensão temporária de sua eficácia.
Permitir aglomerações num período de pandemia, com pessoas a fazer filas em unidades sanitárias é faltar à proteção suficiente.
Acerca da proteção insuficiente, vale transcrever excerto do voto do ministro Gilmar Mendes no RE 418.376/MS:8 Quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção insuficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental. Nesse sentido, ensina o Professor Lênio Streck: “Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como consequência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador.” (STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. (Revista da Ajuris, Ano XXXII, n. 97, março/2005.
Não há uma restrição à atividade religiosa, nesse período de páscoa, que poderá ser realizada, como os cultos estão sendo ministrados, via internet, por meios próprios. Preserva-se o direito ao culto e preserva-se a saúde. Onde está o excesso das medidas tomadas?
As medidas que limitam e mesmo impedem, temporariamente (na pendência das razões legítimas que as ensejaram), a realização de cultos presenciais coletivos são constitucionalmente legítimas por assegurarem a coordenação mútua das condições de vida- inclusive espiritual, visando a reduzir a morte e a doença, em tempos de pandemia.
V – UM PRONUNCIAMENTO DO STF
Porém, vem a notícia de que o ministro Nunes decidiu autorizar a realização de cultos e celebrações religiosas em todo o Brasil. O ministro Kassio Nunes Marques determinou que sejam aplicados protocolos sanitários nos espaços religiosos, limitando a presença em cultos e missas a 25% da capacidade do público.
“Reconheço que o momento é de cautela, ante o contexto pandêmico que vivenciamos. Ainda assim, e justamente por vivermos em momentos tão difíceis, mais se faz necessário reconhecer a essencialidade da atividade religiosa, responsável, entre outras funções, por conferir acolhimento e conforto espiritual”, observou o ministro em sua decisão.
“Estamos em plena Semana Santa, a qual, aos cristãos de um modo geral, representa um momento de singular importância para as celebrações de suas crenças – vale ressaltar que, segundo o IBGE, mais de 80% dos brasileiros declararam-se cristãos no Censo de 2010”, acrescentou.
VI – NÃO CABE AO JUDICIÁRIO FORMULAR POLÍTICAS PÚBLICAS: O ESTADO LAICO
Com o devido respeito a decisão desconheceu que cada unidade federativa, Estados, Distrito Federal e Município podem adotar tal medida diante do estrito interesse regional ou local.
Penso que o assunto, por envolver uma pandemia, tem que ser tratado como direito à saúde. Há de prevalecer o entendimento mais restritivo em nome da saúde.
Se entendido como tal a competência seria concorrente, como julgado pelo Supremo na ADi 6341. Por compreender ser aplicado ao caso o princípio da precaução/prevenção, há de prevalecer a norma do ente federativo concorrente que, sendo mais restritiva, tenha o maior condão profilático na matéria. Sobre a matéria há interesse estudo de Gabriel Vedy (O princípio constitucional da precaução como instrumento do meio ambiente e da saúde pública", Ed. Forum, 3ª ed., 2020).
Como estabelecer um ditame nacional em matéria de saúde, válido para União, Estados, Distrito Federal e Municípios, quando é concorrente esse disciplinamento? Isso vai ao absurdo, data vênia.
Ademais, com o devido respeito, não cabe ao Judiciário formular políticas públicas. Esse papel é dado aos políticos, na Administração Pública e no Legislativo.
Não cabe ao Judiciário substituir-se à Administração, num juízo próprio de discricionariedade técnica, fixando os limites das medidas a serem adotadas, ultrapassando os seus limites, sob pena de invadir competência própria de outro poder, em clara manifestação de afronta à necessária independência entre os poderes. O campo da discricionariedade é próprio da Administração, à luz de um conhecimento técnico-científico e ainda sanitário.
Disse J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional, 4ª ed., pg. 912, Portugal, Livraria Almedina) que os juÍzes não se podem transformar em conformadores sociais nem é possível, em termos democráticos processuais, obrigar jurisdicionalmente os órgãos políticos a cumprir um determinado programa de ação.
No entendimento de Konder Komparato (Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas, 1997) a política deliberativa sobre as políticas da República pertence à Política e não à Justiça. Dir-se-ia, outrossim, que as normas constitucionais sobre direitos sociais dependeriam de acolhida pelo legislador, e aí poderiam ser alegadas em juízo (art. 53.3 da Constituição Espanhola).
A decisão aqui trazida do STF invadiu campo próprio de outros poderes em nome da defesa da religiosidade no país, se assim entenda-se, um país, que desde 1889, adota o Estado Laico.