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A crise na separação dos poderes e o ativismo judicial emotivista

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14/02/2025 às 10:58
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5. O ativismo emotivista do Supremo Tribunal Federal

A primeira década do século XXI trouxe ao cenário da democracia brasileira uma postura “emotivista” do Supremo Tribunal Federal, na qual o personalismo, as características e as convicções pessoais de seus juízes, descoladas da concepção da moral teísta, majoritária no meio comunitário, passaram a determinar os contornos e a forma de julgamento de casos complexos. Nessa nova forma de atuação institucional, o Judiciário aparenta uma autoinclusão no âmbito primário das decisões políticas, que antes estavam, primordialmente, a cargo do Parlamento e do Executivo – cujos membros, nos regimes democráticos, são escolhidos pelo voto universal e secreto como instrumento de decisão da maioria.

Esse emotivismo parece ter ganhado mais expressão na fase inicial do julgamento do caso que passou a ser conhecido como “mensalão” – oportunidade em que o Tribunal exerceu, em plenitude, a jurisdição penal, para depois adentrar nas chamadas “pautas morais”, aproveitando-se de uma suposta inércia do Legislativo. A aprovação social do julgamento do mensalão – procedimento que coincidiu com as aspirações morais da maioria da sociedade sobre a virtude da honestidade (AQUINO, 2012, p. 186) – reforçou a posição dos integrantes do Supremo Tribunal Federal como emissores de um discurso moral. Tal discurso foi tomado de empréstimo do projeto iluminista de justificação secular do relativismo moral, que se expressa pela preferência pessoal do julgador, e não pela tradição e pelos fundamentos da norma, promovendo um movimento de exclusão das matrizes religiosas na sedimentação da moralidade.

[...] Na base do emotivismo que se desenvolveu sobretudo nos anos 1930-40, estão as teorias de Wittgenstein, em sua primeira fase e Russell e do neopositivismo lógico. Wittgenstein afirmava que “a ética não pode formular-se” (Tractatus, 1921, 6. 241); Schlik, que “quando recomendo como boa uma ação a alguém, exprimo o fato de que a desejo” (Fragen der Ethik, 1920. 1. § 6). Carnap afirmava que as proposições da ética são pseudoproposições que não têm conteúdo lógico, não passando de expressões de sentimentos que tendem, por sua vez, a suscitar sentimentos e volições naqueles que as ouvem” (Logical Syntax of Language, 1934, § 72). Ponto de vista análogo expresso por Russell (Religion and Science, 1936, cap, IX). Essas teses, presentes também em I. A. Richards e K. R. Ogden (The meaning of the Meaning, 1923), foram defendidas e divulgadas por Ayer, segundo quem a ética, não sendo redutível a um conjunto de asserções empíricas ou tautológicas, é cognitivamente “isenta de significado”, ou seja, composta por enunciados que “não incidem na categoria do verdadeiro ou falso” (Language, Truth and Logic, 1936, trad. it., Feltrinelli, Milão, 1961, p. 139; cf. pp. 133-6 e 142). Em Ethics and Language (1944), Stevenson procurou atenuar certas asperezas do Emotivismo radical, reconhecendo que os termos éticos têm um significado peculiar, que consiste nas atitudes de aprovação ou desaprovação de quem fala (com o fim de suscitar, em quem ouve, atitudes análogas) [...]. (ABAGNANO, 2015, p. 376).

O predomínio do emotivismo secular no ambiente do Tribunal Constitucional – resultado da negação dos valores morais religiosos e das fontes teológicas como referência de conhecimento racional – foi impulsionado pelo individualismo, consequência das práticas de emancipação e autossuficiência do ser humano moderno, que percorreram longos caminhos paralelos. Aqui, é possível destacar dois deles: o liberalismo igualitarista e o materialismo histórico, os quais desembocaram na judicialização de “causas sociais”.

MacIntyre (2013, p. 250), ao analisar o fracasso da filosofia moral da modernidade, incapaz de fornecer uma teoria racional secular que harmonizasse os conflitos em torno de temas morais relevantes, demonstra que o afastamento pragmático da moral tradicional de base tomista (Aristotélica) resulta no emotivismo. Este é compreendido pelo autor como a doutrina segundo a qual todos os juízos de valor, e em especial os juízos morais, não passam de meras manifestações de sentimentos ou preferências pessoais.

A incapacidade racional de produzir consensos no meio social – ou mesmo dos indivíduos resolverem suas divergências morais no ambiente público (comunitário) – acabou por fomentar o fenômeno da judicialização das “questões morais”. Em alguns casos, tais questões se expressam como dogmas ou crenças religiosas, sendo deslocadas para os restritos átrios, pretensamente seculares, dos Tribunais Constitucionais. Esse verdadeiro Areópago da modernidade habilita-se, nesse contexto, a proferir decisões movido por dois sentimentos básicos: a construção jurídica [mas não infalível] de submissão do Estado à Lei, vista como um dogma do liberalismo clássico (governo das leis e não dos homens), fonte primordial do desenvolvimento do denominado Estado de Direito; e a redução das questões morais a meros preceitos jurídicos, permitindo a simplificação dessa moral útil, concebida como instrumento utilitarista de construção de uma moral endomonista.

Essa dinâmica resulta, em grande medida, do aparente fracasso do diálogo social, o que leva à letargia dos representantes eleitos na decisão de questões moralmente controversas. Soma-se a essa realidade a pretensa autoridade dos juízes, instituída pela lei fundamental, para interpretar e aplicar normas constitucionais em desconformidade com os valores e a moral dominante. Desse modo, os integrantes do Tribunal, assenhorados do poder da última palavra, passaram a conhecer e a julgar questões morais introduzidas nos portais do Supremo Tribunal até mesmo por partidos políticos, que as carregam com suas diversas ideologias seculares.

Essa contradição entre os posicionamentos individuais dos integrantes da Corte – quando resultam da incredulidade e da aversão à moral cristã, que norteia a vida da maioria da população brasileira – gera decisões que, embora tenham efeitos erga omnes, entram em conflito com o senso moral da maioria dos indivíduos que compõem a sociedade viva. Decisões como as antes citadas mostram-se contrárias ao ethos da sociedade (seu núcleo moral mínimo), no qual o próprio Tribunal está inserido.

Talvez tais contradições expliquem por que, em determinado momento, o Supremo Tribunal Federal admite a pesquisa com embriões ou o aborto de fetos anencéfalos e, em outro, por maioria, não adere às teses seculares que defendem o fim da proibição do aborto fora das ditas situações excepcionais:

[...] Com esse novo arranjo em movimento mais do que em judicialização da política e das grandes questões sociais de nosso tempo, pode se falar hoje em tribunalização. Tem restado ao Supremo Tribunal Federal decidir sobre questões cruciais e ele não tem recusado o encargo. Ao contrário o Tribunal tem afirmado sua função de definir a vontade da Constituição em diversas áreas e sobre temas relevantes da vida política e social do Brasil contemporâneo, desde a titularidade de cargos eletivos até as condições de funcionamento parlamentar dos partidos políticos; desde a criação de municípios até a demarcação de áreas indígenas; desde a Reforma da Previdência até a guerra fiscal entre estados; desde a união estável homoafetiva até a licitude do aborto de fetos anencéfalos. Mas também tem decidido sobre a promoção de professores e a aplicação de multas por sociedade de economia mista. (CAMPOS, 2013, p. 7883).

A ascensão política do Poder Judiciário – com seus recalques, adotando aqui um termo tipicamente freudiano (mecanismo mental de defesa contra ideias incompatíveis com o ego) – foi acompanhada por uma imersão de seus membros no ambiente político, sem que sua representação tenha a mesma origem dos agentes políticos dos demais poderes. Ou seja, seus integrantes não são legitimados pelo voto universal, direto e secreto para um mandato de duração certa. Essa ausência de legitimidade popular, à primeira vista, aparenta ser a fonte de algumas contradições observadas nas próprias decisões do Tribunal, principalmente nas chamadas decisões contramajoritárias – incluindo-se nelas o acatamento de pedidos de partidos de oposição ao governo eleito pela maioria para decidir sobre atos políticos.

A questão central desse atual vitalismo dos onze integrantes do Tribunal Constitucional brasileiro – que empurra a concepção jurídica para o campo do razoável por não identificar, de imediato, no Direito, os valores essenciais que permitam a decisão racional – é saber se as preferências pessoais de um ou de alguns integrantes da sociedade são suficientes para que decisões dessa natureza sejam impostas a todos os outros milhões de indivíduos.

Em uma primeira via, poderíamos conceber que a mera vontade de onze pessoas, reunidas ao acaso ou por algum critério convencional, não seria suficiente para explicar o motivo pelo qual determinada deliberação, tomada por maioria entre os onze (e muitas vezes individualmente), deveria ser observada por cerca de duzentos e doze milhões de pessoas. Tal fato implica reconhecer que não são as qualidades pessoais ou os atributos intelectuais desses onze integrantes que conferem autoridade a suas decisões.

A partir da constatação da ausência de autoridade intelectual ou pessoal do agente da decisão – que exclui o indivíduo da formulação hobbesiana (autoritas, non veritas facit legem) –, poder-se-ia cogitar que a obrigatoriedade de suas decisões estaria relacionada à constituição do órgão decisor por um procedimento especial – constituinte –, cuja origem se encontra na representação política.

O sistema representativo, portanto, quando os cidadãos que formam a comunidade delegam atribuições aos seus representantes constituintes para estabelecer a repartição das funções e dos poderes originários, credenciaria essas onze autoridades, escolhidas por esses representantes, a decidir questões morais, tornando suas decisões obrigatórias a todos, simplesmente por buscar essa autoridade na norma fundamental – interpretada ao seu modo. Contudo, como se sabe, tal explicação não é suficiente para autoimpor a autoridade de suas decisões, restando o império de tais procedimentos decisórios entregue ao uso da força, com a finalidade de coagir milhões de cidadãos ao cumprimento de decisões ou deliberações desse seleto grupo. Isso tampouco resolve os problemas que surgem quando a norma criada após o fato, aparentemente aplicável a uma infinidade de outros casos, produz efeitos indevidos no meio social ou político.

Em tese, como considera Siches (1973, p. 265-266), nessa última hipótese, o problema somente se torna solúvel mediante procedimentos racionais de ponderação, que permitiriam uma compreensão prévia dos efeitos da decisão em determinadas situações reais. Tal fato implica reconhecer a necessidade de concordância dos efeitos práticos da decisão com os valores que inspiram o ordenamento jurídico positivo, sobre o qual esse ordenamento tem sua real fundamentação. Assim, conclui-se que, nessa solução, quando a decisão se mostrar contrária a esses valores, a norma encontrada através da ponderação não deve ser aplicada à situação concreta.

A hipótese de colisão entre a decisão e os valores e virtudes hauridos do ambiente social no momento de elaboração da norma, portanto, indica que os onze indivíduos responsáveis por deliberar sobre tais questões morais, quando o fazem a partir de suas próprias convicções e sentimentos, somente podem impor suas decisões por meio de multas, da ameaça ou do uso da força.

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Em geral, porém, não se verifica uma reação imediata da maioria a esse tipo de decisão, uma vez que a vida do indivíduo não é diretamente afetada. Eventuais críticas ou descontentamentos acabam se restringindo a alguns setores sociais, com destaque para os ambientes religiosos e segmentos do Parlamento ou do meio político. No entanto, essas críticas não costumam ganhar grande repercussão na imprensa, devido ao seu confinamento no escaninho das “opiniões sem importância”.

Nesse contexto, pode-se perceber que o emotivismo cria um cenário no qual a norma aplicada ao caso concreto esconde seu uso como meio de governo da minoria. A persuasão, a manipulação e a distorção dos critérios de aplicação da norma acabam por ocultar os verdadeiros objetivos da tomada de decisão.

Encontramo-nos, assim, diante de um quadro em que o Supremo Tribunal Federal, ao assumir uma postura guevarista de “vanguarda moral” e aproveitar-se da fragmentação e inércia dos demais poderes, busca, sem a conquista de uma Sierra Maestra, alterar, por meio das convicções pessoais de seus juízes, valores e virtudes que se expressam no meio social e na formação do indivíduo por meio das agências socializadoras, principalmente aquelas ligadas à tradição e à religião. Esta última, inclusive, passa a ser identificada como incapaz de produzir conhecimento racional. Dessa forma, tal compreensão “eleva” os juízes da Corte Constitucional à condição de verdadeiros “sacerdotes” seculares, caracterizando o que se pode denominar de “ativismo emotivista”.


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Notas

1 Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico/anexo/RHC2244.pdf. Acesso em: 9 fev. 2021.

2 Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico/anexo/HC4781.pdf. Acesso em: 9 fev. 2021.

Sobre o autor
Jeronymo Pedro Villas Boas

Especialista em Direito Processual Penal pela Universidade Federal de Goiás e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VILLAS BOAS, Jeronymo Pedro. A crise na separação dos poderes e o ativismo judicial emotivista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7898, 14 fev. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89612. Acesso em: 19 dez. 2025.

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