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Os percalços da boa técnica legislativa e a execução em face da Fazenda Pública por título extrajudicial, à luz da Lei nº 11.232/2005

05/10/2006 às 00:00
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INTRODUÇÃO

            O presente artigo procura apontar, pelo estudo particularizado da nova redação do Art. 741 do CPC, dada pela Lei nº 11. 232, de 22 de dezembro de 2005, o desprezo do legislador reformista do Código de Processo Civil ao emprego da boa técnica legiferante, tentando demonstrar a possível interpretação do confuso dispositivo legal supracitado.

            Ressalta, ainda, como a falta de precisão, no momento da feitura da norma jurídica, gera prejuízo à racional aplicação do direito.


1.MOVIMENTO REFORMISTA E O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

            A legislação processual civil brasileira vem passando por fortes transformações, iniciadas na década de 90, valendo destacar o marco inaugural da Lei nº 8. 455/1992, que expressou a primeira fase do movimento reformista.

            A técnica usada pelo legislador foi promover alterações cirúrgicas no corpo do Código de Processo Civil de 1973. Assim, o legislativo Federal não precisou defrontar-se com o risco de aprovar uma nova codificação, alternativa esta que enfrenta várias dificuldades práticas, dentre elas, o longo tempo de tramitação legislativa, bem como a reconstrução de toda uma jurisprudência formalizada desde 1973 em torno do código vigente.

            O objetivo central do movimento reformista é proporcionar uma maior dinâmica ao processo, fazendo com que o tempo de tramitação das demandas civis se reduza, pois o sistema processual enfrenta, na atualidade, fortes críticas apresentadas tanto pelos operadores do direito, quanto pelos jurisdicionados em geral, porquanto é de todos sabido que demandar no Brasil representava, até o advento da Lei nº 11. 232/2005, percorrer uma via crucis interminável, que começava com o processo de conhecimento, passava pela liquidação de sentença e culminava com o processo executivo.

            Tamanha sucessão de procedimentos exige o decurso de lapsos temporais inevitáveis, que no sistema processual brasileiro se tornam quase sem fim, com a abertura e a reabertura ilimitada da via recursal, tornando o processo civil um caminho sinuoso e imprevisível na conquista do bem da vida almejado pelo litigante.

            Esse cenário desestimula o cidadão a buscar a prestação jurisdicional, vez que o caminho processual pode se tornar cheio de esperanças, mas divorciado de concreção e efetividade.

            A resposta apresentada pelo Poder Legislativo a tal problemática foi modernizar a lei processual, o que foi feito à luz de dois caminhos reformistas. O primeiro busca mitigar o número de recursos combativos das decisões interlocutórias, tornando exceção o uso dos agravos. Essa vertente trilhou por afastar a síndrome de desconfiança em face das decisões proferidas por órgãos monocráticos de jurisdição, o que vem sendo realizado na medida em que se tem dado maior efetividade e possibilidade de execução imediata aos provimentos judiciais emanados de tais órgãos. O outro caminho tem como paradigma modernizar o procedimento e a ritualística processual, com implantação de institutos modernos de efetivação das decisões judiciais, dentre eles: o sincretismo processual, a antecipação dos efeitos da tutela, o fim dos processos cautelares preparatórios, etc.


2.ALTERAÇÕES PROVIDAS PELA LEI Nº 11. 232, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2005

            Um dos agentes importantes no cenário reformista foi o diploma legal de 22 de dezembro de 2005, qual seja, a Lei nº 11. 232, que instituiu entre nós o processo sincrético para o cumprimento de sentenças condenatórias, nas obrigações de pagar quantia certa.

            O processo sincrético foi incluído inicialmente no Código de Processo Civil Brasileiro pela Lei nº 8. 952, de 13 de dezembro de 1994; contudo, somente para as obrigações de fazer e não fazer. O êxito de tal modificação encantou tanto o legislador pátrio que, em 07 de maio de 2002, pelo conduto da Lei nº 10. 444, foi estendida a positiva experiência para as obrigações que envolvem a entrega de coisa.

            Nessa esteira, a Lei nº 11. 232, de 22 de dezembro de 2005, resgatou a efetividade dos títulos judiciais do sectarismo representado pela divisão do processo em ação de conhecimento, antecedente, e ação executiva, conseqüente, ascendendo ao "Jardim do Éden" o cumprimento de sentenças condenatórias de obrigações de pagar, resultante da aplicação a tal caso do moderníssimo processo sincrético.


3.DESPREZO PELO LEGISLATIVO BRASILEIRO QUANTO AO USO DA BOA TÉCNICA NA ELABORAÇÃO DAS LEIS

            No contexto das reformas realizadas na lei de processo, o legislador pátrio não tem passado imune às críticas quanto à forma açodada com que vem elaborando os novos dispositivos legais, o que torna o cumprimento das novas leis um difícil caminho a ser trilhado, mormente pelo poder que tem a função primordial de dizer o direito, qual seja, o Poder Judiciário.

            Muitas vezes, o desprezo pela boa técnica legislativa revela-se de caráter proposital, conforme já foi relatado pelo ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim. Sem meias palavras, ele, em certa sessão plenária do STF, apresentou um bom exemplo da forma como o parlamento brasileiro funciona, referido-se a elaboração da norma do Art. 7º, inciso XV [01], da Carta Magna de 1988, pela respectiva Assembléia Nacional Constituinte. Dizia o Magistrado que as forças do "Centrão" [02] admitiam um dia qualquer da semana, como repouso periódico e remunerado do trabalhador, na seção dos direitos sociais, enquanto o grupo de constituintes ligados aos sindicatos de empregados pretendia lançar no texto constitucional dispositivo fixando tal dia de descanso obrigatoriamente aos domingos.

            Como casa da conciliação de interesses antagônicos da sociedade que é, o parlamento nacional, investido naquele momento do poder constituinte originário, harmonizou as tendências ali em conflito, colocando no texto da Carta Magna que o trabalhador goza do direito de repouso semanal remunerado, devendo tal dia de descanso ser preferencialmente aos domingos. Ou seja, atenuar a precisão da norma constitucional, nem que para isso se perca um pouco da sua força normativa, foi a saída encontrada pelo legislador para solver a tensão de interesse apresentada naquela quadra. No caso, era preciso abandonar a boa técnica legiferante para agradar às duas forças políticas que ameaçavam romper o cabo de guerra das contradições sociais, próprias do sistema capitalista, representado pela disputa por melhores condições de trabalho, de um lado, e por melhores condições de produção, de outro.

            Em momentos outros da história do processo legislativo, a boa técnica, quando da elaboração das leis, foi posta de lado pelo movimento incauto de produção de normas urgentes, momento em que a opinião pública clamou por modificações legais imediatas.

            Tal dificuldade enfrentada pelo parlamento foi assim notada pelo Professor Humberto Theodoro Júnior [03], verbis:

            O próprio legislador, em quem os indivíduos pensavam poder confiar para, na votação livre e democrática das leis, estabelecer os limites do autoritarismo do poder do governante, abdica simplesmente da competência de traçar, com precisão e segurança, os preceitos que deveriam presidir o comportamento individual no seio da coletividade. Preferem, por comodidade, por menor esforço, ou por submissão a idéia de momento de puro efeito demagógico, legislar por fórmulas excessivamente genéricas (cláusulas gerais, normas abertas e quejandas).


4.PROBLEMA DECORRENTE DA INTERPRETAÇÃO LITERAL DO ART. 741, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, COM A NOVA REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 11. 232, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2005

            Para não fugir à regra, a Lei nº 11. 232/2005 também padece de boa técnica na sua elaboração. Isso porque, desde que foi enviado ao parlamento, o Projeto de Lei Original nº 3. 253/2004 já contemplava uma pequena e quase imperceptível imprecisão textual quanto ao Art. 741 do CPC.

            A redação original do caput do dispositivo continha a seguinte redação, verbis: Art. 741. Na execução fundada em título judicial, os embargos só poderão versar sobre:(GN)

            A Lei nº 11. 232/2005 deu nova redação ao dispositivo, mudando inclusive a denominação do Capítulo II, do Título III, do Livro II, do CPC, de "DOS EMBARGOS À EXECUÇÃO FUNDADA EM SENTENÇA" para "DOS EMBARGOS À EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA".

            Pela redação atual, o dispositivo ganhou o seguinte texto, verbis: "Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre:"

            A modificação criada pelo último diploma legislativo representa um retrocesso à clareza do texto da lei, posto que, obedecida a sua literalidade, coloca em vala comum a execução aparelhada por título judicial e extrajudicial em face da Fazenda Pública. Ou seja, ao "pé da letra", em todas as execuções, tanto por título judicial quanto por título extrajudicial, cuja devedora seja a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre as matérias referidas no Art. 741 do CPC.

            Como é por demais sabido no âmbito jurídico, a execução aparelhada por título judicial tem espectro de defesa do devedor mais restrito, uma vez que os embargos só podem versar sobre matérias previamente definidas pelo legislador. Já a execução fundada em título extrajudicial, o campo de defesa do devedor é numerus appertus, tendo o executado um campo infinito de possibilidades de glosar o título em efetivação, na forma do Art. 745 do CPC.

            É válido registrar, contudo, que a execução fundada em sentença judicial, após o advento da Lei nº 11. 232/2005, só sobrevive hodiernamente para o processo que tem a Fazenda Pública como devedora. Já o processo executivo por título extrajudicial permanece incólume, independentemente de quem seja o devedor.

            Sendo assim, melhor poderia ter agido o legislador reformista processual civil se tivesse mantido a expressão "título judicial", no Art. 741 do CPC, já que a interpretação literal do dispositivo pode conduzir a duas conclusões de retrocessos, quais sejam:

            1º) levar o intérprete desavisado a pensar que a alteração legislativa sepultou definitivamente a execução por título extrajudicial contra a Fazenda Pública; e

            2º) levar o operador do direito a pensar que somente os devedores particulares, e nunca a Fazenda Pública, poderão embargar, em amplo espectro de matérias de defesa, a execução por título extrajudicial.

            Ambas as conclusões precipitadas seguem adiante analisadas neste artigo.


5.DA POSSIBILIDADE DE EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL EM FACE DA FAZENDA PÚBLICA

            Quanto à possibilidade de tal forma de execução em face da Fazenda Pública, o Superior Tribunal de Justiça já editou súmula, na qual restou assim definida a questão, verbis:

            Súmula do STJ nº279 - É cabível execução por título extrajudicial contra a Fazenda Pública.

            A doutrina pátria, sob o mesmo pálio, em sua maioria esmagadora, vem admitindo a execução por título extrajudicial em face da Fazenda Pública, conforme escólio de Alexandre Freitas Câmara [04], verbis:

            "A doutrina dominante, diversamente, e com razão, tem admitido a execução fundada em título extrajudicial, a qual seguirá o mesmo regime especial previsto nos arts. 730 e 731 do Código de Processo Civil. "

            Também nesse sentido, relevante se faz citar a bem posta lição do professor Luiz Emygdio F. da Rosa Jr. [05], verbis:

            Entendemos que a execução contra a Fazenda Pública pode basear-se em título judicial ou extrajudicial porque o Art. 100 da CF, quando reza que os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas, em virtude de sentença judiciária, emprega o termo sentença em seu sentido lato e não no sentido restrito do §1º do art. 162.

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            Sendo assim, não se admite mais, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, a tese sustentada por alguns no sentido de que a exigência de expedição de precatório para o pagamento dos débitos fazendários seja obstáculo à execução por título extrajudicial em face da Fazenda Pública.


6.TRATAMENTO ISONÔMICO ENTRE CONTENDORES. IMPOSSIBILIDADE DE DISCRIMINAÇÃO EM FACE DE PESSOAS NA MESMA SITUAÇÃO JURÍDICA

            Também não se justifica restringir as matérias postas ao debate da defesa da Fazenda Pública, em sede de embargos por títulos extrajudiciais. Ao se dispensar interpretação ao Art. 741 do CPC, com redação dada pela Lei Nº 11. 232/2005, como aplicável tanto às hipóteses de execução por título judicial, quanto às hipóteses de títulos extrajudiciais, estar-se-iam enclausurando os entes públicos aos grilhões dos numerus clausus elencados nos incisos do supracitado dispositivo legal.

            Tal exegese conduz à interpretação que cria uma discriminação indesejável em face de quem se encontra, no mínimo, em situação de igualdade em relação a outros contendores, tais como os particulares em geral.

            Inversamente do que pode sugerir a interpretação literal ora em análise, a Fazenda Pública, por representar o interesse coletivo, goza de prerrogativas processuais que a coloca em situação diferenciada em detrimento dos administrados.

            Exemplos disso são os prazos dilatados para recorrer e contestar (Art. 188, do CPC), gozados pela Fazenda Pública.

            O princípio da isonomia é corolário do devido processo legal, sendo que fugir ao tratamento isonômico, que deve ser dispensado às partes na mesma situação, significa ter que justificar o discrímen à luz da razoabilidade e da proporcionalidade [06].

            Nesse sentido, é válido transcrever a lição do professor Leonardo Carneiro Cunha [07], verbis:

            Na verdade, o princípio da igualdade dirige-se, em princípio ao próprio legislador, que não pode incorporar na legislação discriminações intoleráveis ou, melhor dizendo, desarrazoadas. Significa que o princípio da razoabilidade finca a aplicação do princípio da isonomia.

            Portanto, afastar a aplicação do Art. 745 [08] do CPC, quanto à execução fundada em título extrajudicial em face da Fazenda Pública, significa criar uma espúria vedação ao pleno exercício do direito de defesa do erário, o que é inaceitável, considerando os princípios constitucionais aplicáveis ao processo e a importância social do interesse protegido pelas pessoas jurídicas de direito público.


CONCLUSÃO

            Por todo o exposto, pode-se chegar às seguintes conclusões.

            - A legislação processual civil vem passando por profundas transformações, tendo por meta dinamizar o processo e criar mecanismos de otimização do serviço jurisdicional.

            - O parlamento pátrio não tem tratado o mister de elaborar leis com o devido cuidado que a nobreza da função exige, o que se demonstra pela produção de normas jurídicas sem o resguardo da boa técnica legiferante, algumas vezes, v. g. , provocadas por fatores extralegislativos.

            - A Lei nº 11. 232/2005, que em boa hora trouxe positivas transformações ao processo civil, especialmente por estender a metodologia do processo sincrético ao cumprimento das sentenças condenatória envolvendo obrigação de pagar quantia, não passou ilesa às imperfeições do processo legislativo supracitadas.

            - O Art. 741 do CPC, que ora trata das execuções que tenham a Fazenda Pública como devedora, embora tenha sofrido modificação de texto, pela redação dada pela Lei nº 11. 232/2005, deve ser aplicado restritivamente às execuções aparelhadas por título judicial, sob pena de o intérprete alentar as conseqüências nefastas acima apontadas.


Notas:

            01

XV - repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos;

            02

Representava as forças conservadoras no processo legislativo da Assembléia Nacional Constituinte.

            03

JÚNIOR, HUMBERTO THEODORO. "A Onda Reformista do Direito Positivo e suas Implicações com o Princípio da Segurança Jurídica" REVISTA IOB DE DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL, Porto Alegre, n. 40, p. 25-53, mar. /abr. 2006.

            04

"Lições de Direito Processual Civil" 7ª ed. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2003. 339 p. v. II.

            05

ROSA JR, LUIZ EMYGDIO F. DA. "Manual de Direito Financeiro & Direito Tributário" 18ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 792 p.

            06

Para os que adotam diferenciação entre os dois conceitos.

            07

"A Fazenda Pública em Juízo", São Paulo: Dialética, 2003. 25 p.

            08

Art. 745. Quando a execução se fundar em título extrajudicial, o devedor poderá alegar, em embargos, além das matérias previstas no artigo 741, qualquer outra que lhe seria lícito deduzir como defesa no processo de conhecimento.
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Sobre o autor
Paulo de Tarso Duarte Menezes

juiz de Direito em Bodocó (PE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEZES, Paulo Tarso Duarte. Os percalços da boa técnica legislativa e a execução em face da Fazenda Pública por título extrajudicial, à luz da Lei nº 11.232/2005. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1191, 5 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9004. Acesso em: 24 abr. 2024.

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