O ILÍCITO CONSTATADO
Frigoríficos devedores do Estado de Mato Grosso do Sul (créditos tributários inscritos e não inscritos em dívida ativa), requereram, no prazo e forma legais, a liquidação mediante compensação com crédito contra a Fazenda Pública (precatório), na forma das previsões contidas na Lei Estadual 3.045/05.
Mas os pedidos foram indeferidos, sob o argumento de que os débitos são inferiores ao valor de R$ 1.356.000,00 (indicado pelo art. 3º da Lei 3.045/05, em leitura conjugada com o art. 9º, como limite a partir do qual se podia quitar dívida fiscal mediante compensação com precatório).
Ou seja: admitiam as autoridades estaduais o pagamento de dívida tributária, mediante compensação com precatório, em parcela única, apenas no caso em que a dívida do contribuinte fosse superior a R$ 1.356.000,00. Como a dívida dos Frigoríficos (total dos 3 processos) alcança apenas o valor de R$ 696.394,48, os pedidos de obtenção dos benefícios da Lei 3.045/05 foram rejeitados.
É caso, pois, de sustentar que as decisões administrativas deixaram de interpretar/aplicar de forma extensiva os dispositivos da Lei 3.045/05, desatendendo, a mais não poder, o princípio constitucional da ISONOMIA, daí a necessidade de tudo ser questionado, para garantir o direito à compensação.
A ISONOMIA TRIBUTÁRIA
As autoridades administrativas, como já anotado, guiando-se apenas pela interpretação literal (a "mais odiosa das exegeses", STJ – REsp 721.190, Rel. Min. LUIZ FUX) e restritiva, negaram aos Frigoríficos o benefício da liquidação de dívidas fiscais mediante compensação com precatório (crédito contra a Fazenda Pública estadual), porque o valor da dívida não superava o limite de R$ 1.356.000,00 (arts. 3º e 9º da Lei 3.045/05).
Curiosa e absurda, certamente, a conduta das autoridades, tanto que nem mesmo da Justificativa do Projeto que gerou a Lei 3.045/05 se consegue extrair, como seria necessário, o porquê dessa ilícita limitação, que acabou sendo seguida para levar à prática do que se pretende questionar.
Os atos administrativos em destaque, portanto, como é fácil demonstrar, desatendem o magno princípio constitucional da ISONOMIA, revelador da "impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas" (STF, Ag. Instr. nº 207.130-1/SP, Rel. Min. Marco Aurélio), que tem especial roupagem tributária (art. 150, II, da CF/88), porquanto (mediante a aplicação das disposições legais) se estabeleceu tratamento desigual entre contribuintes que se encontram em situações equivalentes (STF, ADIn 1655, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA).
A desatenção ao princípio da isonomia pelas condutas questionadas, como há de ser lembrado, já foi apreciada diversas vezes pelo TJ/MS, inclusive pelo TRIBUNAL PLENO (agravo regimental em mandado de segurança nº 2005.013398-8, Rel. Des. ILDEU DE SOUZA CAMPOS; mandado de segurança nº 2005.014699-2, Rel. Des. ELPÍDIO HELVÉCIO CHAVES MARTINS; mandado de segurança nº 2005.012871-2, Rel. Des. JOÃO CARLOS BRANDES GARCIA). Eis o que restou considerado nesses julgamentos (o 1º acórdão em votação unânime e os outros por maioria bastante elástica):
"Segundo a doutrina pátria, o princípio da isonomia tributária, como redigido no inciso II do art. 150 da CF, caracteriza-se por ser um comando voltado tanto para o legislador ordinário (igualdade na lei), como para o intérprete, ao aplicar a norma ao caso concreto (igualdade perante a lei), prescrevendo que a lei não poderá estabelecer diferenças entre os contribuintes com base em critérios arbitrários, ou relativos a condições inerentes às pessoas ou seu status. Somente a Constituição pode contrariar a literalidade do princípio da isonomia tributária, merecendo ser concedida a ordem para assegurar ao contribuinte o direito líquido e certo de usufruir de formas excepcionais de pagamento de créditos tributários vencidos, previstas em lei estadual, demonstrada a total ausência de pertinência lógica de certo discrimen nela consignado, negando suas benesses, sem motivos algum, somente a determinados segmentos comerciais" (mandado de segurança nº 2005.014699-2, Rel. Des. ELPÍDIO HELVÉCIO CHAVES MARTINS).
Como revelou o Desembargador JOÃO CARLOS BRANDES GARCIA (relator do mandado de segurança nº 2005.012871-2), "se a lei estadual foi criada ‘para beneficiar a sociedade por inteiro, mediante a recuperação de receita’, como apregoa a autoridade impetrada às f. 76, maior razão há para estender a benesse a todos que queiram realmente regularizar seus débitos com o fisco, de modo a permitir, mediante as condições diferenciadas previstas no diploma, um aumento da arrecadação..." (f. 130).
É o mesmo que pretendem pleitear os Frigoríficos: invalidar os atos administrativos (decisões que negaram os benefícios da Lei 3.045/05), para garantir, mediante interpretação/aplicação da norma à luz do princípio da isonomia, o direito de usufruirem de formas excepcionais de pagamento de créditos tributários vencidos.
O que se pretende pedir de fato se relaciona com a ATUAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA em dois planos distintos: frente ao legislador (impedindo que se possam criar tratamentos abusivamente diferenciados) e frente ao intérprete/aplicador da norma (que deve aplicar a lei de maneira igualitária). ALEXANDRE DE MORAES ("Direito Constitucional", Atlas, 13ª ed., p. 65) tudo esclarece: "O intérprete/autoridade pública não poderá aplicar as leis e atos normativos aos casos concretos de forma a criar ou aumentar desigualdades arbitrárias. Ressalte-se que, em especial o Poder Judiciário, no exercício de sua função jurisdicional de dizer o direito ao caso concreto, deverá utilizar os mecanismos constitucionais no sentido de dar uma interpretação única e igualitária às normas jurídicas" (destaques nossos).
A Constituição (como ordem jurídico-normativa fundamental e impulso dirigente de toda a coletividade - CANOTILHO), pois, é que deve guiar (como sempre) a correta interpretação/aplicação do que está contido na Lei 3.045/05, para que não se deixe de estender seus efeitos àqueles que têm o direito de desfrutá-los.
Ou se aplica a Lei 3.045/05 de forma acrítica, literal e restritiva, como fizeram as autoridades administrativas, ou se aplica a Lei 3.045/05 de forma crítica e extensiva, como tem feito o TJ/MS (nos julgamentos anteriormente citados), seguindo-se, sempre e sempre, a noção da SUPERIORIDADE NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO (de onde se extrai o princípio da isonomia tributária).
Informa-se, por fim, que não é caso de rejeitar eventual impetração (mandado de segurança) sob a alegação de que os benefícios da Lei 3.045/05 não podem mais ser usufruídos porque a sua vigência era por prazo certo, uma vez que os Frigoríficos requereram o benefício quando a lei estava a produzir efeitos, cumprindo o prazo (que foi ampliado, pela Lei 3.122/05) e as demais exigências. Pretende-se combater, agora, as negativas, dentro do prazo legal do mandado de segurança (art. 18 da Lei 1533/51). A situação apresentada é comparável ao caso das isenções condicionais com prazo certo, que, uma vez revogadas, continuam gerando, para os contribuintes que cumpriram as condições previstas em lei, o DIREITO ADQUIRIDO ao desfrute do benefício, porque se "incorporam ao patrimônio de seu destinatário" (ROQUE ANTONIO CARRAZZA, "Curso de Direito Constitucional Tributário", Malheiros, 14ª ed., p. 564).
CONCLUSÃO
O que expusemos, pois, é uma das maneiras de interpretar juridicamente o tema em questão, parecendo mesmo ser o caso de proclamar a desvalia jurídica dos atos administrativos ora noticiados, para garantir aos Frigoríficos o direito à liquidação das dívidas fiscais mediante compensações com precatórios, tal como requerido administrativamente.
Informamos que, apresentada a tese ao Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul (autos do mandado de segurança nº 2006. 006159-4 – www.tj.ms.gov.br), a mesma foi acolhida, por maioria de votos, concedendo-se a segurança.