Segundo o Estadão, em sua edição de 21 de abril do corrente ano, o ministro da Defesa Braga Netto destacou que é preciso respeitar o processo democrático e a escolha da maioria dos brasileiros para conduzir o País. “O momento requer um maior esforço de união nacional, com foco no combate à pandemia e no apoio à vacinação”, declarou o ministro, durante o evento de troca do comandante do Exército. “Enganam-se aqueles que acreditam estarmos sobre um terreno fértil para iniciativas que possam colocar em risco a liberdade conquistada por nossa nação. É preciso respeitar o rito democrático e o projeto escolhido pela maioria dos brasileiros para conduzir os destinos do País”, disse o general.
Data venia, venho discordar.
A uma, porque os mais de cinquenta milhões de brasileiros não votaram necessariamente em um projeto que lhes era oferecido de enfraquecimento das normas ambientais e armamento da população, Votaram, sim, parece-me, em ampla maioria num projeto antipetista de governo e pouco a pouco foram perdendo o “encantamento” com o governo eleito.
A duas, o Estado não é imóvel, exigindo sempre mudanças, pois assim quer a sociedade.
Volto-me às lições de Rudolph Smend.
Rudolph Smend, jurista alemão a que se deve a chamada teoria da integração, procurando assentar as bases de uma nova teoria do Estado, eminentemente social-democrática, dizia que
“o Estado é uma permanente realidade que se renova com a participação e a adoção de todas as consciências, as quais, enquanto partícipes da finalidade comum e em seu sentido orientadas, representam a própria realidade do Estado expressa em atos e funções”.
Dizia ele:
“O Estado vive de um plebiscito que se repete todos os dias. Este fato da vida estatal é, por assim dizer, a sua substância medular, e é este fato que eu denomino integração”.
Ou seja: o governante deve se legitimar junto ao povo, todos os dias.
Com o termo integração, no estudo de uma democracia social, Smend indicou a adequação constantemente renovada pelos indivíduos e grupos, por meio de atos e funções, à ideia diretora da comunidade, aos valores ou às “imagens espirituais coletivas”.
Rudolf Smend via o Estado como integração.
Ensinou ele:
[...] o Estado não constitui como tal uma totalidade imóvel, cuja única expressão externa consiste em expedir leis, acordos diplomáticos, sentenças ou atos administrativos. Se o Estado existe, é unicamente graças a estas diversas manifestações, expressões de uma estrutura espiritual e, de um modo mais decisivo, através das transformações e renovações que tem como objeto imediato dita estrutura inteligível. O Estado existe e se desenvolve exclusivamente neste processo de contínua renovação e permanente revivescência; utilizando aqui a célebre caracterização da Nação de autoria de Renan, o Estado vive de um plebiscito que se renova a cada dia. Para esse processo, que é o núcleo substancial da dinâmica do Estado, propus já em outro lugar a denominação de integração.
(Constitución y Derecho Constitucional. Traducción de José Maria Beneyto Pérez. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985, p. 62-63), como registrou
A “integração da realidade”, para Smend (obra citada, p. 70), inclui três “momentos” ou processos e, “em todo caso, se caracteriza pelo predomínio de um ou outro”, denominados como de “integração pessoal”, “integração funcional” e “integração material”.
Como o próprio nome diz, a “integração pessoal” implica uma configuração da comunidade através das pessoas que a dirigem politicamente, seus “chefes” ou “caudilhos”, que devem “lograr afiançarem-se como chefe[s] daqueles a quem dirigem” (Constitución y Derecho Constitucional. Traducción de José Maria Beneyto Pérez. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985, p. 71-72), de modo a formarem uma “unidade política”, já que “não há vida do espírito sem um princípio reitor”, como bem resumiu André Luiz Fernandes Fellet(Rudolf Smend e os direitos fundamentais como “ordem objetiva de valores”, RIDB, Ano 1 (2012), nº 11).
A “integração da realidade”, para Smend (Constitución y Derecho Constitucional. Traducción de José Maria Beneyto Pérez. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985, p. 70), inclui três “momentos” ou processos e, “em todo caso, se caracteriza pelo predomínio de um ou outro”, denominados como de “integração pessoal”, “integração funcional” e “integração material”.
Smend (obra citada, p. 73) afirmou que “o sentido da Chefia do Estado se lastreia em maior ou menor medida na ‘representação’, na ‘encarnação’ da unidade política do povo”, ao que completa: “Chefes de Estado cumprem uma função similar a que realizam, como tipos objetivos e funcionais de integração, as bandeiras, os escudos e os hinos nacionais”.
Nas palavras de Smend (obra citada, p. 80), O característico dos processos integradores de uma comunidade determinada reside em que ditos processos são geralmente processos que produzem, atualizam, renovam ou desenvolvem a substância espiritual da comunidade, que é precisamente o que constitui seu conteúdo objetivo. Na vida política são, portanto, fundamentalmente processos de conformação da vontade comunitária. Entretanto, isso não deve ser entendido – ao menos, não exclusivamente – em um sentido jurídico, é dizer, como se se tratasse de um negócio jurídico em sua acepção mais ampla, senão no sentido de uma contínua restauração da comunidade política como agrupamento de vontades, isto é, da permanente criação das condições necessárias para as sucessivas atualizações – incluindo especialmente as de tipo jurídico – da comunidade política como comunidade de vontades.
A teoria de Smend nos traz à discussão a questão da mutação constitucional.
Para Dau-Lin (1998, p. 29-31), segundo André Luiz Fernandes Fellet(Rudolf Smend e os direitos fundamentais como “ordem objetiva de valores”, RIDB, Ano 1 (2012), nº 11) mutações constitucionais são “incongruência[s] que existe[m] entre as normas constitucionais por um lado e a realidade constitucional por outro”, ao que acrescenta: Se o problema da mutação da Constituição se lastreia na relação entre a Constituição escrita [texto constitucional] e a situação constitucional real, é dizer, entre normas e realidade no campo do direito constitucional – a mutação constitucional é a relação incorreta entre ambas – então se podem diferenciar quatro classes da mutação da Constituição: 1. Mutação da Constituição mediante uma prática estatal que não viola formalmente a Constituição; 2. Mutação da Constituição mediante a impossibilidade de exercer certos direitos estatuídos constitucionalmente; [caso da “Constitucionalização Simbólica”, teorizada por Marcelo Neves.] 3. Mutação da Constituição mediante uma prática estatal contraditória com a Constituição; 4. Mutação da Constituição mediante sua interpretação.
Analisando o processo de integração, Smend cria todo um sistema de Direito que se denominou “integração jurídica”, procurando assentar as bases de uma nova teoria do Estado, como disse Miguel Reale(Teoria do Direito e do Estado, 5ª edição, pág. 45).
Acompanho a lição de Smend:
“Dessarte, o Estado não é um todo passivo que deixe escapar as diversas manifestações de vida, leis, atos diplomáticos, sentenças, medidas administrativas. O Estado encontra-se, contudo, sobretudo, em cada uma dessas manifestações de vida, enquanto são demonstrações de uma totalidade espiritual coerente, na qual verificam-se renovações e progressos cada vez mais importantes, tendo sempre como objetivo final essa mesma coerência”.
O Estado é, pois, um ser incessante, uma realidade espiritual que permanentemente se renova com a participação e adesão de todas as consciências, as quais, enquanto partícipes da finalidade comum em seu sentido orientadas, representam a própria realidade do Estado expressa em atos e funções.
Data vênia, com o devido respeito, a doutrina de Smend não faz descambar o Estado para o totalitarismo. Muito ao contrário.
Essa doutrina contribuiu para a assunção, pela Corte Constitucional, de “metodologia científico-espiritual de interpretação da Constituição”.
A partir da sentença proferida em 23 de outubro de 1952 (vale ressaltar que a Corte Constitucional alemã foi instalada no ano de 1951) sobre a proibição de um partido político, o Partido Socialista do Império(Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal (BVerfGE) (2,1)) em que o Tribunal enfrenta a vedação constitucional aos partidos contrários à “ordem liberal democrática” e entende que isso é uma referência aos “valores fundamentais supremos do Estado constitucional, baseados nas ideias de liberdade e democracia”, entre outras questões, é que se reconhece o rumo que a jurisprudência daquela Corte ia tomando nesse sentido, como disse André Luiz Fernandes Fellet(obra citada).
O Estado, pois, não é estático, é um movimento continuo. O governo deve legitimar-se todos os dias junto à população sob pena de danos inestimáveis ao processo democrático.