Arbitragem: meio adequado à solução de conflitos no Estado Democrático de Direito

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3. Liberdade e autonomia da vontade: fundamentos jusfilosóficos da arbitragem.

Como já se viu, a arbitragem, como método heterocompositivo de resolução de conflitos, por sua própria natureza, liga-se à autonomia da vontade. Assim, no procedimento arbitral, as partes voluntariamente pactuam por esta via e, em contrapartida, renunciam à jurisdição do Estado. Trata-se, portanto, da vontade livre, consciente e soberana dos indivíduos, harmonizando com a maioria dos sistemas legais disseminados pelo mundo. A autonomia da vontade é portando um dos pilares sobre o qual se assenta este método adequado de resolução de conflitos.

A este respeito, Igoor Raatz (2019, p. 89) discorre acerca do equilíbrio de forças que há de reinar entre o público e o privado, haja vista ser o cidadão o seu principal destinatário:

O Estado Democrático de Direito se contrapõe a relação pendular entre o privado e o público presente na contraposição entre Estado Liberal e Estado Social. Na verdade, busca-se um equilíbrio entre a autonomia privada e a autonomia pública, o que já significa pensar o espaço público numa dimensão democrática. Sobreleva aqui uma cooriginariedade entre o direito e o mecanismo para a geração do direito legítimo (princípio democrático), espelhada na noção de autolegislação do cidadão, a exigir que aqueles que estão submetidos aos direito como destinatários seus possam entender-se como autores do próprio direito. Desse modo, não se mostra mais crível falar numa prevalência a priori do interesse público sobre o privado, nem do interesse privado sobre o público “já que nem o público pode ser mais ser visto como estatal nem o privado como sinônimo de egoísmo.

À autonomia da vontade associa-se, ainda, a boa-fé, que, como princípio norteador da teoria dos contratos, deverá ser observada em todas as suas fases, desde a pré-contratual, passando por sua vigência, até eventuais conflitos dele decorrentes.

Já no momento pré-contratual, em que as partes negociam os termos de sua pactuação, elas podem optar por inserir a cláusula compromissória, na qual elegem a via arbitral para a solução de possível contenda. Tal cláusula poderá, de maneira simplificada, apenas eleger a arbitragem como cláusula de eleição de foro e sua sede – a denominada cláusula compromissória vazia, ou mesmo convencionar uma cláusula cheia, em que se estabelecerá o norte a ser seguido no procedimento arbitral, as regras de seu desenvolvimento e de sua regulação.

No entanto, mesmo que não havendo a eleição da arbitragem na fase de elaboração contratual, em caso de surgimento de conflito, os contratantes ainda poderão optar por esta via, com a instauração direta do procedimento junto à Câmara Arbitral escolhida e a elaboração do respectivo compromisso arbitral.

Entretanto, a autonomia privada não exclui o respeito aos dispositivos legais aplicáveis ao caso, figurando, como princípio norteador do procedimento, o devido processo legal. Tal princípio, previsto no inciso VIII, do art. 32. da Lei 9.307/1994, determina a nulidade do procedimento arbitral quando desrespeitados os princípios do art. 21, § 2º, da citada Lei, in verbis:

Art. 21. - A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento. [...]

§ 2º - Serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento. “ (destacado)

Para José Antonio Fichtner, Sergio Nelson Mannheimer e André Luís Monteiro (2019, p. 33), a liberdade no procedimento arbitral possui respaldo constitucional, pois deve ser exercida sempre em respeito aos dispositivos legais aplicáveis fixados em consenso pelas partes:

a autonomia privada das partes decorre da garantia constitucional da liberdade individual, prevista no caput do art. 5º da Constituição da República. Neste sentido, pode-se dizer que a autonomia privada é o elemento que coloca o instituto da arbitragem ao abrigo da proteção constitucional. A arbitragem é constitucional porque revela genuína expressão da liberdade individual.

Já em seu art. 1º, a Lei 9.307/1994 estabelece que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis” e normatiza quais litígios serão passíveis de solução por esta via e a capacidade das partes. Isso, por si só, já demonstra a priori o respeito aos princípios legais tanto da autonomia da vontade, quanto da igualdade das partes e do contraditório, visto que somente os capazes de contratar podem se utilizar da arbitragem. Em relação à matéria a ser discutida, apenas a relativa aos direitos patrimoniais disponíveis.

Nesta linha, a Lei 13.129/2015 alterou a redação do § 1º, do art. 3º da Lei da Arbitragem (Lei 9.307/1994), conferindo-lhe um novo respiro, haja vista a inserção também da administração pública direta e indireta como partes na arbitragem, a saber: “A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. Tal alteração consolidou uma longa discussão doutrinária acerca do tema e conferiu à arbitragem uma maior amplitude, ficando compatível com a solução de conflitos também de interesse o público.

Ainda quanto ao devido processo legal, o art. 2º, da Lei 9.307/1994 estabelece que:

Art. 2º A arbitragem poderá ser de direito ou de equidade, a critério das partes: § 1º Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública. § 2º Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio.

Por este dispositivo deduz-se que a decisão do árbitro, no caso concreto, poderá ocorrer incidindo-se o normativo legal positivo (arbitragem de direito) ou, se as partes assim o definirem, por equidade. Nesse contexto, o árbitro poderá utilizar, como parâmetro para seu julgamento, também os princípios gerais do direito, os usos e costumes, além das regras internacionais de comércio, novamente clarificando-se a liberdade de convenção entre as partes.

Com efeito, a expressão direito positivo, segundo José Antonio Fichtner, Sergio Nelson Mannheimer e André Luís Monteiro (2019, p. 64):

não significa apenas e tão somente as regras escritas nesses diplomas legislativos (estatais ou não) mas também aos princípios jurídicos admitidos no conjunto de normas escolhidas, inclusive os princípios implícitos. A expressão “direito positivo”, neste contexto, significa as normas jurídicas (regras escritas e princípios jurídicos) reconhecidamente incidentes no caso, seja este reconhecimento decorrente de previsão legal específica ou de construção doutrinária e/ou jurisprudencial. Assim, por exemplo, numa disputa a respeito da execução de um contrato de empreitada, em que as partes tenham estabelecido que o direito aplicável ao mérito da arbitragem será o da República Federativa do Brasil, os árbitros terão que julgar a controvérsia com base, especialmente, nos dispositivos do Código Civil relacionados ao contrato de empreitada. Se, v.g., as partes convencionaram num acordo de acionistas que eventual conflito será solucionado por arbitragem com bases nas leis em vigor no Brasil, isso significa que a causa deverá ser examinada pelo tribunal arbitral a partir, especialmente, dos dispositivos previstos na Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 9404/76). Da mesma forma, caso surja um litígio a respeito do cumprimento de um contrato de prestação de serviços e as partes tenham convencionado a aplicação do direito brasileiro ao caso, o tribunal arbitral bem poderá decidir o caso, por exemplo, com base no reconhecimento da surrectio ou da suppressio, as quais consagram a modificação tácita da relação jurídica a partir do comportamento reiterado da parte. A surrectio significa a ampliação do conteúdo obrigacional mediante prática contínua de usos e costumes locais admitidos pelas partes na execução do contrato. A suppressio, por sua vez, corresponde à mesma situação encarada pelo prisma inverso, na qual ocorre a redução do escopo obrigacional pelo fato de uma das partes ter deixado de exercer um direito durante um lapso temporal... essa aplicação somente é possível porque o Direito brasileiro expressamente reconhece esses institutos.

A arbitragem por equidade é muito pouco utilizada no Brasil. Trata-se de exceção no sistema arbitral e só pode ser levada a efeito por estrita concordância das partes. É cediço que a expressão “equidade”, por ter natureza polissêmica, causa debates tanto no direito pátrio, quanto na doutrina comparada. Há controvérsias quanto à extensão da liberdade dos árbitros de proferir sua decisão em desacordo com o direito positivo ou se poderiam até desconsiderar também as cláusulas contratuais expressas pelas partes.

Para Marina Rodrigues Martins, em sua monografia “Arbitragem: uma alternativa de acesso à justiça” (RJ, 2008):

A arbitragem de equidade é aquela na qual o árbitro, expressamente autorizado pelas partes, busca formular e aplicar uma regra particular para a solução do caso que lhe é submetido ... Quando julga por equidade, o árbitro age como se fosse, a um só tempo, legislador e juiz. Essa situação é a exceção, não sendo aplicada automaticamente, mas somente quando as partes expressamente se manifestarem nesse sentido.

Pelo que se depreende, na arbitragem por equidade, poderá haver a decisão da controvérsia fora das regras postas no direito positivo ou reduzindo-lhe os efeitos, a critério justo do árbitro e de acordo com seu entendimento. Entretanto, José Antônio Fichtner, Sergio Nelson Mannheimer e André Luís Monteiro (2019, p. 82) asseveram que “a decisão na arbitragem de equidade pode ser contrária ao direito positivo, mas não pode ser contrária aos fatos e às provas dos autos”.

Do mesmo modo, o entendimento do jurista Carlos Alberto Carmona (RT, 2011), de que “a autorização para julgar por equidade não permite o subjetivismo puro e simples; o poder de decidir fora dos limites estreitos do direito posto é amplo, mas não é arbitrário, tanto que a decisão deve ser motivada”, donde se infere que, também neste caso, o princípio do livre convencimento deve se ater aos fatos e às provas produzidas pelas partes.

Por fim, o princípio “Competência-Competência”, insculpido no art 8º, Parágrafo único, da Lei 9.307/1996, estabelece que “caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória”, ou seja, quem define, a priori, se a convenção de arbitragem é existente, válida e eficaz, bem como se o conflito posto poderá ser dirimido pela arbitragem é o árbitro, a quem cabe decidir acerca da sua própria competência.

Veja-se a respeito o voto da Eminente Ministra Nancy Andrighi no julgamento da REsp 1.614.070 – SP em 26/06/2018:

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Nesse sentido, é cediço que a Lei 9.307/96 adota o princípio da competência-competência (originada do alemão Kompetenz-Kompetenz), em seu art. 8º, parágrafo único, o qual atribui ao árbitro ou tribunal arbitral – e somente a eles – a prerrogativa para decidir acerca de sua própria competência. Considerando a aplicação de tal princípio, para que não seja inoportuna ou indevida a interferência do Poder Judiciário, deve-se respeitar a precedência temporal da decisão arbitral e, somente após, realizar o adequado controle pela via judicial.

Conclui-se que o princípio “Competência-Competência” refere-se à precedência temporal do árbitro para análise acerca de sua própria competência, além dos requisitos previstos no Parágrafo único, do art. 8º, da Lei de Arbitragem. Pode o Judiciário, inclusive, após a prolação da respectiva sentença arbitral e, se alguma das partes demandar pela anulação desta em razão do art. 32, I, da Lei 9.307/1996, reanalisar a sua competência.

Este posicionamento, assentado no Superior Tribunal e Justiça, é fonte garantidora de um maior desenvolvimento da Arbitragem no Brasil, premiando a autonomia das partes e a higidez do procedimento arbitral, conforme asseveram Eduardo Vieira de Almeida e Gustavo Favero Vaughn, no artigo “Arbitragem, princípio, competência e STJ”, publicado na Revsita Migalhas, em 30 de abril de 2020:

A jurisprudência do STJ orienta-se em favor do princípio competência-competência, resguardando a vontade das partes e, por decorrência, a própria higidez do processo arbitral. O respeito à competência-competência que o STJ vem garantindo ao longo dos anos permite o saudável desenvolvimento da arbitragem no Brasil, pois traz segurança jurídica e previsibilidade, elementos fundamentais para atrair investimentos, domésticos e estrangeiros1.

Cumpre ressaltar que, além dos princípios gerais da autonomia da vontade das partes, do devido processo legal e da Competência-Competência, o procedimento arbitral também se norteará por outros princípios que fazem estrita relação com os já mencionados, quais sejam: princípio da igualdade das partes, que tem seu nascedouro no art. 5º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...].

Daí se influi que todos - partes e procuradores têm direito a igual tratamento, podendo produzir suas provas, expor suas razões de fato e de direito em iguais oportunidades.

Por fim, presente também no procedimento arbitral o princípio da imparcialidade do árbitro, sendo essencial para que este comande o procedimento, garantindo igualdade de tratamento aos demandantes. Assim, conforme preleciona o art. 14, da Lei de Arbitragem, em seu § 1º, o árbitro indicado “tem o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência”.

De estreita ligação com o princípio da imparcialidade do árbitro deriva o princípio do livre convencimento, que lhe permite a liberdade na apreciação e avaliação das provas trazidas e dos fatos e fundamentos apresentados pelas partes. No entanto, tal convencimento deverá ser devidamente motivado, não sendo permitido ao árbitro se imiscuir da análise de todo conteúdo probatório.

Aqui também vale ressaltar que o direito ao contraditório deve ser plenamente respeitado. Assim, as partes possuem o direito à ciência e de se manifestarem sobre todos os atos e fatos presentes no procedimento, podendo a eles se contrapor. O direito à participação na formação do convencimento do julgador, princípio inerente ao processo da jurisdição estatal, também é garantia aos demandantes, nos tribunais arbitrais, da efetiva possibilidade de influenciar no desfecho do julgamento.

Sobre as autoras
Sônia Maria Valgas

Discente do 10º período do Curso de Direito do Centro Universitário UNA/BH.

Isabela Cristina da Silva

Discente do 10º período do Curso de Direito do Centro Universitário UNA/BH.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo/Trabalho de Conclusão do Curso de Direito do Centro Universitário UNA/BH. Orientação: Professora Doutora Natália Silva Teixeira Rodrigues de Oliveira.

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