4. Arbitragem como meio adequado de resolução de conflitos: uma alternativa ao contencioso jurisdicional
Em vigor há 17 (dezessete) anos, a Lei 9.307/1996 - Lei de Arbitragem já passou por reforma, foi objeto de debates, inclusive no Supremo Tribunal Federal. A constitucionalidade dessa Lei foi discutida incidentalmente pela Corte Suprema, no Agravo Regimental na Sentença Estrangeira nº 5206-7/ES, culminando com a decisão proferida, por maioria, em 12/12/2001. A referida Lei, portanto, é constitucional, não havendo nenhuma ofensa de seus dispositivos à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Tem-se, com isso, que os litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, em que as partes sejam capazes, poderão se valer desta via jurisdicional privada, como dispõe o art. 1º, da Lei n° 9.307, de 23 de setembro de 1996.
Para se deliberar pelo estabelecimento de uma convenção de arbitragem, há dois caminhos: a constituição, mediante cláusula compromissória cheia ou vazia, que obrigará as partes à arbitragem, pois sua estipulação expressa a renúncia à jurisdição estatal; ou mediante compromisso arbitral, nos termos do art. 3º, da Lei 9.307/1996, a saber: “Art. 3º - As partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral”.
A cláusula compromissória está prevista no art. 4º da Lei 9.307/1996 e o compromisso arbitral no art. 6º do mesmo Diploma Legal. Em ambos os casos, a arbitragem será o meio de solução de um conflito futuro em decorrência ou na duração do contrato, bem como para dirimir um conflito atual.
Acerca da convenção de arbitragem, Carlos Alberto Carmona (2004, p. 89) enfatiza que:
a convenção de arbitragem tem um duplo caráter: como acordo de vontades, vincula as partes no que se refere aos litígios atuais e futuros, obrigando-as reciprocamente à submissão ao juízo arbitral; como pacto processual, seus objetivos são o de derrogar a jurisdição estatal, submetendo as partes à jurisdição dos árbitros.
Selma Ferreira Lemes, no artigo “Convenção de Arbitragem e Termo de Arbitragem. Características Efeitos e Funções”, publicado em 2006, enumera os principais efeitos da convenção de arbitragem:
Ressalte-se, assim, que as principais características e efeitos da Convenção de Arbitragem, em ambas as modalidades, cláusula compromissória e compromisso arbitral, são de instituir compulsoriamente a arbitragem (efeito positivo), afastar a propositura de demanda judicial (efeito negativo) e estabelecer a forma como o árbitro deverá solucionar a controvérsia, bem como os limites de sua investidura.
Definida pela instituição da arbitragem, esta poderá seguir os caminhos da arbitragem institucional, pautada pela escolha das partes por órgão arbitral institucional ou entidade especializada, nos termos das diretrizes estabelecidas no Art. 5º da Lei de Arbitragem:
Reportando-se as partes, na cláusula compromissória, às regras de algum órgão arbitral institucional ou entidade especializada, a arbitragem será instituída e processada de acordo com tais regras, podendo, igualmente, as partes estabelecer na própria cláusula, ou em outro documento, a forma convencionada para a instituição da arbitragem.
O procedimento arbitral nessa modalidade seguirá as normas de uma Câmara Arbitral previamente escolhida pelas partes, que se obrigam ao cumprimento do regulamento respectivo. Entretanto, as partes poderão optar pela arbitragem ad hoc, quando desejarem ter um maior controle sobre o procedimento, podendo se utilizar das regras processuais a elas destinadas, tais como a da UNCITRAL – United Nations Commission on International Trade Law. Na arbitragem ad hoc, o procedimento não se molda à administração e controle institucional de uma câmara arbitral, sendo que as reuniões físicas acontecem em locais definidos pelas partes.
Ainda assim, poderá ser firmado o Termo de Arbitragem, previsto nos regulamentos nas Câmaras Arbitrais, onde as partes deliberam acerca das características do procedimento, podendo suprir lacunas existentes no compromisso arbitral. Nele, poderão ser efetuadas adaptações necessárias às especificidades do caso, além de fazer a delimitação dos pontos controvertidos, estabelecendo local e sede da arbitragem, lei aplicável ou se a arbitragem se dará por equidade. Por ele, todo o procedimento arbitral será organizado e acordado acerca dos prazos e datas para cumprimento dos atos.
Instituída, desse modo, a arbitragem (art. 19. da Lei 9.307/1996), o Árbitro ou Tribunal Arbitral deverá decidir, de ofício ou se provocado pelas partes, “as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória”, conforme comando do Parágrafo único, do art. 8º, da Lei, nos termos do Princípio Competência-Competência, já explicitado neste trabalho.
No início do procedimento, após ultrapassadas essas questões preliminares, o Árbitro ou Tribunal Arbitral deverá promover a tentativa de conciliação das partes e, sendo a mesma frutífera, proferir a sentença arbitral respectiva. Caso negativa, será procedida a instrução, podendo ocorrer a produção de provas, respeitados o devido processo legal e, ao final, findando-se todo o procedimento definido pelas partes, será proferida a sentença arbitral decidindo-se a demanda.
No prazo estipulado pelas partes, será proferida a sentença arbitral a qual obedecerá aos parâmetros estabelecidos no art. 26. da Lei de Arbitragem. A sentença arbitral configura um título executivo judicial, considerando-se, aí, finda a arbitragem. Portanto, caso não haja cumprimento voluntário do julgado, o credor poderá promover judicialmente o cumprimento da sentença arbitral, conforme estabelece o art. 515, inciso VII, do Código de Processo Civil.
Em geral, contra a sentença arbitral não há possibilidade de recurso, mas, tão somente, a hipótese prevista no art. 30, da Lei 9.307/1996, de requerimento do interessado, no prazo de 05 dias a partir de sua notificação, para que se corrija erro material na sentença arbitral, para esclarecimento de obscuridade, dúvida ou contradição ou para que o árbitro se pronuncie sobre omissão na decisão.
Poderá, ainda, o interessado, no prazo de 90 dias, demandar acerca da nulidade da sentença arbitral, elencando estritamente uma das hipóteses previstas no art. 32, daquela mesma Lei.
Oportuno, com isso, evidenciar a diferença entre o provimento emanado da jurisdição estatal, que obedece ao duplo grau de jurisdição, que oportuniza, ao derrotado na instância inicial, a possibilidade de ter revisto o decisum pela corte revisora de instância superior, até que se esgotem as possibilidades recursais.
Na jurisdição arbitral, no entanto, é característica a impossibilidade de recurso imediato, sendo possível às partes apenas o requerimento de correção de erro material ou esclarecimento de obscuridade, dúvida, contradição ou omissão, se constantes da decisão, pois não há duplo grau de jurisdição. Tal fator é preponderante para a celeridade conferida à arbitragem, ali contida por expressa liberdade da autonomia privada das partes.
Neste sentido, Nelson Alexandre Paloni:
O fato de as sentenças arbitrais serem irrecorríveis não deve levantar a questão de justiça ou injustiça (que pertence à filosofia do direito), trata-se simplesmente de uma escolha das partes envolvidas e um grande diferencial em relação à jurisdição estatal. No processo arbitral o conceito de justiça deve ser abstraído daquele vigorante no processo judicial. Em sede arbitral, o princípio da autonomia da vontade das partes foi elevado ao seu grau máximo. Com efeito, as partes possuem total liberdade para escolher ou não a instância arbitral quando estiverem presentes direitos patrimoniais disponíveis, cabendo a elas regular o procedimento arbitral.
No mesmo sentido, Fredie Diddier Junior (2008, p. 83) enfatiza que a decisão arbitral produz a coisa julgada material e a imutabilidade se dá após o transcurso do prazo nonagesimal para demandar sua nulidade:
A decisão arbitral fica imutável pela coisa julgada material. Poderá ser invalidada a decisão, mas ultrapassado o prazo nonagesimal, a coisa julgada torna-se soberana. É por conta desta circunstância que se pode afirmar que a arbitragem, no Brasil, não é equivalente jurisdicional: é propriamente jurisdição, exercida por particulares, com autorização do Estado e como consequência do exercício do direito fundamental de auto regramento (autonomia privada).
Ressalta-se que, acaso seja discutida junto ao Poder Judiciário possível nulidade da sentença arbitral, esta somente poderá ser arguida em alguma das hipóteses taxativas previstas no art. 32. da Lei de Arbitragem, não podendo o julgador adentrar nas questões relativas ao mérito, pois aquelas hipóteses se referem a vícios formais do procedimento. É o que ressaltam os Advogados Eduardo Vieira de Almeida e Gustavo Favero Vaughn, em seu artigo ARBITRAGEM E AÇÃO RESCISÓRIA, publicado em 19/09/2018 – Revista Migalhas:
Se - e somente se - a sentença arbitral tiver incorrido em error in procedendo, e não em error in judicando, a ação declaratória de nulidade terá êxito. E, na hipótese de procedência do pedido, será desconstituída a sentença arbitral, com o competente decreto de nulidade ou, sendo o caso, serão as partes submetidas a novo julgamento arbitral.
Outra característica proeminente da sentença arbitral, enfatizada por José Antonio Fichtner, Sergio Nelson Mannheimer e André Luís Monteiro (2019, p.55), é a sua transnacionalidade, sendo, por isso, mais aceita no contexto internacional do que a própria sentença judicial:
Isto significa que, caso a parte que tenha se sagrado vencedora na arbitragem tenha que executar a sentença arbitral em outro país, não há dúvida de que a sentença arbitral possuir maior trânsito internacional e maior facilidade de ser reconhecida e executada em outros países que a sentença judicial, o que traz para a parte vencedora maiores chances reais de satisfação de seu eventual direito de credito e concretiza, assim, o princípio da efetividade do processo e permite a entrega da tutela jurisdicional plena.
Atualmente, com as inovações à Lei de Arbitragem introduzidas pela Lei 13.129/2015, o § 1º do art. 23. passou a constar do diploma legal a possibilidade de prolação de sentenças parciais pelos árbitros. Assim, poderá o árbitro fracionar o mérito, definindo uma parte do litígio e ficando o restante para o julgamento final, como já ocorria na prática. Tal possibilidade é mais vantajosa, conforme enfatiza Rodrigo Garcia da Fonseca:
A utilidade das sentenças parciais é manifesta. Pode haver parte da demanda pronta para resolução e outra parte que ainda depende de provas. Decide-se o que é possível decidir-se desde logo, e foca-se em seguida apenas no que resta a ser provado. É possível que haja um direito pronto a ser reconhecido, já líquido, e outra parcela dependente de liquidação. Resolve-se definitivamente o que está pronto e liquidado, e liquida-se posteriormente o que for necessário. Tudo isso milita em favor da celeridade e da efetividade dos julgamentos, evitando diligências inúteis e agilizando o andamento dos processos.
Por fim, tomando-se como referência os princípios norteadores do devido processo legal, como a garantia do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento, alia-se a confidencialidade, a celeridade e a efetividade do procedimento, além do respeito à autonomia privada. Com isso, é possível vislumbrar que, muito embora o procedimento arbitral se desenvolva fora da proteção da jurisdição do Estado, ele se afigura plenamente equipado e seguro para promover o deslinde das demandas a que se destina.
Tanto é que o Código de Processo Civil, em suas bases principiológicas, incentiva a utilização de outros métodos adequados para a solução dos conflitos, e, além de enfatizar, em seu art. 3º, a garantia do acesso à jurisdição constitucionalmente prevista, inclui, aí, a arbitragem como um daqueles meios:
Art. 3º - Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei. § 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério.
5. Considerações finais
Retornando ao diagnóstico do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, publicado na Revista Justiça em Números, ano 2020, tem-se noção das inúmeras ações iniciadas que, agrupadas às não concluídas, demonstram o acúmulo de demandas existentes e em tramitação na Justiça brasileira.
Pensar na alternativa da arbitragem como panaceia para os males da jurisdição estatal não é viável, no entanto, é muito salutar que se busquem alternativas a esse estado de coisas. A arbitragem, assim como outros métodos adequados de solução de conflitos, aponta caminhos que podem ser trilhados na busca de soluções mais saudáveis e menos morosas no deslinde das contendas.
A expansão dos litígios, cuja solução é viável pela via da arbitragem, para abarcar também casos que envolvam a administração pública, delineia as melhores perspectivas para que se amplie o leque de suas competências.
Por isto, a arbitragem é um campo propício no Brasil, não apenas como alternativa à morosidade do judiciário, mas, também, pela qualidade crescente das Câmaras de Arbitragem e dos árbitros que atuam, cada vez mais qualificados e com respaldo internacional, dada a crescente expansão das arbitragens domésticas e internacionais.
Em recente artigo, publicado em dezembro de 2020, José Miguel Júdice, enumera oito pontos em que a arbitragem no Brasil apresenta um padrão de qualidade de excelência internacional:
a) a cordialidade (que Sérgio Buarque d’Holanda definiu de modo imorredoiro) entre advogados de ambas as partes e os seus efeitos na valorização da arbitragem pelo mercado empresarial além da eficiência que produz; b) o respeito do Judiciário pelo sistema arbitral e a solução legal para as medidas cautelares antes e depois da constituição do tribunal arbitral; c) a muito rara exploração (sobretudo se comparada com outras latitudes) de táticas de guerrilha processual pelos advogados, evitando custos acrescidos e o desfoque do essencial do caso; d) a independência e imparcialidade dos co-árbitros em relação às partes que os nomearam, o que além de prestigiar o instituto arbitral torna muito mais fácil e eficaz o trabalho coletivo do tribunal; e) a opção quase absoluta por sistemas de arbitragem institucional em vez da ad hoc; f) a bifurcação dos processos entre fase de méritos e de quantum; g) a qualidade média muito elevada que existe quanto ao domínio de outros idiomas, cada vez mais essencial até em arbitragens domésticas; h) a existência de apoios logísticos aos processos arbitrais de nível e qualidade internacionais (como, por exemplo, transcrições muito rápidas pelo uso de estenografia, tradução simultânea etc.).
Mesmo naqueles pontos considerados ainda em aperfeiçoamento, este método heterocompositivo, de amplitude mundial, continua em franca expansão no Brasil, despertando interesse crescente desde a graduação, na formação de Advogados voltados ao estudo deste método, até os mais conceituados arbitralistas, e estudiosos da ciência do direito.
Por fim, vale retornar à palestra, proferida pela Ministra do Superior Tribunal de Justiça - STJ, Fátima Nancy Andrighi, em 23 de outubro de 2000, quando da solenidade de instalação do Tribunal Arbitral do Comércio do Estado de São Paulo, em que frisa a importância do apoio aos Tribunais Arbitrais:
Sob este prisma, entendemos que compete ao Poder Judiciário brasileiro, a cada instalação de Tribunais Arbitrais, apoiar as respectivas iniciativas, fornecendo todos os instrumentos necessários para o bom funcionamento. Deve contribuir para que as convenções de arbitragem sejam cumpridas e, mais, para que eventuais incidentes que possam surgir durante o procedimento arbitral, sejam solucionados mediante o cumprimento da Lei nº 9.307/96, sem se olvidar que a Justiça Tradicional, bem como, a Especial são incompatíveis com o procedimento adotado pela Lei de Arbitragem.
Certo é que, no contexto atual, em que cada vez mais o fluxo comercial e social exige uma solução célere e consolidada das pendências diuturnamente surgidas, a liberdade das partes para pactuar seus contratos e, em consequência, a maneira mais adequada de solucionar controvérsias, constitui diferencial positivo, sem, no entanto, deixar de lado a garantia constitucional inabalável do acesso à jurisdição.