A guarda compartilhada do animal de estimação na dissolução da sociedade conjugal

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O presente trabalho retrata a atual situação jurídica dos animais não humanos e a falta de legislação para nortear as disputas judiciais.

Resumo: O presente trabalho retrata a atual situação jurídica dos animais não humanos e a falta de legislação para nortear as disputas judiciais. Trabalharemos especificamente da guarda compartilhada dos animais de estimação em caso de dissolução conjugal dos tutores. As decisões judiciais vêm sendo tomadas a partir de construções doutrinárias e jurisprudenciais, já que o legislativo ainda não aprovou o projeto de lei que regulariza a guarda compartilhada do animal não humano. Vivemos em uma sociedade diversificada, onde existem famílias que optam por ter animais de estimação no lugar de filhos ou até mesmo animais de estimação como filhos. A troca de sentimentos e carinho é recíproca, já que são seres capazes de sentir dor, prazer e emoção, sendo portanto, considerados pela justiça brasileira, seres sencientes, o que é um grande avanço pois durante anos foram tidos como seres semoventes, ou seja, bens/coisas que se movem. Os animais também devem ter seus direitos tutelados, e o ser humano, dotado da fala e da capacidade de raciocínio deve respeitar e proteger aqueles que não têm voz. Dentro dessa lógica, eles também possuem o direito de ter a melhor opção considerando o seu bem-estar durante a dissolução conjugal dos seus tutores. Sobre essa nova realidade que o instituto da guarda compartilhada será analisado pelo presente trabalho.

Palavras-chave: animais, dissolução conjugal, direitos dos animais, guarda compartilhada, animais não humanos.


1. Introdução

A guarda de animais de estimação em razão da dissolução da sociedade conjugal dos tutores é um assunto atual nos debates acadêmicos e jurisprudenciais no Brasil. Contudo, a sociedade brasileira ainda é relutante aos posicionamentos favoráveis à regularização da guarda compartilhada de animais não humanos.

Sabe-se que a relação entre humanos e animais é histórica, seja como ajudantes no processo laboral ou como animais de estimação, mas é importante ressaltar que o tratamento da sociedade contemporânea aos animais não humanos vem sofrendo alterações.

Entretanto, nota-se a obsolência do ordenamento jurídico pátrio nas questões relacionadas aos animais, o que leva a questão a ser debatida a partir de discussões doutrinárias e decisões por equidade.

A Constituição Federal de 1988, no artigo 225 (BRASIL, 1988), trata do direito e dever de preservação do meio ambiente levando em consideração a importância da fauna e da flora para a sociedade, pontuando a sua defesa e preservação, como dever social e não somente do Poder Público. É importante salientar que o texto constitucional citado se refere à amplitude do meio ambiente, não tratando especificamente dos direitos dos animais não humanos.

Em avanço nessa longa caminhada de se reconhecer no âmbito legal a senciência dos animais não humanos, marco importante há no Senado Federal, por meio do Projeto de Lei n° 27, de 2018, que acrescenta a senciência do animal não humano quando trata de sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, tratada na lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998.

Se os animais são passíveis de sentimentos, prazeres, dor e emoção, assim como a espécie humana, por que não seriam dignos de direitos? pelo simples fato de não possuírem a fala verbal? Ou por não, como o posicionamento contrário alega, raciocinar como os humanos?

No Brasil, apenas em 2018, os animais não humanos são reconhecidos como sencientes, como já mencionado. Anterior a isso, eram tidos como seres semoventes, ou seja, seres que se movem, encaixando no Código Civil brasileiro como coisa, bens móveis e propriedades passíveis de serem objetos de transação.

Assim, devido a esta antiga classificação, diante de uma separação litigiosa o animal não humano, era considerado junto à partilha de bens, quando na verdade, levando em consideração o seu reconhecimento de senciência, deveria ser analisado na esfera da guarda compartilhada.

Em uma dissolução de sociedade conjugal que envolve uma criança, o judiciário tem como foco o bem-estar da mesma, buscando minimizar os impactos decorrentes da mudança, com vistas a manter ao máximo a rotina e os cuidados. Por isso, a prioridade da escolha pelo instituto da guarda compartilhada, para que ambos os tutores tenham responsabilidade e convivência com o menor e este com os seus pais.

A ideia da guarda compartilhada de um menor deveria ser também utilizada para a dissolução de sociedade conjugal litigiosa em que se tenha um animal não-humano envolvido na disputa.

Tendo em vista que, atualmente, esses seres são tratados como membros da família, pode-se dizer que, em alguns casos, são considerados filhos. Logo, deveriam ter o direito de vivenciar este momento de separação dos donos, de forma menos impactante, com vista a manutenção de sua rotina e cuidados.

O Direito precisa acompanhar a sociedade, precisa se atualizar constantemente, acompanhando o crescimento e o desenvolvimento da sociedade para assim conseguir exercer o seu papel fundamental, a busca da justiça.

A temática escolhida para este trabalho, foi o resultado de um percurso académico, e a falta de um amparo judicial a este tema, podendo mencionar também o gosto pessoal por parte das autoras. Como descreve Nobre 1999, se considera o envolvimento do pesquisador/analista como substancial na pesquisa, visto que este envolvimento refletirá em seu fazer. Assim, o entusiasmo do escritor é crucial para o trabalho desenvolvido (NOBRE,1999).

Por meio de doutrinas, jurisprudências e trabalhos científicos já realizados, busca-se neste trabalho, apresentar a falta de um amparo jurídico aos animais não humanos e a importância do mesmo para a sociedade, que assim como já mencionado, vem se modificando constantemente.

Para tanto, num primeiro momento será analisada a família no ordenamento jurídico pátrio, bem como a sua dissolução. Adiante, será estudado o direito dos animais, para, ao final, tratar do ponto central do trabalho, que é a guarda dos animais não humanos em razão da dissolução da sociedade conjugal.

Vale ressaltar, que apesar do grande avanço do STF ao considerar os animais não humanos em seres sencientes, o assunto tratado ainda é um grande tabu, possuindo grandes demandas no Poder Judiciário, e sendo elas tomadas de forma discricionária, através de jurisprudências e doutrina. Falta à legislação acompanhar essa necessidade, preenchendo a lacuna que a mudança nas relações contemporânea entre animal não humano e homem criou, para que os litígios envolvendo animais sejam resolvidos de forma justa e segura para todas as partes envolvidas.


2. A família brasileira e suas formas de constituição e dissolução no ordenamento pátrio

O Direito é uma ciência social que tem o dever de acompanhar a evolução da sociedade, que se modifica constantemente, existindo a obrigação de acompanhar este desenvolvimento para que a justiça seja aplicada de forma justa e de acordo com o atual momento da humanidade.

A celeridade das execuções das atividades instrumentais de vida diária na atualidade tornou-se um dos motivos pelo qual o homem passou a optar por adquirir animais de estimação e postergar ou negar a maternidade e paternidade.

Antigamente, o índice de famílias com mais de três filhos era o comum, atualmente as famílias têm em média dois filhos. E verifica-se um aumento exponencial de famílias que adquiriram animais domésticos, mostrando que têm optado em ter um número menor de filhos se comparado com o tempo de nossos avôs, e estão vivendo na companhia de animais que, muitas vezes, preenchem o espaço de carinho filial.

Como mencionado por Bianchin (2019), “peternidade” é a palavra utilizada por ele ao mencionar a criação de animais como forma de substituição dos filhos, justificando que os “pais” e "mães" de pets, em maioria adultos, optam por escolher animais para cuidar e mimá-los ao invés de um bebê humano.

Como já exposto, o Direito precisa acompanhar o desenvolvimento e as necessidades da sociedade, e o conceito de família vem se alterando.

Atualmente o conceito de família é mais complexo e amplo, não sendo apenas a união entre homens e mulheres em uma cerimônia civil e religiosa de casamento.

Verifica-se o aumento exponencial de modelos de família, além da família tida por tradicional, entre homem e mulher, sendo aqueles reconhecidos tanto no âmbito legal, como jurisprudencial, sobretudo pelo Supremo Tribunal Federal.

Sob esse prisma, MELLO (2017), cita em seu livro de Direito de Família, os modelos de família adotados no nosso país, sendo um deles o reconhecimento da união homoafetiva que se dá quando a família que é constituída por duas pessoas do mesmo sexo, família monoparental, quando apenas uma pessoa assume a responsabilidade familiar e anaparental que é o modelo de família constituída por convivência e afetividade, como duas primas morando juntas.

Há outros inúmeros modelos que já obtiveram o seu devido reconhecimento pela doutrina, mas que ainda não foram reconhecidas judicialmente, como por exemplo, a família multiespécie, que é constituída homem e animal de estimação. (SOUZA, 2020)

Rolf Madaleno faz a seguinte observação quanto ao tema:

Embora seja verdade que a Constituição Federal foi revolucionária ao expandir o conceito oficial de família e permitir o reconhecimento de outros modelos de relação familiar que não fossem obrigatoriamente ligados ao casamento, e diante dessa realidade estender à união estável e à família monoparental o mesmo braço protetor destinado ao matrimônio (CF, art. 226), não é possível desconsiderar a pluralidade familiar e de cujo extenso leque o Estatuto da Criança e do Adolescente, com a incorporação dessa filosofia pluralista, reuniu em texto escrito o reconhecimento oficial de diferentes modelos de núcleos familiares. (MADALENO, 2018, p. 44)

No presente trabalho, o foco será nas famílias multiespécies, ou seja, no modelo familiar constituído pelo afeto existente entre o ser humano e o animal de estimação.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2018), o Brasil ocupa o segundo lugar no ranking com o maior número de animais domésticos, perdendo apenas para os Estados Unidos, havendo um animal de estimação para cada três pessoas no território brasileiro.

Os dados acima mencionados reforçam o crescimento exponencial das relações entre homem e animal e em como elas se fazem presente no cenário atual, sendo portanto mais complexas, necessitando, assim, de uma legislação que regulamente tais relações, não estando a mercê somente de jurisprudências e doutrinas.

2.1. Divórcio e a partilha de bens

Em um passado não tão longínquo, quem casava permanecia com um vínculo jurídico pelo resto da vida, o casamento era indissolúvel, seja sob os olhos de Deus, seja pela lei.

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Posteriormente, na perspectiva legal, o Código Civil de 1916, em seus artigos 315 a 328, previa que em razão de adultério, tentativa de morte, sevícia, injúria grave e abandono voluntário do lar conjugal, pelo período de dois anos contínuos, poderia ser requerido o desquite. O desquite interrompia com os deveres conjugais, permitia a partilha dos bens, terminava a sociedade conjugal e, por conseguinte, não mais haveria a convivência sob o mesmo teto. Entretanto, nenhuma das partes poderia contrair novo casamento cercado de proteção jurídica.

A partir da Emenda Constitucional nº 9, de 28 de junho de 1977, foi aprovada a Lei nº 6.515, de 26 de Dezembro de 1977 - Lei do Divórcio, que passou a permitir que as pessoas se casassem por mais uma vez. O desquite passou a ser chamado de separação e se tornou um estágio intermediário até a obtenção do divórcio.

O marco de extrema importância, se deu com o código civil de 2002, onde o mesmo ratifica em seu artigo 1.571 as formas de dissolução conjugal, não havendo mais o desquite como uma forma de estágio, tal como determinado pela lei 6.515/77:

Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:

I - pela morte de um dos cônjuges;

II - pela nulidade ou anulação do casamento;

III - pela separação judicial;

IV - pelo divórcio. (Código Civil, 2002)

Devido às novas formas de constituição familiar, os incisos do artigo 1.571 não são mais os únicos meios para a dissolução conjugal. Isto porque não é toda constituição familiar que necessita de uma casamento formal.

Cite-se, como exemplo, a união estável, que se constitui tacitamente pela observância de relação duradoura e sólida.

A separação na sociedade moderna não é mais um tabu ou um processo burocrático, na atualidade pode-se também considerar separação as partes que não se relacionam mais de forma conjugal, chamada de separação de corpos ou separação-falência, como esclarece Alexandre Cortez Fernandes: “Outro aspecto era a separação-falência, quando um dos cônjuges comprovasse a ruptura da vida em comum, há mais de um ano, com a impossibilidade de sua reconstituição”. (CORTEZ, 2015 p. 206)

A separação falência ou ruptura é cabível quando um dos cônjuges provar ruptura da vida em comum há mais de um ano e a impossibilidade de sua reconstituição (art. 1.572, § 1º, CC). Ou seja, a ruptura de um vínculo conjugal, também gera a separação, produzindo, portanto, todos os efeitos na área cível que o divórcio judicial produziria, como por exemplo, a partilha de bens.

A partilha de bens é o momento da separação conjugal onde os bens adquiridos pelos cônjuges no decorrer do vínculo matrimonial são repartidos de forma igualitária, de acordo com o regime padrão utilizado no país, e é nesse momento que se observa a falha do Poder Judiciário em relação à situação do animal de estimação, sendo este atualmente tratado pela legislação como coisa, bens móveis e propriedades passíveis de serem objetos de transação, apesar do reconhecimento de sua senciência.

Apesar do recente reconhecimento do Superior Tribunal Federal da senciência do animal não humano, estes ainda, como já mencionado, não são considerados seres de direito pelo ordenamento jurídico, restando para tanto o título de coisa, motivo pelo qual no momento da partilha de bens surgem lacunas no litígio conjugal referente a situação do animal de estimação, dessa forma são vários os tipos de posicionamento dos magistrados no caso concreto.

Seguindo a lógica da senciência, o animal de estimação tem carinho e apego pelo seu tutor, e no momento delicado de uma separação ele também é capaz de sentir a ruptura, não havendo porque o diferenciar de uma criança, que priorizam o recebimento de todo cuidado e atenção no momento do divórcio de seus pais, suprindo todas as suas necessidades e dando apoio psicológico. Assim também, deveria ser com o animal não humano, ele é um ser dependente dos cuidados do seu tutor, seria antropocentrismo colocar uma diferenciação entre essas duas espécies, e é por isso que pontua-se a necessidade de renovação no ordenamento jurídico, incluindo os animais como seres de direitos e capaz de fazer parte de um processo de guarda compartilhada.


3. Direito dos animais no Brasil

A proteção aos animais no Brasil precisa de reforços.

A população está cada vez mais ciente de que a causa animal precisa de segurança jurídica e anseia por leis que acompanhem a nova realidade da sociedade e que definitivamente protejam os animais e garantam a sua liberdade e bem estar.

Ao longo da última década variados movimentos contra maus-tratos surgiram, incentivados por Ongs e amantes da natureza, mas precisamos de mais, precisamos de leis positivadas inseridas no nosso ordenamento pátrio.

Com as novas possibilidades de divulgação, gravações, compartilhamentos de casos que a internet e as redes sociais trouxeram, a população se tornou mais consciente sobre situações de maus tratos, abusos, utilização de animais para testes, para recreação desumana, fazendo com que indagações sobre os direitos dos animais na sociedade ganhassem força.

Afinal, por quê os animais não merecem o mesmo respeito e dignidade de vida que os seres humanos? O que nos torna mais importantes ao ponto de dispormos dos animais da forma que fizemos durante tanto tempo?

O artigo 225, § 1°, inciso VII da Constituição Federal de 1988, diz:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1o – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

(...)

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade. (Brasil, 1988)

Apesar da Constituição Federal não definir que os animais sejam possuidores de direitos fundamentais, ela garante a sua proteção, tendo assim, tutela jurídica e mostrando que cada vez mais busca-se preservar os seres que vivem em nosso planeta e o equilíbrio ambiental.

A doutrina, ao tratar da tutela ambiental, sempre costuma apresentá-la de forma ampla, de acordo com ANTUNE:

“Após a entrada em vigência da Carta de 1988, não se pode mais pensar em tutela ambiental restrita a um único bem. Assim é porque o bem jurídico ambiente é complexo. O meio ambiente é uma totalidade e só assim pode ser compreendido e estudado”. (ANTUNE apud PORTELA, 2013, p. 60)

Quando falamos sobre Direito dos animais desejamos que os mesmos, assim como nós, ou até mais, por não serem auto tuteláveis, sejam considerados e amparados pelo Direito na qualidade de sujeitos. Eles não podem autonomamente perseguir a efetivação dos seus direitos. Conforme complementa AGUIAR:

É importante frisar, que, ao se falar na efetivação dos direitos dos animais não significa deixar de lado o direito dos homens, mas é também, e porque não, a maneira de exercermos um de nossos direitos mais basilares que é o de fazer justiça. (Aguiar, 2018, p.25)

Outro ponto importante da afirmação da tutela jurídica sobre os animais e o meio ambiente, foi o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal através do voto do Ministro Celso de Mello em que ele afirma que é dever do Estado e da coletividade preservá-lo. Tal pronunciamento aconteceu durante ADI nº 3540 sobre a alteração no Código Florestal. (STF, 2005)

Para corroborar a análise do tema, importante citar o estudo sobre a consciência animal que foi apresentado em 7 de julho de 2012, em Cambridge, Reino Unido, conhecido como Declaração de Cambridge, escrito por Philip Low e editado por Jaak Panksepp, Diana Reiss, David Edelman, Bruno Van Swinderen, Philip Low e Christof Koch, que diz:

A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente com a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos.(CAMBRIDGE, 2012)

Desta forma, foi apresentado ao cenário internacional um novo patamar que demonstrou cientificamente a senciência dos animais. Importante destacar que a senciência é a capacidade dos seres de sentir sensações e sentimentos de forma consciente. Em outras palavras: é a capacidade de ter percepções conscientes do que lhe acontece e do que o rodeia (FRANCIONE, G.L., 2000).

Muito didaticamente, Maria Clara Sotto-Mayor e Ana Teresa Ribeiro, em Comentário ao Código Civil, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014:

No direito comparado, os movimentos de defesa dos animais tiveram repercussões no estatuto dos animais nos códigos civis, o que levou a que deixassem de integrar a noção de coisa e tivessem passado a ser vistos como criaturas com sensibilidade, como sucedeu em 1988, na Austria, em 1990, na Alemanha, e em 2002, na Suíça. (…) (Mayor, 2014, p. 454)

Desta forma, surgiu um grande avanço no olhar sobre a importância da ética no tratamento dos animais, que se respalda cientificamente e encontra-se positivado através das legislações de todo o mundo, sendo necessária uma análise séria da proteção e necessidade de um novo olhar para os direitos dos animais.

Posição clara sobre a proteção aos animais também foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal em relação à “farra do boi” que acontecia no Estado de Santa Catarina (RE 153.531/SC).

O STF, em ADI 4.983, entendeu que esta prática submetia os animais à crueldade e, por isso, proibiu a festa. Apesar de alegado que a “farra do boi” seria de natureza cultural, garantida pela Constituição Federal em seu artigo 215, os ministros do STF entenderam que mesmo sendo uma prática comum e considerada cultural em Santa Catarina, havia ofensa ao artigo 225, inciso VII. (STF, 2016)

No mesmo sentido, o STF já declarou a inconstitucionalidade de normas estaduais que regulamentavam a chamada “briga de galo”, entendendo que essa prática violaria o dever estatal previsto no artigo 225, da Constituição Federal.

Na ADI 1.856, que questionou a exposição e competições entre aves como prática de crueldade contra a fauna. A briga de galos foi considerada prática criminosa tipificada na legislação ambiental, configurando conduta atentatória à Constituição da República, que veda a submissão de animais a atos de crueldade, cuja natureza perversa, à semelhança da “farra do boi”, não permite sejam eles qualificados como inocente manifestação cultural, de caráter meramente folclórico. (STF, 2011)

Seguindo a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, que em seu artigo 2° destaca que cada animal tem direito ao respeito, complementa AGUIAR:

O homem, enquanto espécie animal, não pode atribuir-se o direito de exterminar outros animais ou explorá-los, violando este direito. Ele tem o dever de colocar sua consciência a serviço de outros animais. Cada animal tem o direito à consideração e à proteção do homem; e principalmente, o artigo 14 dispõe que as associações de proteção e de salvaguarda dos animais devem ter uma representação junto ao governo. Os direitos animais devem ser defendidos por leis, como os direitos humanos. (AGUIAR, 2018, p. 09)

Em 29 de setembro de 2020 foi sancionada pelo Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, a Lei 14.064, aumentando da lei anterior as punições para crimes de maus-tratos contra os animais, quando se tratar de cão ou gato. Um avanço considerável, um passo a mais na luta travada pela dignidade dos mesmos.

Os animais estão cada vez mais sendo considerados “membros da família”, em especial os cães e os gatos pela capacidade de demonstrar afeto e fazer companhia, se tornando fortemente presentes no cotidiano das pessoas. Pesquisa realizada em 2013 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou que o número de cães nos lares brasileiros superou o de bebês humanos: de cada 100 famílias no país, 44 criam cachorros, enquanto 36 possuem crianças. E a previsão é que esse número continue a crescer; pontua-se ainda que em países como os Estados Unidos e Japão a realidade se repete.

Em razão da relevância que essa convivência passou a ter, do ponto de vista social, comportamental e para a saúde emocional de um número cada vez maior de pessoas, o Direito já evoluiu para a reflexão sobre as chamadas famílias multiespécies, como já dito outrora, formadas pelo ser humano e seus animais de estimação, sendo estes considerados como membros da família ou até mesmo como filhos.

Importante mencionar também as três principais correntes do direito dos animais, afinal, quando falamos em direitos para os animais não humanos, muitos pensam que é o fim, mas assim como em outras matérias do direito, temos a corrente mais radical, a mediana e uma mais leve, ficando a critério do judiciário qual a mais benéfica e justa para cada caso concreto.

A primeira corrente seria a corrente abolicionista, a mais radical de todas, que é totalmente contra qualquer tipo de exploração animal, o nome mesmo sugere, abolir qualquer ato de exploração ou propriedade animal, não dando lacuna para a reforma bem-estarista.

A segunda corrente, chamada bem estarismo, propõe o bem estar do animal não humano, o animal poderá ser explorado desde que seja observado o seu devido tratamento e que sejam supridos seus direitos básicos, como alimentação e o repouso.

Para isso necessita-se de uma regularização para que a exploração realizada pelo ser humano seja feita de forma correta e respeitando a dignidade da espécie animal.

A Declaração Universal dos Direitos Dos Animais cita em seu artigo 7º a forma de tratamento dos animais não humanos quando explorados para trabalho:

Artigo 7º: Cada animal que trabalha tem o direito a uma razoável limitação do tempo e intensidade do trabalho, e a uma alimentação adequada e ao repouso. (D.U.D.A, 1978)

O Brasil está entre os países que adotaram a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, conhecida como (D.U.D.A), que não se trata de uma regulamentação mas sim de preceitos éticos e filosóficos a respeito dos direitos dos animais.

Por fim, temos a corrente utilitarista, que prioriza o bem estar da maioria, referindo-se ao ser humano, e esta corrente diz que a exploração animal para ser considerada justa deve ter o benefício e o prazer em maior escala que a dor e o sofrimento causado.

Mencionadas de forma sucinta as três principais correntes do direito dos animais, vale ressaltar que o ser humano se encontra de forma estável e muita vezes com receio ao se tratar de melhorias para o direito do animal, por achar que é o único detentor desses direitos, se tratando de um narcisismo jurídico inconcebível, quando deveríamos ser seres biocêntricos, estendendo os direitos para todas as espécimes.

Sobre o tema, Caroline Amorim, em seu livro “Por uma releitura da responsabilidade civil em prol dos animais não humanos”, diz:

O modelo do paradigma atual é o biocentrismo, originado a partir da ética da vida, na qual todo ser vivo está incluído. A vida é considerada o bem maior, “dentro” da qual está o ser humano, não como espécime superior, mas como parte. (AMORIM, 2018, p. 89)

Este modelo como mencionado é originado pelo princípio da ética na vida, ou seja, um modelo de vida saudável, harmônico, do qual todas as espécies são incluídas, não havendo superioridade, mas sim auxílio aos que necessitam.

O ser humano tem o privilégio do raciocínio, podendo expressar o que sente de várias formas, sendo uma delas a fala, então por que não dar voz aos necessitados?

É preciso reconhecer essa lacuna jurídica e mais ainda a necessidade do preenchimento dela para a sociedade, é preciso empatia e inclusão, entendermos que o conceito de antropocentrismo não condiz com a sociedade atual, usando mais uma vez da referida fala da autora AMORIM:

O antropocentrismo exacerbado não mais condizia com a realidade, e, em função da constatação de que os recursos naturais não mais eram fontes inesgotáveis, o homem passou a se preocupar com o meio ambiente e tudo o mais que dele desprende.(Amorim, 2018, p.80)

Reconhecendo a necessidade de um meio ambiente equilibrado e os benefícios que nos traz, devemos mais do que depressa valorizá-lo, e o grande passo para isso seria a regulamentação no nosso ordenamento jurídico.

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