O criminoso informático pode cometer mais de uma conduta lesiva ao mesmo tempo, estando em diversos lugares simultaneamente, e conta com a vantagem de haver poucos profissionais de segurança pública capacitados para investigar sua ação, analisar as provas e os indícios. Sem contar a vantagem de o agente não fazer qualquer esforço e agir de forma transnacional com facilidade ímpar. Assim, a consciência digital, independentemente da idade, é o caminho mais seguro para o bom uso da internet, sujeita às mesmas regras de ética, educação e respeito ao próximo. (Luciana Machado)
RESUMO. O presente texto tem por escopo primordial analisar os riscos sociais dos crimes cibernéticos e a insuficiência da legislação brasileira. Riscos por conta do vazio normativo, e das respostas brandas nos casos de detecção das graves violações. Visa, ainda, a chamar a atenção da sociedade brasileira acerca da premente necessidade de o Brasil se filiar à Convenção de Budapeste para o fortalecimento transnacional no combate aos crimes digitais.
Palavras-Chaves. Direito penal; crime virtual; vazio normativo; tipicidade; taxatividade; necessidade.
A sociedade tem passado por profundas transformações nas últimas décadas. Inúmeros fatores têm contribuído para tanto. Mas, sem dúvida nenhuma, o que mais tem influenciado no comportamento humano são as TICs.
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) são o conjunto de ferramentas relacionadas à transmissão, processamento e armazenamento digitalizado de informações.
As formas de se comunicar, de expor os pensamentos, de trabalhar, de se relacionar, inclusive afetivamente, de compra e venda de produtos, mudaram-se radicalmente com o advento das citadas TICs.
E, inevitavelmente, surgiram novos crimes e novas formas de cometimento de crimes. No século XIX, Emile Durkheim já observou que onde há sociedade há crime. Constata Durkheim (1999) que, em qualquer sociedade, seja de qualquer tipo e de qualquer época, haverá crime. O delito faz parte da vida coletiva, segundo o renomado sociólogo.
Por conseguinte, se a vida coletiva transformou-se radicalmente, os crimes também acompanharam essa mudança. Nesse contexto é que surge o conceito de cibercriminalidade, ou, de forma ampla, crimes cometidos através das tecnologias de informação e comunicação, sendo as tecnologias meio ou objeto do crime.
A transformação da sociedade, caracterizada pela sociedade líquida e de risco, conforme teorizações de Zigmunt Bauman (BAUMAN, Z, 2001) e Ulrich Beck (BECK, U. 1998 e 2018), transformou as relações sociais, de modo que grande parte das ações humanas se realizam no ciberespaço. Se é cediço que “onde há sociedade, há crime”, temos que reconhecer que no ciberespaço há ainda mais. E crescem vertiginosamente no Brasil e no mundo.
Buscando dados em sites especializados, Barrió Andrés apresenta dados que demonstram que os crimes cibernéticos têm representado 0,8 por cento do PIB mundial (BARRIO ANDRÉS, M. 2008, p 28)
Segundo Damásio e José Milagre, o Brasil é o quarto maior alvo de crackers em ataques de pishing do mundo, figurando entre os cinco países que mais tiveram empresas hackeadas, com 38 milhões de usuários lesados (JESUS, D. MILAGRE, J. A. 2006, p 27).
Durante a pandemia causada pelo novo coronavírus, os golpes financeiros cometidos através da internet cresceram assustadoramente.
Os criminosos passaram a se aproveitar do fato das pessoas estarem mais em casa, usando a internet, para ler notícias, procurar informações e para comprarem mais pela internet para aplicarem mais golpes.
No período entre 20 de março e 18 de maio, a busca de informações pessoais e bancárias de brasileiros na chamada dark web cresceu 108%, segundo pesquisa feita pela Refinaria de Dados, empresa especializada na coleta e análise de informações digitais. O número de buscas diárias alcançou 19,2 milhões ante 9 milhões no período pré-covid. O sócio da companhia, Gregório Gomes, responsável pelo trabalho, explica que normalmente quem rouba os dados pessoais das pessoas não é quem aplica o golpe. Eles conseguem um banco de dados e vendem para criminosos na dark web. "São sempre dois atores diferentes, o que dificulta a ação da polícia" (Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2020/06/epoca-negocios-golpes-virtuais-disparam-com-covid-19.html. Acesso em 23.07.2020)
Importante compreendermos em que cenário social esse fenômeno se insere. A cibercriminalidade está intimamente ligada à nova “sociedade de informação” ou à chamada modernidade líquida, cunhada por Zigmunt Bauman (2001), ou à chamada sociedade de risco, teorizada por Ulrich Bech (2018).
Criador e criatura se entrelaçam: os crimes cibernéticos são fruto da sociedade de informação, e a sociedade da informação propiciou a criação de novos bens jurídicos, quais sejam, os próprios dados, ambientes e espaços virtuais a serem atacados.
A idéia de sociedade de informação surgiu como termo/expressão para substituir um conceito complexo de “sociedade pós industrial” e como forma de transmitir o conteúdo específico do “novo paradigma técnico econômico”. Conforme explica Werthein (2000, p. 71-77), citado por Oliveira e Duarte (2014, 141-154) essa expressão foi cunhada por cientistas sociais para referir-se às transformações técnicas, organizacionais e administrativas; que têm como pontos fortes não mais os insumos de energia – como na sociedade industrial – mas os insumos de informação propiciados pelos avanços tecnológicos na microletrônica e telecomunicações. Esse mundo globalizado foi classificado pelo sociólogo Zigmunt Bauman como “modernidade líquida”.
No Brasil, o combate ao cibercrime se dá quase que na totalidade através da utilização crimes cibernéticos impróprios, na medida em que se utiliza de tipificações penais clássicas para punir condutas cometidas através das TICs. Dessa maneira, para ofensas à honra nas redes sociais ou serviços de mensagem, utiliza-se os crimes de calúnia, difamação ou injúria (art. 138, art. 139 e art. 140 do Código Penal Brasileiro). Para intimidações contra usuários da internet, utiliza-se o crime de ameaça (art. 147 do Código Penal Brasileiro). Na invasão de contas bancárias com subtração de valores, utiliza-se o crime de furto (art. 155 do Código Penal Brasileiro). Para golpes patrimoniais pela internet, crime de estelionato (art. 171 do Código Penal Brasileiro). Na seara da dignidade sexual, utiliza-se o novo crime do art. 218-C do Código Penal Brasileiro e para pornografia infantil há o crime do art. 241-A da Lei 8.069/1990, do chamado Estatuto da Criança e do Adolescente.
Machado, comentando acerca dos crimes cibernéticos, faz relevante alerta sobre a potência da popularização das máquinas, observando que a sociedade da informação teve sua potência elevada com a popularização das máquinas e suas conexões, levando a boa parte da população o acesso a um cotidiano com características próprias e com arquivos intangíveis como tema de sua existência e sustentabilidade. A rede mundial de computadores trouxe a velocidade aos relacionamentos (comerciais, negociais, humanos, internacionais etc) e dissolveu fronteiras físicas, permitindo que o usuário-internauta experimentasse liberdade em grau antes inimaginável.
Nesse sentido, aponta também as principais práticas criminosas na atualidade no mundo digital.
São vários tipos de infrações cometidas pela internet, entre elas estão: falsificação de dados, estelionatos eletrônicos, pornografia infantil (produção, oferta, procura, transmissão e posse de fotografias ou imagens realistas de menores ou de pessoas que aparecem como menores, em comportamento sexual explícito), racismo e xenofobia (difusão de imagens, idéias ou teorias que preconizem ou incentivem o ódio, a discriminação ou a violência contra uma pessoa ou contra um grupo de pessoas, em razão da raça, religião, cor, ascendência, origem nacional ou étnica, injúria e ameaças qualificadas pela motivação racista ou xenófoba; negação, minimização grosseira, aprovação ou justificação do genocídio ou outros crimes contra a humanidade).[1]
Somente em 2012, após fotos íntimas de uma atriz vazarem nas redes sociais, através da invasão de seu dispositivo telefônico, que o legislador percebeu que os crimes previstos no Código Penal são insuficientes para combater essa nova modalidade de crimes.
Elaboraram, então, a chamada “lei dos crimes cibernéticos”, que ficou conhecida como “Lei Carolina Dieckman”. A referida lei nº 12.737/12 (BRASIL, 2012) foi extremamente tímida, perdendo uma grande oportunidade de reformular (ou criar) um sistema de combate aos crimes cibernéticos no Brasil. Acrescentou-se apenas 2 artigos ao Código Penal e alterou-se outros 2, não alcançando assim todas as espécies de cibercrimes próprios e impróprios que deveria.
Destarte, essa lei de atriz global, tão somente criou o artigo 154-A no Código Penal, instituindo o delito de invasão de dispositivo informático, consistente em invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita, com peba de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
A ação penal para essa modalidade de crime é de ação pública condicional a representação, salvo se o crime é cometido contra a administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios ou contra empresas concessionárias de serviços públicos.
Percebe-se que o legislador criou toda uma expectativa em torno dessa tipificação, mas, em contrapartida possibilitou ao delinquente a fruição dos benefícios da Lei nº 9.099/95, para uma conduta de assaz lesividade.
Nesse cenário, o direito penal deve acompanhar essa evolução e tratar dessa nova forma de criminalidade tanto de forma doutrinária quanto de forma legal. E o que propomos é a necessidade de uma efetiva proteção a esses bens jurídicos no Brasil, alguns novos e outros não, mas, nos dois casos, cometidos por meio telemático. Não estamos a falar de modo algum em inflação legislativa ou direito penal simbólico. Claramente, a sociedade, e suas relações, se transformaram rapidamente nas últimas décadas e o Direito penal brasileiro não protege os bens jurídicos mais caros da sociedade (vida, dignidade sexual, privacidade, patrimônio, integridade dos menores de idade) de forma eficiente.
Se a hipotética lei especial não for criada, tal qual existe no ordenamento jurídico chileno, necessitamos pelo menos da criação de mais tipos legais, ainda que de forma esparsa, mas, suficientes para a proteção desses bens jurídicos lesionados através do ciberespaço, tal como ocorre no ordenamento jurídico espanhol.
Somado a essas medidas internas, voltadas para a construção normativa, não se pode fechar os olhos para a transnacionalidade da criminalidade de rede, a exigir adoção de medidas de cooperação entre as Nações a fim de fortalecer o enfrentamento a essa modalidade delituosa de coloração cosmopolita. Nesse sentido, Botelho descreve preocupação e chama a atenção para essa urgente necessidade:
O importante mesmo é que o Brasil se filie urgentemente à Convenção de Budapeste, mandamento internacional de apoio ao combate e repressão aos crimes virtuais no ambiente globalizado, considerando que as redes de computadores e a Internet são tão impactantes na vida social hodierna que promovem grandes transformações tecnológicas, trazendo consigo benefícios e mazelas.
A tipificação dos crimes cometidos no ciberespaço é necessária a imprescindível para que os poderes públicos possam acompanhar a dinâmica de um mundo globalizado.
Como se afirmar, o ingresso do Brasil à Convenção de Budapeste (Convenção sobre o Cibercrime, 2001), trarão significados importantes ao tornar o país membro integrante da supracitada Convenção, pois o Brasil adentraria num Regime Internacional de combate ao cibercrime, facilitando, assim, uma cooperação maior com outros países que sofrem das mesmas práticas ilícitas, mas que possuem leis diferentes.[2]
Tais medidas são necessárias, no âmbito interno e internacional, com a urgente criação de mecanismos legais eficientes para a eficaz repressão a essa moderna ameaça de lesão, pois, no Brasil, a utilização de crimes cibernéticos impróprios nem sempre é suficiente e adequado para repressão dos crimes cibernéticos e proteção da vítima.
Isso tudo acontecendo na sociedade de modernidade líquida, abstrata, sofrendo mutação com extrema rapidez: são agressões virtuais o tempo todo, um verdadeiro massacre da população nas redes sociais, sanguessugas de oportunismo, peçonhas, ódio, intolerância, fraudes, canalhices, lesões aviltantes, racismo, xenofobia, pornografia infantil, etc. Não se pode ficar inerte na praça, simplesmente dando milho aos pombos. É preciso também conscientizar os nossos legisladores de que o sistema de persecução penal necessita, urgentemente, de novos comandos normativos para proteger a sociedade dinâmica e atualizar o sistema de persecução penal. Talvez a codificação, tal como se pretende fazer no Brasil, em relação aos crimes digitais, não exerça a mesma segurança jurídica que tanto se espera. Enquanto não se alcança a fórmula ideal, o criminoso evolui num piscar de olhos. O arcabouço legal deve ser atualizado para prestar a verdadeira e tão esperada tutela jurídica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DURKHEIM, Émily. As regras do método sociológico, trad. Paulo Neves. Ed. Martins Fontes, RJ: 1999.
BARRIO ANDRÉS, Moisés. Delitos 2.0, aspectos penales, processales y de seguridad de los ciberdelitos. Madri: Wolters Kluwer España, 2018, p. 28, CITANDO Internet Security Threat Report de Symantec, disponível em https://www.symantec.com/security-center/threat-report.
BAUMAN. Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BECK, Ulrick. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Editorial Planeta, 1998.
BECK, Ulrick. A metamorfose do mundo: Novos conceitos para uma nova realidade. 1 ed .Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
____________. Lei 12.737 de 30 de novembro de 2012. Lei Carolina Dieckman. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12737.htm> Acesso em 28.07.2020
BOTELHO, Jeferson. Estupro Virtual. Sextorsão, ativismo judicial e cabotinismo midiático. Disponível em https://jus.com.br/artigos/59910/estupro-virtual-sextorsao-ativismo-judicial-e-cabotinismo-midiatico. Acesso em 01 de maio de 2021, às 10h45min
BRASIL. Código Penal Brasileiro. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em 01 de maio de 2021, ás 11h16min.
JESUS, Damásio. MILAGRE, José Antônio. Manual de Crimes Informáticos. São Paulo: Saraiva, 2016.
MACHADO, Lucyana. Crimes Cibernéticos. Disponível em https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8772/Crimes-ciberneticos. Acesso em 01 de maio de 2021, às 16h22min.
OLIVEIRA, Letícia Cirqueira. DUARTE, Sofia Costa e Silva. Adoecimentos cibernéticos e outros desajustamentos humanos. In CHAGAS-FERREIRA, Jane Farias (org). Cibercultura e virtualidade: desafios para o desenvolvimento humano. Curitiba: Editora Appris: 2014.
WERTHEIN, J. A sociedade da informação e seus desafios. Ciência da informação, p. 71-77, mai/ago.2000
[1] Machado, Lucyana. Crimes Cibernéticos. Disponível em https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8772/Crimes-ciberneticos. Acesso em 01 de maio de 2021, às 16h22min.
[2] BOTELHO, Jeferson. Estupro Virtual. Sextorsão, ativismo judicial e cabotinismo midiático. Disponível em https://jus.com.br/artigos/59910/estupro-virtual-sextorsao-ativismo-judicial-e-cabotinismo-midiatico. Acesso em 01 de maio de 2021, às 10h45min.