Neste breve estudo, abordaremos duas questões relativas ao precatório judicial: a insubmissão dos créditos de natureza alimentícios à ordem cronológica referida no texto constitucional e o sentido da vedação da expedição da precatórios complementares ou suplementares do pagamento realizado, bem como do fracionamento de valores dos créditos resultantes de condenação judicial.
O art. 100 da Constituição Federal, em consonância com os princípios insertos no seu art. 37, que regem a Administração Pública, instituiu a observância rigorosa da ordem cronológica de precatórios judiciais para o seu pagamento, proibindo, ainda, a designação de pessoas e de casos nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais.
Essas regras prestigiam o princípio da moralidade administrativa, que impede o favorecimento de pessoas amigas do governante ou perseguição de seus inimigos.
Entretanto, o caput do art. 100 abriu uma exceção: independem de inserção na ordem cronológica os créditos de natureza alimentícia.
Crédito de natureza alimentícia, em seu sentido amplo, abarca toda prestação em dinheiro ou in natura relativa às despesas ordinárias a que tem direito o alimentando: habitação, transporte, vestuário, sustento, saúde, educação, instrução e lazer. Não se limita a salários e vencimentos.
Dessa forma, não se restringem aos elencados no § 1º do art. 100, que tem natureza meramente exemplificativa.
Outrossim, já pacificou a jurisprudência em torno da correta interpretação do caput do art. 100, no sentido de que créditos de natureza alimentícia devem compor a ‘ordem cronológica específica’, ou seja, formação de uma ‘fila’ só para atender créditos dessa natureza.
Na prática, esses créditos, que gozam de privilégios, por não terem sido atingidos por duas moratórias constitucionais (art. 33 do ADCT e EC nº 30/2000), vêm sendo preteridos em seus pagamentos.
Como o não pagamento das parcelas de precatórios comuns, sob efeito da moratória, confere poder liberatório de pagamento de tributos de entidade política devedora, sem prejuízo do pedido de seqüestro, os governantes têm dado preferência no pagamento dessas parcelas, praticamente, congelando a fila de precatórios alimentícios.
Uma interpretação sistemática dos textos constitucionais, apesar de inseridos os precatórios em filas distintas, a paralisação da fila de precatórios alimentares, enquanto avança no pagamento de parcelas anuais dos precatórios comuns, conduz à quebra da ordem cronológica, isto é, desrespeito à classificação privilegiada dos primeiros, a legitimar o pedido de seqüestro.
A jurisprudência da Corte Suprema prestigia esse entendimento à medida que tem mantido o seqüestro decretado por Tribunais Estaduais para garantir o pagamento de credor por precatório alimentar, vítima de doença grave (RCL nº 3034 – P 13, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 21-9-2006; RCL º 4 – SP, Rel. Min. Sepulveda Pertence, DJ de 22-9-2006).
Na RCL 4632-SP, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo havia decretado o seqüestro de R$ 46.278,29, inserido no orçamento de 2007, para antecipar o seu pagamento em vista da doença grave do credor alimentício.
Ora, se situação de excepcionalidade, fundada na doença grave do credor por precatório alimentar, permite até a antecipação do pagamento previsto para o final do ano vindouro, não nos parece destoante do bom direito a tese do seqüestro de valores inseridos em precatórios alimentares, quando aos de natureza não alimentar for dada preferência nos pagamentos, como vêm ocorrendo, afrontando a situação de excepcionalidade conferida àqueles precatórios que, na diccão do art. 100 caput da CF, até independem de inserção na ordem cronológica.
Dessa forma, o decidido na Adin 1662, segundo o qual ‘a única modalidade de seqüestro de precatório alimentar prevista na Constituição Federal (CF) é a fundada em preterimento do direito de preferência’, deve ser entendido em confronto com as duas filas de precatórios, a de precatórios alimentar e a de precatórios comuns. Se estes últimos avançam e os primeiros não avançam, tem-se por quebrada a ordem cronológica.
Do contrário, bastaria o congelamento da fila de precatórios alimentares até pagamento de todos os precatórios comuns, sem se sujeitar o ente político devedor de verbas alimentares ao seqüestro, transformando o privilégio instituído pelo legislador constituinte em um verdadeiro ‘tiro no pé’.
Quanto à obrigações de pequeno valor, definidas em lei, o § 3º do art. 100 da CF permite a requisição direta pelo Judiciário (RPV), sem necessidade de precatório.
Na esfera federal, a Resolução nº 439, de 30-5-2005, do Conselho de Justiça Federal, com base no art. 17, § 1º da Lei nº 10.259, de 12-6-2001 (institui os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal), regulamenta os procedimentos atinentes a Requisições de Pagamentos de Pequeno Valor, assim entendido o valor igual ou inferior a 60 (sessenta) salários-mínimos. Com base na EC nº 37/2002 (art. 87 do ADCT) considera como sendo de pequeno valor, até que se dê a publicação das respectivas leis definidoras pelos entes da Federação, a importância igual ou inferior a 40 (quarenta) salários-mínimos em relação aos Estados e, igual ou inferior a 30 (trinta) salários-mínimos em relação aos Municípios.
O § 4º do art. 100, acrescido pela EC nº 37/2002, veda expedição de precatório complementar ou suplementar de valor pago, bem como o fracionamento, repartição ou quebra do valor da execução para o efeito de expedição do precatório da parte excedente à importância equivalente à obrigação de pequeno valor.
Quanto ao precatório complementar ou suplementar, a jurisprudência da Corte Suprema já pacificou a matéria, circunscrevendo-o às hipóteses de erros materiais ou aritméticos ou de inexatidões dos cálculos dos precatórios (Adin nº 1098-1/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 25-10-1996).
Perdura, entretanto, controvérsia em relação ao fracionamento de valores. Grassa confusão entre fracionamento e individualização do crédito de cada litisconsorte ativo, comum nas ações impetradas por servidores públicos com vistas ao reajuste de vencimentos.
Se existem dez credores no mesmo processo, nada impede a individualização do crédito de cada um para efeito de buscar o direito à requisição de pagamento de pequeno valor (60 salários-mínimos na esfera da União; 40 salários-mínimos na esfera dos Estados; e 30 salários-mínimos na esfera dos Municípios).
Foi o que restou decidido no AI nº 70015445414, Porto Alegre, Rel. Des. Francisco José Moesch, que manteve em separado a verba honorária resultante da sucumbência, inferior a 40 salários-mínimos, pertencente ao advogado, nos termos dos arts. 23 e 24, § 1º da Lei nº 8.906/94, amparado em inúmeros precedentes do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Outrossim, não se deve confundir hipótese de fracionamento do valor para efeito de requisição de pequeno valor, vedado pelo § 4º do art. 100 da CF, com a expedição de precatório relativo à parte incontroversa, coberta pela coisa julgada. E isso, porque nos termos do § 2º do art. 739 do CPC ‘quando embargos forem parciais, a execução prosseguirá quanto à parte não embargada’.
Por óbvio, se na execução contra a Fazenda Pública, esta limitar-se a embargar apenas parte do valor sob execução, a outra parte não embargada deverá prosseguir, efetuando-se a requisição por intermédio do Presidente do Tribunal que proferiu a decisão exeqüenda, nos exatos termos do art. 730, I do CPC.
Nesse sentido já pacificou a Jurisprudência do STF (RE 458.110-MG, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 29-9-2006; RE 484.770-RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 1-9-2006).