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Descriminalização e legalização da interrupção voluntária da gravidez

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4. ASPECTOS PENAIS DO ABORTO

No Ordenamento Jurídico Brasileiro a penalização do aborto representa uma proteção da vida do nascituro, encontrando-se no art. 124, do Código Penal com a seguinte redação:

Art. 124. - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena - detenção, de 1. (um) a 3. (três) anos.

A Constituição Federal, ao prever como direitos fundamentais a proteção à vida e dignidade, abrange não só a vida extrauterina, mas também a intrauterina, pois qualifica-se com verdadeira expectativa de vida exterior. Sem o resguardo legal do direito à vida intrauterina, a garantia constitucional não seria ampla e plena, pois a vida poderia ser obstaculizada em seu momento inicial, logo após a concepção.

No pensamento de Kant, destaca-se a conceituação de dignidade como sendo a qualidade daquilo que não tem preço e a sua atribuição ao ser humano, ou seja, a proteção a vida, justamente porque não é instrumento, senão um fim em si mesmo:

“No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade. (...) o que se faz condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor interno, e isso quer dizer, dignidade. Ora, a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmos, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador do reino dos fins. Por isso, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas providas de dignidade” (KANT, 2004, p. 65).

O pensamento kantiano defende que o homem não pode ser rebaixado à condição de coisa; defende o valor do homem independentemente de sua condição social, raça, nacionalidade ou qualquer outra característica. Sedimentou-se a orientação de que a dignidade não é um direito concedido pelo Estado ao indivíduo, mas um atributo próprio do ser humano, peculiar a sua natureza. Basta existir para que seja considerado digno.

No entanto é sabido que nenhum direito fundamental é absoluto, dessa forma, existindo o conflito entre direitos fundamentais, deve ser utilizado a ponderação e do princípio da razoabilidade para se decidir por um ou outro direito, que venha a se sobrepor.

O Código Penal levou em consideração possíveis conflitos, tratando em seu art. 128. da possibilidade do aborto terapêutico, o aborto sentimental ou o humanitário, nos seguintes dizeres,

Art. 128. – Não se pune o aborto praticado por médico:

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

No primeiro inciso o Código Penal exime de culpa o aborto terapêutico realizado para salva a vida da gestante, quando esta gravidez resultar em risco para a própria vida da mãe, sendo um conflito de direitos à vida entre a mãe e o próprio nascituro. Já o segundo inciso trata o conflito entre o direito à vida, à dignidade humana e a saúde mental, despenalizando o aborto em casos de gravidez que resulte de estupro, sendo este o aborto sentimental ou humanitário.

No início de 2012. o Supremo Tribunal Federal passou a incluir uma terceira situação para este rol de excludentes de ilicitudes para o crime de aborto. Podendo ser incluído na categoria do aborto sentimental ou humanitário, o STF entende não ser crime o aborto de fetos anencéfalos (com má-formação do cérebro e do córtex - o que leva o bebê à morte logo após o parto).

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, salienta que “Cabe à mulher, e não ao Estado, calcular valores e sentimentos de ordem estritamente privada, para deliberar pela interrupção, ou não, da gravidez (de anencéfalos)”. Mostrando mais uma vez o conflito entre direitos fundamentais.

Sendo assim, legalmente, o aborto é entendido como a expulsão do produto da concepção antes do parto. Ou seja, no aborto, a proteção legal se volta para o produto da concepção, ou seja, o feto ou embrião vivo.

Esse ato, em regra, é ilegal, sendo criminoso o ato de retirar do útero de uma mulher, o feto ou o embrião vivo. Como, porém, toda regra tem sua exceção, a lei considera lícito o aborto se realizado quando a gravidez coloca em risco a vida da gestante ou é resultante de estupro ou atentado violento ao pudor. Nessas situações, o feto ou embrião vivo pode ser, impunemente, retirado do útero da gestante. É o que dispõe o artigo 128. do Código Penal descrito acima.


5. A DESCRIMINALIZAÇÃO E LEGALIZAÇÃO DO ABORTO

Para compreender a questão do aborto, mais especificamente a sua regulamentação, precisamos entender a diferença entre descriminalização e legalização. 

A palavra descriminalização significa que o ato ou conduta do agente, deixou de ser crime, ou seja, não há mais punição no âmbito penal, mas isso não significa que a aquela determinada conduta passa ser considerada banal, ou livre de ser praticada. A descriminalização tem apenas um efeito, a retirada da legislação penal, no qual o Estado não pode sobrevir em determinada situação. Já a legalização é uma expressão técnica, utilizada quando algum ato ou conduta, deixa de ser proibido e passa a ser permito por meio de uma lei. A lei regulamenta a prática e determina suas restrições, como também prever punições para quem descumpri-la. 

O entendimento e a distinção entre os institutos são fundamentais, principalmente nesta questão, pois em decorrência da criminalização da prática do abortamento, os índices de morbidade e mortalidade entre as mulheres têm aumentado consideravelmente, além de ser uma medida ineficaz.

Com a descriminalização do aborto, acompanhado de uma legislação específica, o índice de complicações e mortes entre as mulheres diminuiriam drasticamente, com isso elas teriam direito a uma assistência médica de forma justa e digna, não precisando recorrer a meios ilegais.

Neste sentido, Claus Roxin (2007) diz:

A proteção da vida em formação após a implantação do embrião no corpo da mãe é tratada de modo bastante diverso em diferentes culturas, e mesmo dentro da maioria dos países é uma questão bastante controvertida, por motivo de diversas visões de mundo. As soluções extremas – no sentido de que se trate o embrião que se desenvolve no corpo da mãe como um homem já nascido, protegendo-o através dos tipos de homicídio, ou no sentido de que se autorize por completo o aborto até o instante do nascimento – já mal são sustentadas ou praticadas internacionalmente. Elas deveriam ser recusadas também pelos motivos que já mencionei ao tratar da proteção ao embrião: se a vida daquele que nasceu é o valor mais elevado do ordenamento jurídico, não se pode negar à vida em formação qualquer proteção; não se pode, contudo, igualá-la por completo ao homem nascido, uma vez que o embrião se encontra somente a caminho de se tornar um homem, e que a simbiose com o corpo da mãe pode fazer surgir colisões de interesse que terão de ser resolvidas através de ponderações.(ROXIN, 2002, P.4)

É importante destacar, também, que, na luta pelo direito ao aborto, as mulheres perderam um grande canal de articulação nacional que foi o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher - CNDM. Apesar de continuar, formalmente, existindo, o CNDM acabou, de fato, em 1989, face ao processo de extinção daquele órgão, empreendido pelo governo federal. Esse foi um duro golpe, pois, pela primeira vez, o movimento de mulheres no Brasil teve, no nível do poder federal, uma representação direta que lhe possibilitou articular redes de apoio, de comunicação e de alianças nacionais.

Nos últimos tempos projetos de lei ainda mais restritivos em relação ao aborto tem avançado no legislativo brasileiro. Um deles ficou conhecido como o Estatuto do Nascituro, um projeto de lei que defende a proibição do aborto em qualquer caso. Esse projeto que está em tramitação desde 2007. privilegia os direitos do feto desde a concepção e busca transformar o aborto em crime hediondo. Além disso, estabelece penas de um a três anos de detenção para quem realizar um aborto e de um a dois anos para aqueles que induzirem ou ajudarem uma mulher grávida a praticar o aborto.

Segundo Galli, em sua obra “Direitos Sexuais e Reprodutivos: O estatuto do nascituro e as suas implicações para os direitos reprodutivos e o acesso das mulheres à saúde”:

“A criminalização do aborto acaba por impor legalmente à mulher o exercício da maternidade, violando seus direitos constitucionais de autonomia reprodutiva e de decisão sobre seus projetos de vida. O aborto, mais do que um problema de saúde pública, deve ser visto como uma questão de foro íntimo da mulher, cabendo essa escolha exclusivamente a ela.” (Revista de Saúde Sexual e Reprodutiva, página 47, 2010).

Concluímos assim, que para haver a descriminalização e legalização do aborto, deve ser feito toda uma desconstrução daquilo que enraizamos desde primórdio da existência humana, pois não se trata apenas de nós, mulheres, diz respeito a todes e ao tipo de sociedade em que vivemos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos no presente artigo, o aborto sempre aconteceu na história do homem e sempre acontecerá, pois, assim como a morte, faz parte da vida. Pattis em “Aborto perda e renovação: um paradoxo na procura da identidade feminina” (J. P. Neto Trad., São Paulo: Paulus, 2000) questiona se não seria menos doloroso olhar a vida como realmente ela é ou como está sendo, ao invés de escondê-la ou mantê-la na clandestinidade. É exatamente isto que ocorre em nosso país, onde o aborto é crime, mas raramente é punido.

Dessa forma, não adianta fechar os olhos diante dessa problemática, vez que se faz necessário abrir espaço para que as mulheres que vivenciam o aborto possam ser acolhidas e expressar os seus sentimentos. Segundo Gesteira, Barbosa e Endo (2006), essas mulheres vivem um luto não autorizado, isto é, um luto que não pode ser vivenciado e expressado, e para que esse luto seja dissipado é preciso que ele seja dito, sentido e refletido. (Gesteira, S. M. A., Barbosa, V. L., & Endo, P. C. O luto no processo de aborto provocado, página 19, 2006)

Questionamos se será justo deixar que esse processo continue ocorrendo de forma tão dolorosa para as mulheres, sobre quem recaem o estigma e a punição, na medida em que, historicamente, sabe-se que o homem fica isento de qualquer responsabilidade sobre o seu ato sexual. Faz-se necessário, nesse contexto, redefinir os valores e práticas socioculturais arraigados no que diz respeito aos aspectos de saúde sexual e reprodutiva da mulher e ao seu papel social. É preciso ver a mulher mais do que em seu papel biológico e olhar para o seu existir enquanto pessoa inserida em um contexto social (Boemer & Mariutti, A mulher em situação de abortamento: um enfoque existencial. Revista Escola de Enfermagem da USP, pagina 37, 2003).

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Como o aborto é uma problemática da saúde pública, busca-se sua descriminalização e legalização, com o objetivo de garantir a saúde das mulheres, tendo em vista que a sua criminalização não diminui sua prática.

Por fim, este artigo não questiona quanto à liberdade da mulher decidir sobre seu corpo, mas da obrigação do Estado em proteger a vida e garantir a liberdade de viver do feto, tal como estabelece nossa Constituição. Diante de tais incógnitas, deve o Estado investir em programas sociais visando educar sobre a prevenção, haja visto que a prevenção é incontestavelmente o pleno exercício do direito de liberdade da mulher em optar pela gravidez ou não.


BIBLIOGRAFIA

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Conceito histórico do aborto, disponível em: https://mariellimorais.jusbrasil.com.br/artigos/483830508/conceito-e-historico-do-aborto

A mulher tem direito ao próprio corpo, disponível em: https://diariodopoder.com.br/opiniao/a-mulher-tem-direito-ao-proprio-corpo

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Aborto – O que diz a lei: https://examedaoab.jusbrasil.com.br/artigos/414535657/aborto-o-que-diz-a-lei

Aborto e Saúde Pública no Brasil: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/livro_aborto.pdf

Legalização do Aborto Eugênico: https://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/sociologia/legalizacao-aborto-eugenico.htm

Proibição, descriminalização e legalização, qual a diferença: https://www.politize.com.br/proibicao-descriminalizacao-e-legalizacao-qual-a-diferenca/

Você sabe qual a diferença entre descriminalizar e legalizar: https://www.pelomundodf.com.br/noticia/17939/voce-sabe-qual-a-diferenca-entre-descriminalizar-e-legalizar-

World Health Organization [WHO] & Guttmacher Institute. (2007). Facts on induced abortion worldwide. Recuperado em 17. março, de 2009: https://www.who.int/reproductivehealth/publications/unsafe_abortion/abortion_facts/en/index.html

Revista de Saúde Sexual e Reprodutiva, 47. Recuperado em 16. de julho de 2010: https://aads.org.br/revista/ju10.html.

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Sobre as autoras
Andrísia Presley Machado Silva

Graduada em Direito pelo Centro Universitário UNA e Pós-Graduanda em Direito Internacional na Cruzeiro do Sul Virtual.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Andrísia Presley Machado ; CORREIA, Débora Maria Brites. Descriminalização e legalização da interrupção voluntária da gravidez. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6531, 19 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90392. Acesso em: 28 mar. 2024.

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