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Abandono de incapaz (art. 133, CP)

23/05/2021 às 15:00
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É crime abandonar pessoa incapaz de defender-se que esteja sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade.

Art. 133 - Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:

Pena - detenção, de seis meses a três anos.

§ 1º - Se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena - reclusão, de um a cinco anos.

§ 2º - Se resulta a morte:

Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

Aumento de pena

§ 3º - As penas cominadas neste artigo aumentam-se de um terço:

I - Se o abandono ocorre em lugar ermo;

II - Se o agente é ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima.

III – se a vítima é maior de 60 (sessenta) anos (Incluído pela Lei nº 10.741, de 2003)


Considerações preliminares

O crime de abandono de incapaz e o crime de exposição ou abandono de recém-nascido (CP, art. 134) foram previstos em tipos autônomos. Segundo a doutrina, o art. 133 prevê o tipo básico, fundamental, ao passo que o art. 134, uma figura privilegiada, em decorrência da previsão do “motivo de honra”.

O crime de abandono de incapaz é um crime de perigo concreto em decorrência do próprio verbo empregado na figura criminosa, qual seja, abandonar, o que exige um risco efetivo, real.


Objeto jurídico

Segundo leciona E. Magalhães Noronha, “inscreve-se a espécie no título dos crimes contra a pessoa, donde a proteção desta é o escopo do artigo. É ainda a defesa da vida e da saúde que se tutela, como bem claro deixa a denominação do Capítulo III. Objetividade jurídica, portanto, é o interesse relativo à segurança do indivíduo, que, por si, não se pode defender ou proteger, preservando sua incolumidade física.”


Elementos do tipo

Ação nuclear

Abandonar significa deixar a vítima sem assistência, ao desamparo. O crime pode realizar-se mediante uma conduta comissiva, por exemplo, conduzir um incapaz até uma floresta, abandonando-o; como também por uma conduta omissiva, por exemplo, babá que abandona o emprego, deixando as crianças, que estavam sob a sua assistência, à própria sorte. Não basta para a configuração do crime o simples abandono do incapaz; o abandono deve criar uma situação de perigo concreto para a vítima, incumbindo ao juiz analisar em cada caso a efetiva situação de perigo. Nesse sentido, leciona E. Magalhães Noronha, para quem a essência do abandono “está na presença de uma situação perigosa para o sujeito passivo. Disso resulta não haver abandono (expressão ampla) quando o sujeito ativo deixa o ofendido em lugar onde, sem qualquer risco para sua vida ou saúde, terá assistência de pessoa certa ou mesmo indeterminada”. Da mesma forma, inexiste o crime na hipótese em que o agente fique na espreita, vigiando a vítima, aguardando que terceiros a recolham. Observe-se que no caso nem mesmo há o dolo de expor o incapaz a uma situação de perigo para a sua vida ou saúde. Também não constitui abandono a hipótese em que o próprio assistido se furta aos cuidados daquele que tem o dever de prestar assistência.

Sujeito ativo

Esse crime somente pode ser cometido por aquele que tenha o indivíduo sob o seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade. O crime é próprio, exigindo a descrição típica que exiba o agente especial vinculação com o sujeito passivo, vinculação está inserida no dever de assistência que o primeiro tem em relação ao segundo. O dever de assistência pode decorrer de lei, de um contrato, ou de um fato (lícito ou mesmo ilícito). Damásio E. de Jesus ensina que: “Cuidado é a assistência eventual. Ex.: o enfermeiro que cuida de pessoa portadora de doença grave. Guarda é a assistência duradoura. Ex.: menores sob a guarda dos pais. Vigilância é a assistência acauteladora. Ex.: guia alpino em relação ao turista. Autoridade é o poder de uma pessoa sobre a outra, podendo ser de direito público ou de direito privado”. Se inexiste o dever de assistência, ou seja, se a vítima não se encontrava sob o cuidado, guarda, vigilância ou autoridade do agente, não há que se falar no crime de abandono de incapaz, podendo o agente responder por outro delito, como, por exemplo, omissão de socorro (CP, art. 135).

Sujeito passivo

Qualquer pessoa que se encontre sob o cuidado, guarda, vigilância ou autoridade do sujeito ativo e por qualquer motivo seja incapaz de defender-se dos riscos advindos do abandono. A incapacidade não é a civil, podendo ser corporal ou mental, durável ou temporária. Pode também ser absoluta (inerente à condição da vítima, uma criança, um ancião, um alucinado, um cego) ou relativa (decorrente do lugar, do tempo, das circunstâncias do abandono da vítima, deixada à própria sorte enquanto embriagada, enferma, amarrada). É inoperante o consentimento do ofendido, dada a indisponibilidade do bem jurídico protegido.

Elemento subjetivo

É o dolo, consistente na vontade livre e consciente de abandonar a vítima, de modo a expor a perigo a sua vida ou saúde. Admite-se o dolo tanto na modalidade direta quanto na eventual. Se com o abandono o que se deseja é a morte da vítima, a presença do animus necandi determinará o deslocamento do tratamento típico para aquele do homicídio tentado (ou, na ocorrência de morte, consumado). Assim, se o abandono é realizado em local absolutamente deserto, pode haver o dolo eventual de homicídio.

Vale apenas lembrar que todos os elementos (normativos, objetivos, subjetivos) que integram o tipo penal devem ser abrangidos pelo dolo. Assim, o desconhecimento justificável do sujeito ativo no tocante ao seu dever de assistência (que é elemento constitutivo do tipo penal) para com o sujeito passivo exclui o dolo e, portanto, o crime em tela, incidindo na hipótese as regras do erro de tipo (CP, art. 20).


Momento consumativo

Consuma-se o delito com o abandono do incapaz, desde que haja perigo concreto para a vida ou a saúde da vítima. Assim, não há que se falar em exclusão do crime na hipótese em que o agente temporariamente abandone o assistido, vindo a retomar posteriormente a sua posição de garantidor, pois, desde que a vida ou a saúde do assistido tenha sido exposta a perigo com o abandono, estará consumado o delito. Contudo, nada impede que no caso incida o instituto do arrependimento posterior (CP, art. 16).

Decerto, trata-se de crime instantâneo de efeitos permanentes, ou seja, o crime de abandono de incapaz consuma-se em um dado instante (com o abandono), mas seus efeitos perduram no tempo, independentemente da vontade do agente, já que o resultado produzido pela conduta subsiste sem precisar ser sustentado por ele. Cumpre não confundir com o crime permanente, pois neste há a manutenção da conduta criminosa, por vontade do próprio agente, por exemplo, delito de sequestro.

Tentativa

Conforme vimos anteriormente, a tentativa é admissível nos crimes de perigo, desde que o delito seja praticado na modalidade comissiva, de modo a haver um iter criminis (caminho do crime) a ser fracionado. Dessa forma, apesar de na doutrina estrangeira existirem posicionamentos em sentido contrário, não há como negar a forma tentada do delito de abandono de incapaz na forma comissiva, pois, conforme leciona Nélson Hungria, “se o agente é surpreendido no ato do depósito ou quando já está se distanciando da vítima, mas antes que esta corra perigo, é inegável o conatus (tentativa)... Há um iter a percorrer, uma execução progressiva, em cujo curso o agente pode ser detido ou voluntariamente deter-se, o que vale dizer: há uma fase da tentativa”.


Formas

Simples

É a figura descrita no caput do art. 133

Qualificada

São as figuras descritas nos §§ 1º e 2º. O legislador previu a majoração da pena em duas hipóteses:

  1. Se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave (pena – reclusão, de 1 a 5 anos);

  2. Se do abandono resulta morte (pena – reclusão, de 4 a 12 anos). Ambas são formas preterdolosas. O resultado agravador não é querido pelo agente, nem mesmo eventualmente, mas lhe é imputado a título de culpa, se previsível.  A falta de previsibilidade quanto ao resultado danoso exclui a qualificadora.

Importante ressaltar que estamos tratando de um crime de perigo em que o agente age com dolo de perigo quanto ao abandono do incapaz, de modo que o evento danoso (morte ou lesão corporal), apesar de ser previsto pelo agente, não é por ele querido, nem mesmo eventualmente. Presente a intenção de causar a morte ou lesão corporal (dolo de dano), deverá o fato ser enquadrado nos arts. 121 e 129 c/c art. 14, estando aqui configurado um crime de dano.

Causa de aumento de pena, §3º

O § 3º prevê três circunstâncias que majoram a pena (aumento de 1/3):

  • Inc. I - Se o abandono ocorre em lugar ermo – Lugar ermo é aquele que não é frequentado, é solitário, isolado, o que representa um perigo maior para o incapaz que é nessas circunstâncias abandonado, ante a maior dificuldade de ser socorrido. Para a incidência dessa causa de aumento exige a doutrina que o lugar seja habitualmente, e não acidentalmente, solitário. Desse modo, se o local é muito frequentado por pessoas, mas, no momento da realização do crime de abandono de incapaz, estava ermo, não incide a majorante em tela (p. ex., uma rua do centro urbano a certas horas da noite). Da mesma forma, afasta-se a majorante se no local habitualmente ermo encontravam-se frequentadores (p. ex., um bosque pode ser lugar ermo, mas se, um menor for nele abandonado quando ali se realiza uma quermesse, não existirá a agravante em apreço). Conforme a doutrina, o local deve ser relativamente ermo, se for absoluta a solidão, poderá constituir meio de execução do crime de homicídio.

  • Inc. II - Se o agente é ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima – Esta majorante visa sancionar de forma mais gravosa a conduta daquele que tem com a vítima um dever maior de assistência. A doutrina sustenta a taxatividade desse rol legal, não se admitindo a analogia para incluir outros entes, tais como sogro, genro e primo. Ressalte-se que a expressão “descendente” abrange igualmente todos os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, em face do comando constitucional inserto no art. 227, § 6º. No que se refere aos companheiros, unidos pelos laços da união estável, o art. 226, § 3º, da CF reconhece expressamente a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, de modo que estão incluídos nesse rol legal, pois são equiparados constitucionalmente aos cônjuges. Não se trata de interpretação extensiva da norma penal, ou seja, de analogia in malam partem, mas sim de mera declaração do seu exato conteúdo de acordo com o texto constitucional. Ademais, vale mencionar que, recentemente, o Plenário do STF reconheceu como entidade familiar a união de pessoas do mesmo sexo (ADPF 132, cf. Informativo do STF n. 625, de maio de 2011). Observe-se que a incidência dessa majorante afasta a incidência da agravante genérica prevista no art. 61, II, e (ter o agente cometido o crime contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge), sob pena de ocorrência de bis in idem.

  • Inc. III - Se a vítima é maior de 60 anos – O art. 110 da Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), acrescentou uma nova causa especial de aumento de pena ao § 3º do art. 133, qual seja, a pena do abandono de incapaz é aumentada de 1/3 se o crime é praticado contra pessoa maior de 60 anos. Antes da vigência da referida lei, a circunstância de o crime ser praticado contra pessoa idosa funcionava apenas como agravante (CP, art. 61, II, h). Com a inovação legislativa, tal circunstância foi erigida, no crime de abandono de incapaz, em causa especial de aumento de pena. Obviamente que a incidência desta afasta a circunstância agravante genérica prevista no art. 61, II, h, do CP (delito cometido contra maior de 60 anos), sob pena da ocorrência de bis in idem.

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Culposa

Não há previsão da modalidade culposa do delito. No entanto, se o agente abandonar o incapaz e sobrevier a sua morte ou a ocorrência de lesões corporais, deverá ele responder pelos delitos de homicídio ou lesão corporal na modalidade culposa.

Estado de necessidade

O estado de necessidade atua como causa excludente da ilicitude desde que preenchidos os requisitos constantes no art. 24, CP. Há, inclusive, decisão do Tribunal do Rio de Janeiro no sentido de que não se configura o delito de abandono de incapaz se a mãe deixava os filhos trancados por absoluta necessidade de ir trabalhar fora (RT 533/387).


Ação penal e lei dos juizados especiais criminais

Trata-se de crime de ação penal pública incondicionada, que independe de representação da vítima ou de seu representante legal. De acordo com o art. 394 do CPP, o procedimento será comum ou especial. O procedimento comum se divide em:

  1. Ordinário: crime cuja sanção máxima cominada for igual ou superior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade, salvo se não se submeter a procedimento especial;

  2. sumário: crime cuja sanção máxima cominada seja inferior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade, salvo se não se submeter a procedimento especial;

  3. sumaríssimo: infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da Lei n. 9.099/95, ainda que haja previsão de procedimento especial. Dessa forma, a distinção entre os procedimentos ordinário e sumário dar-se-á em função da pena máxima cominada à infração penal e não mais em virtude de esta ser apenada com reclusão ou detenção.

Com relação à incidência da Lei dos Juizados Especiais Criminais, é cabível a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei n. 9.099/95) nas seguintes hipóteses, em que a pena mínima prevista para o delito é igual ou inferior a um ano:

(i) do caput do art. 133 (pena – detenção de 6 meses a 3 anos); ainda que incida a causa de aumento do § 3º (aumento de 1/3), é cabível o sursis processual, pois a pena não ultrapassará o patamar mínimo de 1 ano;

(ii) do § 1º do art. 133 (pena – reclusão, de 1 a 5 anos). Nesta hipótese, se incidir a causa de aumento de pena prevista no § 3º, não será cabível o sursis processual, na medida em que a pena mínima prevista ultrapassará o patamar mínimo de 1 ano.

O sursis processual não será possível na hipótese do § 2º, em face de a pena mínima prevista ser superior a um ano (pena – reclusão, de 4 a 12 anos).


Estatuto do idoso

A conduta consistente em abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência, ou congêneres, ou não prover suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado, configura crime previsto no art. 98 do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), punido com pena de detenção de seis meses a três anos e multa. Trata-se de crime de ação penal pública incondicionada, não se lhe aplicando os arts. 181 e 182 do CP (cf. art. 95 do Estatuto).


REFERÊNCIA

Capez, Fernando, curso de Direito Penal, parte especial. Ed. 13º, Saraiva - https://amzn.to/38PJwEO

Bittencourt, Cezar Roberto - Tratado de Direito Penal, Vol. 2, Pt. Esp., 21ª Ed. 2021 - https://amzn.to/3agd27p

Masson, Cleber, Direito Penal, parte especial. Ed. 14º, Metodo - https://amzn.to/30QbITT

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Sobre o autor
Jonathan Ferreira

Acadêmico de Direito pela universidade Estácio de Sá com foco em Dir. Penal, Dir. Proc. Penal, Dir. Constitucional Brasileiro. Administrador e fundador da página Âmbito Criminalista, no qual ajudo pessoas a entenderem o Direito Penal de forma simples e descomplicada. Amante da Sabedoria e estudante da psicanálise lacaniana em conjunto com a seara penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Jonathan. Abandono de incapaz (art. 133, CP). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6535, 23 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90651. Acesso em: 21 nov. 2024.

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