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Presunção de laboralidade

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21/10/2006 às 00:00
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1. Considerações Preliminares

          A legislação trabalhista, durante certo período, visou fundamentalmente à proteção do trabalhador, então considerado o ente mais fraco na vida em sociedade. Hodiernamente, entretanto, o grande objetivo do direito justrabalhista é a solução de problemas, ou seja, a busca de uma finalidade político-social que é a paz social.

          A sociedade portuguesa foi brindada muito recentemente com a entrada em vigor do Código do Trabalho, o qual, alinhado ao novo papel do Direito do Trabalho, objetivou, além da unificação e sistematização das normas laborais, diminuir a sua índole garantística e aumentar a sua agilidade.

          Os legisladores portugueses atentos aos diversos abusos e situações de incumprimentos dos direitos trabalhistas diligenciaram, de forma digna e oportuna, à positivação da figura da presunção de laboralidade, consoante a redação do artigo 12º do novel Código, in verbis:

          "Artigo 12.º (Presunção)

          Presume-se que as partes celebraram um contrato de trabalho sempre que, cumulativamente:

a) O prestador de trabalho esteja inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as orientações deste;

          b) O trabalho seja realizado a empresa beneficiária da actividade ou em local por esta controlado, respeitando um horário previamente definido;

          c) O prestador de trabalho seja retribuído em função do tempo despendido na execução da actividade ou se encontre numa situação de dependência económica face ao beneficiário da actividade;

          d) Os instrumentos de trabalho sejam essencialmente fornecidos pelo beneficiário da actividade;

          e) A prestação de trabalho tenha sido executada por um período, ininterrupto, superior a 90 dias."


2. Qualificação contratual

          Como se sabe, constitui tarefa delicada o exercício de identificação do contrato de trabalho, dada, principalmente, a extrema variabilidade das situações concretas, e, sobretudo, em conseqüência do caráter informal do contrato de trabalho.

          Segundo o Boletim Estatístico-Emprego, Formação, Trabalho (editado pelo Ministério do Trabalho, de Março de 1999), 70% da população ocupada – em torno de 3,2 milhões de pessoas - são trabalhadores por conta de outrem, exercendo atividade laboral remunerada em regime de subordinação. [1]

          Alguns desses trabalhadores estão ligados ao "trabalho virtual", à informática, à telemática e à robotização, bem como fazem parte de novas profissões surgidas no final do Século XX, constituindo uma massa de trabalhadores a exigir novos parâmetros jurídicos, nem sempre consagrados no ordenamento legal reinante.

          Constitui um desafio, portanto, responder ao questionamento do Professor e Advogado Pedro Ortins de Bittencourt: "Como poderá um Direito do Trabalho construído a pensar na unidade industrial clássica, centrado no operariado fabril e com um historial demonstrativo da sua manifesta incapacidade para regular as situações juslaborais dos quadros superiores, responder ao surgimento dos E-workers". [2]

          Não há como fugir à indagação de como o Direito do Trabalho, conjunto de limitações à autonomia privada individual, a partir de preocupações resultantes do liberalismo econômico do Século XIX pode responder ao dinamismo e às inovações do Século XXI?

          De qualquer modo, o próprio Prof. Bittencourt, ciente das limitações históricas e, sobretudo, do ordenamento jurídico, faz lembrar que não se pode esconder a outra face da realidade, a de que o modelo da sociedade industrial continua a predominar.

          Ressalte-se, no entanto, que a transformação da economia, como não poderia deixar de ser, provocou sérias conseqüências no mundo do trabalho. Esses reflexos são mais graves nos países em vias de desenvolvimento, onde preponderam governos fortes e sindicatos fracos, onde a desregulamentação das condições de trabalho propicia jornadas excessivas, repouso semanal e férias anuais insuficientes, trabalho de menores e parte significativa dos salários indexada à produtividade e ao desempenho empresarial. [3]

          Não a propósito, o então Diretor Geral, Juan Somovia, ao representar a OIT na Assembléia Geral das Nações Unidas de junho de 2000, ponderou que "as políticas econômicas neoliberais que sobressaem na atual economia globalizada fracassaram na busca do que os povos necessitam: um sentimento básico de segurança. Para conseguirem um trabalho decente devem trocar as políticas que hoje guiam e configuram a economia mundializada. O Estado deve cumprir sua função de garantir um equilíbrio entre a força do mercado e as necessidades da sociedade". [4]

          O Estado português, ao editar o recentíssimo Código do Trabalho, teve a oportunidade de rever os seus padrões anteriores e refazer, em bases atuais e modernas, a sua legislação trabalhista, de modo a combinar a função tutelar do Direito do Trabalho com a função ordenadora dos interesses recíprocos dos parceiros sociais.

          Segundo preleciona António Lemos Monteiro Fernandes: "No Direito do Trabalho, o padrão de referência é marcado pela desigualdade originária dos sujeitos, ou seja, pela diferença de oportunidades e capacidades de realização de interesses próprios, e daí que a finalidade ‘compensadora’ seja assumida como um pressuposto da intervenção normativa". [5]

          A legislação brasileira, por sua vez, configurada na Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, elaborada em 1942 e aprovada em 1943, de cunho eminentemente intervencionista nas relações de trabalho, posto que editada sob o predomínio da economia agrícola, encontra enormes dificuldades de compatibilização ao sistema moderno, que busca fórmulas opcionais ou flexíveis de estipulação de condições de trabalho.

          No enfrentamento do problema posto pela evolução tecnológica e de transmutação da economia global, o Brasil fez opção pela flexibilização de algumas normas trabalhistas, até mesmo em sede constitucional: redutibilidade salarial, compensação de horários na semana e trabalho em turnos de revezamento.

          Feita essa rápida digressão tocante à realidade brasileira, mister retomar ao tema do contrato de trabalho e das dificuldades de qualificação, sobretudo, em face de duas razões: a) a existência de contratos afins ao contrato de trabalho; b) a presença freqüente de uma interessada vontade simuladora das partes contratantes. [6]

          Relativamente aos contratos afins evidenciam-se os perfis difusos e ambíguos que originam as chamadas zonas cinzentas de qualificação jurídica duvidosa. Se, por um lado, no contrato de trabalho existe dependência e o risco da atividade econômica é assumido inteiramente pelo empregador, por outro, há dificuldade de distingui-lo quando existirem pactos e participação em benefícios ou pagamentos baseados em comissões. [7]

          No que se refere à simulação contratual, poderá restar configurada uma vontade maliciosa das partes contratantes, notadamente do empresário, em dissimulação ao contrato de trabalho mediante a simulação de um dos contratos afins (cambiário ou associativo) a fim de se evitar a aplicação do regime jurídico dos contratos laborais. Em outras ocasiões a fraude é cometida pelo trabalhador com o objetivo de beneficiar-se da seguridade social. [8]

          O fato é que, frente à extensa variabilidade de situações concretas e da informalidade reinante nas relações laborativas, identificar, por si só, a relação de trabalho subordinado, pode se tornar uma tarefa delicada e de difícil deslinde.

          Por longo tempo, os doutrinadores e a jurisprudência debruçaram-se sobre as razões favoráveis de adoção da presunção legal, dando especial relevo sobre:

          1º - a crescente "desmaterialização" do elemento subordinação jurídica, cada vez mais remetido a um estado potencial e necessitado de detectação por via dedutiva (método indiciário).

          2º - o esbatimento das fronteiras entre tipos de atividades próprios da prestação de serviço (trabalho autônomo); face à possibilidade de execução em qualquer dessas modalidades jurídicas. [9]

          O contrato de trabalho presumir-se-á existente entre todo aquele que presta um serviço por conta e dentro do âmbito de organização e direção de outro, bem como do que o recebe em troca de uma retribuição monetária. Logo, diante de certas características detectáveis por observação da realidade factual poder-se-á presumir constituída a determinação concreta do trabalho subordinado, é o que está contido no artigo 8º/1 do Estatuto dos Trabalhadores do Estado Espanhol.

          Pode-se dizer, de qualquer modo, que a via presuntiva, atualmente positivada no ordenamento jurídico português, já se encontrava presente na prática judiciária quotidiana. Outrora, já se entendeu, sob definição do então vigente artigo 1º LCT, que, se, no caso concreto, existindo uma pessoa a prestar serviço a outrem, mediante retribuição, e estando a primeira sob as ordens da segunda, dever-se-ia concluir pela existência de um contrato de trabalho.

          A necessidade de proteção social aos trabalhadores constitui a razão sociológica do Direito do Trabalho e é imanente a todo o seu sistema jurídico. Na observação de Kaskel, as normas jurídicas públicas e as privadas coexistem neste ramo do Direito, "uma ao lado das outras, não em forma mutuamente excludente, senão reforçando-se reciprocamente; ambas baseadas no princípio protetor do direito social como ponto de partida e como elemento diretor para o desenvolvimento e a interpretação". [10]


3. Ônus da prova

          De qualquer modo, a doutrina e a jurisprudência já haviam se consolidado no sentido de que os elementos constitutivos do contrato de trabalho tinham de ser provados pelo empregado, no desempenho do ônus que lhe incumbia. Afinal, o ônus probante no direito processual português, como de resto nos países de tradição romano-germânica, resulta de acordo com a natureza dos fatos, senão vejamos:

a) O ônus dos fatos constitutivos do direito compete ao autor; se este nada provar, o réu não necessita de provar coisa alguma sobre este tipo de fato;

          b) O ônus da prova dos fatos impeditivos incumbe ao réu;

          c) O ônus da prova dos fatos extintivos do direito do autor compete ao réu;

          d) O ônus da prova dos fatos modificativos, porque estes se reconduzem, sempre, a fatos constitutivos, impeditivos ou extintivos, cabe à parte que, em concreto, assume o interesse desses fatos. [11]

          Sobre o assunto, o novel Código de Trabalho vem trazer inovações ao prevê a inversão do ônus da prova, mediante a verificação cumulativa dos elementos presuntivos, conforme elenco contido no artigo 12º. Cabendo ao empregador o ônus de desconstituir o direito do autor, mediante a apresentação de provas que possam impedir, extinguir ou modificar o direito deste.

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4. Requisito da Cumulação

          Dita o novo ordenamento que os elementos presuntivos devem ocorrer de forma cumulada, o que, a meu ver, constitui a primeira grande dificuldade de aplicação da norma.

          No decorrer deste trabalho, não faltará oportunidade de constatar que o legislador fez opção em incluir pressupostos que a doutrina e a jurisprudência, de longa data, entendiam não constituir requisito essencial do contrato de trabalho, a exemplo da dependência econômica.

          Resta-nos, no entanto, a certeza de que a prevalência da presunção legal não significa o fim das presunções jurídicas (art. 351º, do Código Civil), no percurso qualificador. [12] Sobretudo, porque a presunção de laboralidade constitui uma técnica de delimitação objetiva do contrato de trabalho.


5. Elementos presuntivos

          Passemos agora a discorrer sobre cada um dos elementos presuntivos.

          A norma em tela trata, inicialmente, sobre a necessidade de inserção do prestador de trabalho na estrutura organizativa do beneficiário da atividade, devendo a pessoa realizar a sua prestação mediante orientação deste.

          O requisito da integração numa organização produtiva dependente do empregador, em verdade, não constitui uma novidade, afinal se fez presente no domínio da legislação anterior, bem como na doutrina e na jurisprudência.

          Segundo preleciona Albino Mendes Baptista, esta inserção pode existir sem que se traduza no exercício de poderes de direção próprios de um empregador face a um trabalhador subordinado. [13] Razão pela qual, continua o mestre, faz-se a exigência complementar da realização de prestação sob as orientações do beneficiário da atividade.

          A subordinação, pode-se dizer, é o elemento essencial para caracterização do contrato de trabalho; pressuposto distintivo do trabalho dito subordinado do trabalho autônomo. Significa, portanto, que o obreiro encontra-se em situação de submissão na esfera organicista e, de todo modo, controlado e disciplinado pelo empregador.

          Neste particular, posiciono-me de modo diverso ao pensamento de António Lemos Monteiro Fernandes, que encara a subordinação ou dependência com mero juízo de aproximação, como tradução de um juízo de possibilidade e não de realidade. [14] E, filio-me ao pensamento do renomado Délio Maranhão, que afirma que a subordinação do empregado é jurídica, porque resulta de um contrato: nele encontra seu fundamento e seus limites, constituindo fonte de direitos e deveres para ambos os contratantes. [15]

          A comprovação de que o trabalho é realizado no âmbito da empresa beneficiária da atividade ou em local por essa controlado, bem como a exigência de horário previamente definido, compõem o segundo pressuposto de presunção de laboralidade.

          O Superior Tribunal de Justiça português, bem a propósito, em acórdão de 11 de Maio de 1994, reconhece que através do contrato de trabalho, o obreiro coloca à disposição do empregador a sua força de trabalho. Daí sustentar-se que o local onde a prestação laboral deve ser executada constitui um dos seus elementos concretizadores, fazendo parte do próprio conteúdo da prestação devida. [16]

          Não se pode negar que a definição do lugar do trabalho, bem como o horário de prestação de serviço dizem respeito aos interesses fundamentais de ambos os contratantes. Definidos o lugar do emprego e o horário de trabalho, o empregado poderá ajustar a sua maneira de viver levando em conta a nova realidade.

          Mais uma vez e por oportuno, faz-se necessário retomar as dificuldades de qualificação jurídica do contrato de trabalho, agora, frente à constatação de existência de trabalhadores que não estão sujeitos a controle e fixação de horários de trabalho, posto que desenvolvem suas atividades em horários por eles próprios definidos, a exemplo dos que exercem atividades eminentemente externas. E, que, nem por isso, afasta-se a subordinação e submissão ao contrato de trabalho subordinado.

          Aponta-se, em seguida, a necessidade de remuneração em função do tempo despendido na execução da atividade ou da situação de dependência econômica.

          Vem tratar o código, portanto, da onerosidade do contrato de trabalho e da contra-prestação a que se obriga o empregador em face da prestação de serviço por parte do empregado.

          Merece atenção especial a questão da dependência econômica trazida pelo Código. Como sabemos, apesar da diversificação das situações verificáveis no mercado de trabalho, a esmagadora maioria dos trabalhadores que exercem atividades por conta de outrem tem a subsistência pessoal e a economia familiar, vinculadas à remuneração recebida por efeito de um contato de trabalho. [17]

          A chamada "dependência econômica", não sendo, por si só, um traço distintivo da relação de trabalho subordinado [18], enquanto paradigma assumido pela legislação laboral, pode constituir, onde exista, um fator de dependência pessoal mais marcante do que a sujeição a ordens relativas ao modo de executar o trabalho.

          O legislador português, mesmo indo de encontro à posição dominante da doutrina e da jurisprudência, considerou a remuneração e/ou a dependência econômica como necessários à qualificação do contrato laboral.

          Neste ponto, interessante e peculiar a solução adotada pela legislação alemã, ao criar uma figura específica – a das "pessoas assimiladas a trabalhadores" – caracterizada pela dependência econômica e por merecer proteção social identicamente aos trabalhadores subordinados. São os traços da definição oferecida pela lei sobre a contratação coletiva. Está nela implícita a inexistência de subordinação (dependência pessoal) por parte do trabalhador. É a função do conceito de "pessoa assimilada a trabalhador" é a de servir de chave de acesso à aplicação de normas ou regimes contidos em algumas leis do trabalho, que expressamente o referem: a lei da contratação coletiva, a lei das férias, a lei dos tribunais do trabalho. Mas o pressuposto é o de que a legislação do trabalho não lhes é, em princípio, aplicável. São casos tipicamente englobados no conceito de "pessoas assimiladas", o trabalhador em domicílio e do industrial caseiro. [19]

          O elemento presuntivo seguinte refere-se ao fornecimento dos instrumentos de trabalho pelo beneficiário da atividade, aspecto relevante, embora não excludente de situações caracterizadoras do contrato de prestação de serviço; afinal, o prestador de serviço pode escolher os meios e processos a empregar, porém os instrumentos de trabalho podem ser fornecidos pelo contratante do serviço.

          Por fim, o requisito do tempo de serviço, que deverá ser superior a 90 dias, e de forma ininterrupta, consoante dispõe a alínea e) do art. 12º.

          Este requisito mereceu do Prof. A. Monteiro Fernandes a crítica de que lhe "parece inteiramente destituído de aptidão qualitativa" [20], com o que concordo plenamente, a despeito da posição do e. Prof. Albano Mendes Baptista, que reputa inteiramente correta a relevância ao decurso do período. [21]

          Não posso crer que, o trabalhador que tenha trabalhado sabidamente, por até noventa dias, sob o regime de trabalho caracteristicamente subordinado, não tenha os mesmos direitos daquele que trabalhou por noventa e um dias. Neste particular, creio que o legislador distinguiu onde não deveria distinguir.

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Sobre o autor
Wilson de Souza Malcher

advogado em Brasília (DF), professor universitário, mestrando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MALCHER, Wilson Souza. Presunção de laboralidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1207, 21 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9066. Acesso em: 28 mar. 2024.

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