A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março de 2020, declarou o estado de pandemia global causada pela Covid-19, que afetou gravemente mais de 190 países. Desde então, no enfrentamento desta crise sanitária sem precedentes, a fragilidade e a precariedade dos sistemas de saúde de todo o mundo vêm sendo expostas de forma contundente.
No Brasil, a Covid-19 vem causando grandes impactos, especialmente naqueles em situação de vulnerabilidade. Apesar dos esforços, o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) é uma realidade. A demanda de cuidados complexos e o uso de tecnologias diversas, a escassez de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), a falta de leitos para internação e de profissionais de saúde em quantidade e qualidade explicam a situação calamitosa dos serviços do SUS.
O Direito à Saúde, no contexto brasileiro, foi refletindo na criação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 196, que o assegura a todos e o impõe como dever do Estado. Com base nesse dispositivo, a judicialização envolvendo o Direito à Saúde no Brasil não é recente e o Poder Judiciário há muito fixou o entendimento acerca da obrigatoriedade do Estado em promover a prestação integral da saúde à população.
As estatísticas sobre a judicialização da saúde no Brasil são alarmantes. Se contemplarmos todas as demandas envolvendo a matéria (de natureza cível, não criminal), considerando os processos ajuizados até 31 de dezembro de 2018 e em trâmite no 1º e no 2º grau, nos Juizados Especiais, no Superior Tribunal de Justiça, nas Turmas Recursais e nas Turmas Regionais de Uniformização, chegamos ao estrondoso número de 2.228.531 demandas, segundo o Conselho Nacional de Justiça.
Em razão do atual quadro pandêmico da Covid-19, o Estado tem deixado de lado o atendimento a outras doenças não menos importantes, tais como câncer, problemas cardíacos e depressão. Por conta disso, apesar da ausência de dados estatísticos oficiais em 2020, estima-se que a crise pandêmica esteja contribuindo para um aumento ainda maior do número de processos movidos por indivíduos contra o Estado, relacionados ao Direito à Saúde.
Conforme estudo promovido pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, os pesquisadores concluíram que o surto da Covid-19 no mundo causou um efeito chamado de “transbordamento”, aumentando o número de mortes por outras doenças, tais como câncer e doenças cardiovasculares. O que chamamos de efeito transbordamento é o fato de que a pandemia de Covid-19 está tendo um impacto enorme em outras causas de morte. Por exemplo, na redução do financiamento para a pesquisa de tratamentos de malária, na nutrição e na pobreza, especialmente em países menos desenvolvidos.
Nesse cenário, no campo do Direito, algumas discussões tem merecido destaque nos tribunais brasileiros: a judicialização de pedidos de fornecimento de leitos em hospitais, sobretudo nas UTIs (unidades de terapia intensiva), em um cenário de escassez absoluta de vagas, pleitos judiciais de pessoas com comorbidades não elencadas na lista de vacinação prioritária definida pelo Ministério da Saúde, pedidos para fornecimento de medicamentos de alto custo padronizados pelo SUS, porém indisponíveis nas farmácias públicas, por conta das restrições orçamentárias ocasionadas pela pandemia; discussões relacionadas à fraudes nas aplicações das vacinas; exigência por parte das empresas da obrigatoriedade da vacinação dos empregados.
Nesse contexto, o Poder Judiciário enfrenta a complexa missão de conciliar os direitos individuais relacionados à saúde face à coletividade (políticas públicas e ciclos orçamentários).
A solução para essa questão depende necessariamente de diálogos institucionais entre todos os órgãos públicos e privados, além de profissionais, como médicos, juristas, economistas, cientistas, dentre outros, em uma atuação conjunta para evitar que as decisões judiciais provoquem o colapso do sistema como um todo, considerando-se que a humanidade não está livre de novas pandemias e que as demais doenças continuam e continuarão a afetar grande parte da população.