RESUMO
O presente trabalho desenvolverá o tema relativo ao aborto como direito à escolha, e seu objetivo será estabelecer uma discussão sobre o aborto e o direito à escolha por parte da mulher. O tema escolhido é motivo de controvérsias e interpretações das mais diversas áreas bem como gera uma grande leva de casos onde os tribunais exercem a função de solucioná-los. A importância de um estudo mais a fundo sobre a legislação aplicada ao aborto, as decisões vinculadas ao campo judicial e até mesmo a questão de sua legalidade no país, requer, ao longo do tempo, uma motivação e um grande interesse por parte da população, devido à grande quantidade de casos ocorridos clandestinamente, causando um impacto maior e assustador nos dados numéricos.
Palavras chave: Aborto; direitos; mulher.
ABSTRACT
The present work will develop the theme related to abortion as the right to choose, and its objective will be to establish a discussion about abortion and the woman's right to choose. The chosen theme is a reason for controversies and interpretations from the most diverse areas, as well as generating a large number of cases where the courts exercise the function of solving them. The importance of a deeper study on the legislation applied to abortion, decisions linked to the judicial field and even the question of its legality in the country, requires, over time, a motivation and a great interest on the part of the population, due to the large number of cases that occurred clandestinely, causing a greater and frightening impact on the numerical data.
Keywords: Abortion; rights; women.
INTRODUÇÃO
A temática do aborto está em pesquisas, debates e na retomada da mobilização de movimentos feministas. Há uma grande extensão bibliográfica sobre o tema, o que constitui um forte traço da sua importância para todos os âmbitos das políticas sociais, especialmente da saúde pública, sendo imprescindível o acompanhamento e análise crítica por parte do Direito.
Assim, por meio desta metodologia de pesquisa bibliográfica, para a construção do presente artigo será explorada a opinião de doutrinadores, com embasamento em artigos, súmulas e jurisprudências acerca do aborto.
Os resultados confiáveis das principais pesquisas sobre aborto no Brasil comprovam que a ilegalidade traz consequências negativas e perigosas para a saúde das mulheres.
Peres (2016, p. 1) também observa que “segundo a OMS, o aborto clandestino mata uma mulher a cada dois dias, e outras milhares sofrem consequências físicas e psicológicas de procedimentos realizados sem qualquer segurança”. A relação entre o aborto ilegal e a saúde feminina é inegável, vez que o risco não existe apenas quando o aborto é uma intervenção cirúrgica realizada em circunstâncias seguras. Há risco evidente quando a mulher vive em condições de insalubridade, sendo que a morbimortalidade possui altos índices, principalmente entre as mulheres mais pobres, sem acesso à saúde e sem condições para interromper a gestação de forma segura
O risco posto pela ilegalidade do aborto é preeminentemente vivido pelas mulheres pobres e pelas que não têm acesso aos recursos médicos para a prática do aborto seguro. Ou seja, o aborto é, sobretudo, uma questão de saúde pública.
Por fim, argumenta-se a escolha desse tema e sua importância, visto que há a necessidade de se averiguar como é visto o aborto na atualidade, a evolução das discussões sobre o tema e o reconhecimento dos enredos envolvidos com essa temática, para que deixemos de condenar à morte tantas mulheres, negando-lhes o direito à liberdade de escolha e ao controle de suas próprias vidas.
1 O ABORTO EM PERSPECTIVA HISTÓRICA
A palavra aborto teve sua origem no latim abortus, derivado de aboriri (perecer), ab significa distanciamento e o oriri nascer (Koogan & Houaiss, 1999). A prática do ato é consideravelmente antiga, vez que era utilizado como a forma de contracepção e preservado como prática privada até o século XlX, percorrendo por questões morais, éticas, legais e religiosas, das quais se mantém até os dias de hoje.
O aborto é a expulsão do embrião ou feto, de forma espontânea ou provocada, sendo considerado inviável antes de 20 semanas completas de gestação (Kunde e Sabino, 2009). Espontâneo quando há interrupção involuntária de uma gravidez que acontece antes da 20ª semana (cerca de 5 meses) de gestação e provocado quando a expulsão do feto é em decorrência de ação humana.
Teodoro (2007) e Riddle (1992), esclarecem que existem menções ao aborto nos escritos egípcios sobre contracepção que datam de 1850 a 1550 a.C., nos quais se falava de receitas com ervas cujas propriedades químicas, descobertas com a ciência moderna, poderiam ser contraceptivas ou causar à mulher aborto e infertilidade. Desta forma, os povos antigos - como os assírios, os sumérios e os babilônicos - possuíam leis que proibiam o aborto por razões de interesse social, político e econômico.
Na Grécia Antiga o aborto era realizado como forma de diminuir o crescimento populacional e mantê-lo estável. Apesar das civilizações grega e romana permitirem o aborto, este poderia ser considerado crime quando ferisse o direito de propriedade do pai sobre um potencial herdeiro. Isso acontecia porque tais civilizações eram patriarcais e o homem detinha poder absoluto sobre a família e precisava de um herdeiro para sucedê-lo. Neste sentido, o aborto era considerado crime devido a um interesse político, não havendo referência ao direito do feto à vida (Rebouças; Dutra, 2011).
Há referências na Bíblia Sagrada aos costumes judaicos sobre o direito de defender a honra e a dignidade. Desta forma, se o homem suspeitasse que sua mulher fosse infiel deveria levá-la a um sacerdote, o qual era instruído a dar-lhe a água amarga da maldição, como citado em Números 5:27-28:
Se ela se contaminou e foi infiel ao seu marido, logo que a água amarga da maldição entrar nela, seu ventre ficará inchado, seu sexo murchará, e a mulher ficará maldita entre os seus. Se a mulher não se contaminou, se estiver pura, não sofrerá dano e poderá conceber (Bíblia Sagrada, Números 5:27-28, p. 180).
Ou seja, se a mulher abortasse ao beber a água amarga ela seria culpada de adultério, o que é contraditório, na medida em que se condenava o aborto, mas utilizava-se de um "método" abortivo para julgar uma possível traição. Foi somente em 1869 então, que a Igreja Católica declarou que o feto possui alma e, por isto, passou a condenar o aborto e os métodos contraceptivos.
Sant’Ana (2005), por sua vez, dispõe que partindo do princípio de que o direito à vida é um dom recebido de Deus e que os homens são apenas administradores dela, existe um consenso entre as crenças religiosas no que diz respeito ao caráter sagrado da vida, isto posto, proíbe-se qualquer intervenção do homem sobre ela. Desta forma, muitas religiões são contra a interrupção voluntária da gravidez, mesmo que o feto seja portador de alguma anomalia fetal incompatível com a vida.
Vale salientar que com o avanço da medicina, tornou-se possível detectar no feto a presença de anomalias genéticas que possam comprometer a vida da gestante e da criança após o nascimento, como por exemplo a anencefalia, uma anomalia resultante de uma má-formação cerebral. Diante dessa constatação muito se discute sobre a possibilidade de realizar um aborto nessa situação. Contudo em 2012 o Supremo Tribunal Federal, em sede da Arguição de Descumprimento de Preceito Federal ADPF-54, autorizou o aborto no caso de mulheres com diagnóstico de gravidez anencefálica.
De certa forma a descriminalização do aborto do feto anencefálico, nos mostra uma abertura no Poder Judiciário, considerando os avanços nos costumes e valores da sociedade, tal como no meio cientifico e tecnológico, porém está reforma é dificultada pelo Poder Legislativo, que ainda leva em conta questões culturais, religiosas e morais em um Estado que se diz laico.
Zimmer (2010) retrata que “o dogma religioso diz que a vida começa a partir da fecundação, e este tem sido o principal argumento para o aprofundamento da restrição e até mesmo à tentativa de se acabar com o direito definitivo da interrupção da gravidez.”
Sendo assim, a convicção de que existe vida desde a concepção foi criada para suprir os anseios da própria religião e, por isso, não deve sobrepor aos direitos das mulheres e da liberdade individual, além de que é um direito fundamental declarado na CF/88, não devendo, portanto, servir de base para as inúmeras decisões do Supremo Tribunal Federal.
Surgiu então a pergunta: “Quem tem direito à vida?”. Com o desenvolvimento da teoria Neomalthusiana no século XX, que resgatou a ideologia de Malthus, compreendendo que caberia ao Estado desenvolver medidas para conter o crescimento populacional, disseminando métodos anticoncepcionais, a resposta passou a ser que teriam direito à vida os seres adultos melhor adaptados e não os mais fracos, dentre os quais os fetos ainda não nascidos.
Galeotti explicita, sobre essa doutrina:
O neomalthusianismo é a doutrina que, acolhendo o suposto problema malthusiano da superpopulação, se propõe a resolvê-lo pela redução artificial dos nascimentos (anticoncepção, aborto e esterilização como meios principais). A verdade é que as práticas anticonceptivas já estavam se estendendo em grande escala, especialmente entre as classes altas na França, desde o final do século XVIII. Essa atitude encontrou na teoria de Malthus uma tranquilizadora justificativa “científica”, uma cobertura socioeconômica dos impulsos do hedonismo. Na nova síntese neomalthusiana, o homo economicus veio a se fundir com o homo animalis. Assim, no final do século XIX, a limitação da natalidade chegou com amplitude à Inglaterra, Alemanha e Suécia e, pouco a pouco, foi-se estendendo para quase todos os países desenvolvidos. As práticas neomalthusianas costumam começar pelas classes mais altas, que ainda que careçam de um aparente motivo econômico para isso, são abaladas pela propaganda devido ao seu senso de “responsabilidade” diante dos problemas sociais. Posteriormente, nos setores mais pobres, a limitação de nascimentos foi imposta pelas contínuas campanhas publicitárias. Assim ocorreu nos países subdesenvolvidos, onde o birth control foi introduzido após a Segunda Guerra Mundial, por iniciativa de alguns organismos da ONU e dos Estados Unidos (em particular a Fundação Rockefeller). São indicativas estas palavras de Johnson aos delegados da ONU, em 1965: “Procedam levando em conta que 5 dólares investidos na tarefa de limitar a população valem tanto como 100 dólares destinados ao progresso econômico”. (GALEOTTI, 2011, p. 13)
Nesse sentido, para compreender as dimensões do fenômeno e estabelecer uma crítica fundamentada sobre a questão, é essencial definir o termo e suas implicações, a partir da abordagem histórica realizada.
1.1 TIPOS DE ABORTAMENTO E ESTATÍSTICAS MUNDIAIS
O aborto pode ser classificado em espontâneo ou induzido e de tipo legal ou ilegal.
O aborto espontâneo é a perda da gestação antes da 20ª semana, quando o feto não está ainda em condições de sobreviver com garantias fora do útero materno. Ele se dá quando uma gravidez termina de maneira abrupta, sendo que entre oito e quinze por centro do total dos abortos são dessa forma. Existem muitos pesquisadores que dizem que, inclusive, cinquenta por cento do total de gravidezes podem terminar de forma espontânea. (ARNAUD, 2008).
Ainda de acordo com Arnaud (2008) a maioria dos abortos espontâneos, tanto os conhecidos como os desconhecidos, ocorrem nas primeiras doze semanas de gravidez e, em muitos casos, não requer nenhum tipo de intervenção médica. Da mesma forma, também a imensa maioria dos abortos induzidos ocorre no mesmo prazo. Entre as causas do aborto espontâneo se encontram, segundo a autora Lívia Krause Arnaud:
a) Alterações cromossômicas, que constituem a causa mais comum desta ocorrência. Mais de 80% dos abortos espontâneos se produz nas primeiras doze semanas e 50% se deve a alguma anomalia cromossômica. A possibilidade de anomalia cromossômica aumenta com a paridade e com a idade dos pais. A frequência se duplica de 12% em mulheres menores de vinte anos a 26% nas maiores de quarenta anos; b) Aborto Espontâneo Recorrente (AER), definido como a verificação de três ou mais abortos espontâneos clinicamente reconhecidos e dados epidemiológicos indicam que o risco de um novo aborto após um aborto espontâneo é o de 24%, aumentando para 40% após o quarto aborto consecutivo. Esse tipo de abortamento é associado com as alterações da artéria uterina, dentre outras causas. Entre os fatores anatômicos adquiridos estão as aderências intrauterinas, os miomas, a adenomiose, as cirurgias tubárias e a endometriose, que é uma doença que ocorre quando o tecido endometrial, que reveste internamente o útero e é expulso durante a menstruação, cresce fora dele. No caso dos miomas, diz que sua associação aos abortos espontâneos recorrentes pode obedecer a fatores mecânicos, como a redução da quantidade de sangue irrigado, alterações da placenta e contrações uterinas que determinam a expulsão fetal. Acredita-se que o aborto espontâneo recorrente em mulheres com endometriose pode ser devido à secreção de toxinas ou a uma maior produção de prostaglandinas, que geram contrações uterinas e alterações hormonais, embora não se saiba se o aborto é ocasionado pela endometriose ou por mecanismos imunológicos indiretos. c) Fatores fetais: análises comprovaram que 50% dos abortos espontâneos são causados por degeneração ou por ausência do embrião. Em 50 a 60% dos embriões e fetos expulsos de forma espontânea se observa alguma anomalia cromossômica. d) Problemas de saúde maternos em decorrência do uso de determinados medicamentos. e) Fumo, consumo de álcool, traumas e abuso no consumo de drogas. (ARNAUD, 2008).
O aborto terapêutico tem por objetivo evacuar cientificamente, através de manobras controladas, a cavidade uterina, esvaziando-a de todos os seus conteúdos. Este aborto é realizado por um médico especialista e são tomadas as medidas necessárias para salvaguardar a vida da paciente, que se encontra seriamente ameaçada. Realiza-se quando a vida do feto é considerada perdida (produto morto) ou representa um gravíssimo perigo para a vida da mãe. (ARNAUD, 2008)
O aborto frustrado é a retenção do embrião na cavidade uterina pelo menos durante quatro semanas após a sua morte, embora definir o tempo entre a morte e o diagnóstico não seja fácil e exige cuidado. De acordo com a idade gestacional, a mulher observa que os movimentos fetais desapareceram, que o crescimento uterino se detém e diminui’, que há regressão nas mudanças mamárias próprias da gravidez e ocorrem sangramentos que persistem por vários dias. (ARNAUD, 2008)
Acrescenta Arnaud (2008) que há também o aborto completo ou incompleto acompanhado de infecção, manifestada por febre, fluxo sanguinolento ou purulento e dor hipogástrica, um grave problema, por sua elevada incidência e pelas complicações que produz.
Arnaud (2008) também afirma que o aborto induzido ou provocado, segundo a OMS, é resultante de manobras praticadas deliberadamente, com o objetivo de interromper a gravidez.
Essas manobras podem ser realizadas pela própria grávida ou por outra pessoa, a pedido seu. Esse tipo de aborto comumente é realizado através de: a) Sucção ou aspiração: feito entre a sexta e a décima segunda semana, com a introdução de um tubo através da entrada do útero, conectado a um potente aspirador que destroça o corpo do feto enquanto o extrai. Após, com este tubo ou com uma cureta a placenta é cortada em pedaços, separada das paredes do útero e extraída. b) Dilatação e curetagem: utilizado no final do primeiro trimestre ou início do segundo, quando o feto é muito grande para ser extraído por sucção. É similar ao método anterior, mas ao invés de despedaçar o feto por aspiração, utiliza-se uma cureta com um aponta afiada que corta o feto em pedaços para facilitar sua extração. Esses pedaços são retirados com a ajuda de fórceps. c) Aborto pelas prostaglandinas: este potente medicamento é administrado para provocar violentas contrações no útero, com o objetivo de expulsar o feto prematuramente. d) Injeção salina: utilizada somente após dezesseis semanas de gravidez, extraindo-se o líquido amniótico que protege o feto e injetando-se, em seu lugar, uma solução salina concentrada que em algumas horas provoca contrações e a expulsão do feto. (ARNAUD, 2008).
O aborto legal é aquele realizado com a permissão das leis do país no qual se pratica, quando realizado com o consentimento da mulher, em um local que reúna todas as condições de segurança para sua vida. Já o aborto ilegal é realizado contra as leis do país, em circunstâncias clandestinas e perigosas em termos de morbidade e mortalidade materna. Geralmente, é praticado nas piores condições higiênicas e com escassas possibilidades de recorrer com urgência a um hospital em caso de complicações.
Dados do ano de 2015 apresenta que o número de abortos subiu em todo o mundo, chegando a cinquenta e seis milhões. O número de abortos no período de tempo compreendido entre 1990 e 1994 era entre quarenta e cinquenta milhões e esse aumento se deve, especialmente, ao aumento de casos de aborto nos países periféricos. (THE LANCET, 2015).
A revista científica The Lancet, em um artigo publicado em 2015, esclareceu ainda que a proibição do aborto, segundo os dados, aumenta o risco de abortos inseguros e clandestinos. Em países como o Brasil, Chile, Peru, Colômbia, República Dominicana, México, Filipinas, dentre outros, o número de mulheres hospitalizadas por aborto sem assistência apresentou estatísticas enormes entre os anos pesquisados (de 1990 a 1994): Brasil: 288.700; Chile: 31.900; Colômbia: 57.700; República Dominicana: 16.500; México: 106.500; Nigéria: 142.200; Peru: 54.200 e Filipinas: 80.100. Ou seja, o risco de morte é muito maior nos países em que o aborto é ilegal do que nos países em que é legal.
2 DIREITO AO CORPO FEMININO
A lógica deste trabalho é a inclusão da mulher como ser de direito, numa apresentação de questões de gênero e a abordagem de uma nova percepção do papel que a mulher ocupa na sociedade.
David Le Breton, em sua obra “A sociologia do corpo” de 2007 reconhece que há uma ideia de sacralidade no corpo humano, na vida e, ainda, aspectos morais, religiosos e dogmáticos que explicam a contínua e insistente forma de tentar controlar o corpo feminino, fruto do patriarcado balizador de uma suposta postura que a mulher deve exercer.
Com isso, a ideia é analisar a desigualdade de gênero e buscar maneiras de cumprir o princípio constitucional da igualdade, rompendo com o patriarcado, com a religiosidade aplicada nas decisões e, ainda, romper com valores sociais estabelecidos por homens, a excluir e punir os interesses das mulheres.
Como exemplo disto, podemos citar a aprovação do Projeto de Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE, na sigla em espanhol) que no dia 30 de dezembro de 2020 pelo Governo Argentino, onde foi ecoada pelo movimento feminista em todo o mundo, especialmente na América Latina, onde a massiva mobilização empreendida pelas militantes da Argentina é acompanhada, há anos, com muita admiração e esperança.
A legalização do aborto na Argentina foi aclamada por diversas organizações feministas no Brasil. Em um vídeo divulgado, a Marcha Mundial das Mulheres comemorou a aprovação da lei no país vizinho.
Segundo a militante Laura Salomé, a legalização do aborto significa:
“Uma missão cumprida. A campanha foi formada com este objetivo, para que o aborto legal fosse lei, para modificar o Código Penal e também para exigir que o Estado esteja presente e seja responsável pelo acesso igualitário à saúde, que é basicamente o que reivindicamos ao exigir a legalização do aborto” (Brasil de Fato | São Paulo (SP) | 30 de dezembro de 2020).
A nova lei modificou o artigo 85 do Código Penal da Argentina, que estabelecia a prisão de mulheres que recorressem à prática de interrupção da gravidez. O novo artigo define que “não é crime o aborto realizado com o consentimento da pessoa gestante até a 14ª semana do processo de gestação”. A lei inclui ainda a implementação da educação sexual integral, exigindo que o Estado Argentino estabeleça políticas ativas para promoção e fortalecimento da saúde sexual e reprodutiva.
No Brasil, é de praxe que apareçam adversários aos projetos da lei que propõem a legalização ou a descriminalização do aborto, invocando seus princípios cristãos para a afirmação de sua prática como um ato julgado como pecado. Essa posição é apresentada como uma maneira de reflexão para o pensamento de todos os membros das igrejas, onde raramente são mencionadas as diversidades existentes de forma particular na igreja católica.
Não obstante, quando é falado na liberdade que a mulher tem sobre seu corpo, é possível pensar que uma mulher não pode ser definida como livre se não possui o direito pleno de autonomia sobre seu próprio corpo, uma vez que as normas impostas pela sociedade limitam ações e traçam caminhos que igualam modelos de conduta coletiva, onde se julga saber o que de fato é adequado.
3 O ABORTO COMO QUESTÃO DE DIREITOS
A maior dificuldade ao analisar a questão do aborto no âmbito constitucional é o fato de que a própria Carta Magna não foi explícita ao tratar do assunto, cabendo às leis complementares a tarefa de dispor sobre o assunto. José Afonso da Silva ao tratar do assunto, dispõe que:
“A Constituição não enfrentou (o tema aborto) diretamente. Houve três tendências no seio da Constituinte. Uma queria assegurar o direito à vida, desde a concepção, o que importava em proibir o aborto. Outra previa que a condição de sujeito de direito se adquiria pelo nascimento com a vida, sendo que a vida intra-uterina, inseparável do corpo que a concebesse ou a recebesse, é responsabilidade da mulher, o que possibilitava o aborto. A terceira entendia que a Constituição não deveria tomar partido na disputa, nem vedando nem admitindo o aborto. Mas esta não saiu inteiramente vencedora, porque a Constituição parece inadmitir o abortamento. Tudo vai depender da decisão sobre quando começa a vida”. (SILVA, 2014, p. 205.)
Neste mesmo sentido Ricardo Cunha Chimenti (2008) e outros, salientam que:
O Constituinte de 1988, não esclareceu se garante o direito à vida desde a concepção ou somente após o nascimento com vida. Não tendo optado por nenhuma das duas hipóteses, significa que a questão pode ser tratada pela legislação infraconstitucional. Foi o que ocorreu quando o art. 2º do CC/2002 assegurou, desde a concepção, os direitos do nascituro. Reconheceu-se, portanto, a existência da vida intra-uterina. (CHIMENTI, Ricardo Cunha; SANTOS, Marisa Ferreira dos; ROSA, Márcio Fernando Elias; CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Constitucional. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva. 2008)
A omissão da CF/88 dá margem a uma ampla discussão doutrinária e social, uma vez que, cabe à legislação infraconstitucional decidir pela proteção da vida intrauterina. A hierarquia de normas leva ao questionamento da sobreposição ou não dos direitos fundamentais, tais quais o direito à liberdade, dignidade da pessoa humana e a autodeterminação.
O direito à dignidade da pessoa humana consiste em um:
(...) valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável na própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres vivos.(MORAES, P. 20)
A proibição do aborto simboliza uma clara limitação à dignidade da pessoa humana.
A mulher que se encontra em situação de gravidez, teria, ao menos em tese, o direito de optar por ter ou não o fruto dessa gravidez. Decidir pela continuidade da gestação ou não, representaria a autodeterminação consciente em sua expressão fática.
Todavia, assegurar a dignidade da pessoa humana nesse caso, representaria da mesma forma, negar o direito à vida ao nascituro. Encontra-se aí, um claro conflito de direitos fundamentais.
O aborto recai sobre um ponto extremamente delicado que é o direito à vida, sendo este um direito fundamental explícito em nossa Constituição Federal, que em seu art. 5º, caput, destaca,
Art. 5º. – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
O destaque de tal direito assim como o tratamento constitucional dado pelo nosso ordenamento jurídico não deixa dúvidas quanto à inviolabilidade do direito à vida. Para a efetiva realização deste direito fundamental é importante se definir qual o parâmetro que o direito adota para definir vida.
Segundo José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editores, 19ª ed., 2001, pág. 200):
Vida, no contexto constitucional (art. 5º, caput), não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante autoatividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte. Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida. (AFONSO Da Silva, 2001, P. 200)
Contudo, é importante lembrar que a questão do início da vida é tema de ampla discussão na doutrina, mas não podemos dizer que se encontra pacificada hoje.
4 ASPECTOS PENAIS DO ABORTO
A penalização do aborto representa uma proteção da vida do nascituro, encontrando-se do art. 124 até o art. 126, do Código Penal com a seguinte redação:
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: (Vide ADPF 54)
Pena - detenção, de um a três anos.
Aborto provocado por terceiro
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de três a dez anos.
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: (Vide ADPF 54)
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.
A Constituição Federal, ao prever como direito fundamental a proteção à vida e dignidade, abrange não só a vida extrauterina, mas também a intrauterina, vez que se qualifica com verdadeira expectativa de vida exterior.
No pensamento de Kant, destaca que a proteção à vida, justamente porque não é instrumento, senão um fim em si mesmo:
“No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade. (...) o que se faz condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor interno, e isso quer dizer, dignidade. Ora, a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmos, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador do reino dos fins. Por isso, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas providas de dignidade” (KANT, 2004, p. 65).
O pensamento kantiano defende que o homem não pode ser rebaixado à condição de coisa; defende o valor do homem independentemente de sua condição social, raça, nacionalidade ou qualquer outra característica. Sedimentou-se a orientação de que a dignidade não é um direito concedido pelo Estado ao indivíduo, mas um atributo próprio do ser humano, peculiar a sua natureza. Basta existir para que seja considerado digno.
No entanto, é sabido que nenhum direito fundamental é absoluto, dessa forma, existindo o conflito entre direitos fundamentais, devem ser utilizados a ponderação e do princípio da razoabilidade para se decidir por um ou outro direito, que venha a se sobrepor.
O Código Penal tratou em seu art. 128 possíveis conflitos sobre a possibilidade do aborto terapêutico, o aborto sentimental ou o humanitário, nos seguintes dizeres,
Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
No primeiro inciso o Código Penal exime de culpa o aborto terapêutico realizado para salva a vida da gestante, quando esta gravidez resultar em risco para a própria vida da mãe, sendo um conflito de direitos à vida entre a mãe e o próprio nascituro. Já o segundo inciso trata o conflito entre o direito à vida, à dignidade humana e a saúde mental, despenalizando o aborto em casos de gravidez que resulte de estupro, sendo este o aborto sentimental ou humanitário.
No início de 2012 o Supremo Tribunal Federal passou a incluir uma terceira situação para este rol de excludentes de ilicitudes para o crime de aborto. Podendo ser incluído na categoria do aborto sentimental ou humanitário, o STF entende não ser crime o aborto de fetos anencéfalos (com má-formação do cérebro e do córtex - o que leva o bebê à morte logo após o parto).
O ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, salientou que “cabe à mulher, e não ao Estado, calcular valores e sentimentos de ordem estritamente privada, para deliberar pela interrupção, ou não, da gravidez (de anencéfalos)”. Mostrando mais uma vez o conflito entre direitos fundamentais.
Sendo assim, o aborto é entendido como a expulsão do produto da concepção antes do parto. Ou seja, no aborto, a proteção legal se volta para o produto da concepção, ou seja, o feto ou embrião vivo.
Esse ato, em regra, é ilegal, sendo criminoso o ato de retirar do útero de uma mulher, o feto ou o embrião vivo. Como, porém, toda regra tem sua exceção, a lei considera lícito o aborto se realizado quando a gravidez coloca em risco a vida da gestante ou é resultante de estupro ou atentado violento ao pudor. Nessas situações, o feto ou embrião vivo pode ser, impunemente, retirado do útero da gestante. É o que dispõe o artigo 128 do Código Penal descrito acima.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo tratou do tema do aborto, especialmente em relação ao direito à escolha, buscando determinar as concepções sobre o aborto, para a conquista desse objetivo, o estudo partiu da determinação da evolução histórica, do conceito, dos tipos de aborto e da legislação específica sobre o tema.
Uma das questões ressaltada no estudo é que o não atendimento da decisão da mulher sobre como dispor de seu corpo, sobre escolher o momento em que quer e em que pode ser mãe, quer por convicções morais e religiosas, quer por impedimento legal, somente provoca sofrimentos desnecessários à mulher ou, mais grave que isso, a busca por um aborto clandestino, colocando em grave risco sua saúde e sua vida.
Em conclusão, portanto, pode-se afirmar que o aborto é uma questão muito difícil e polêmica, porque as discussões sobre o tema dizem respeito diretamente à vida de dois seres cujos direitos se tornam diretamente conflitante. Por essa razão, imprimem-se nessa reflexão aspectos importantes em termos de direitos, já que, muitas vezes, os direitos das mulheres no que se refere à saúde, à liberdade de escolha e à igualdade são colocados em segundo plano.
Compreender o aborto como direito à escolha, no âmbito do Direito, portanto, tem como esfera ética e política a transformação da ordem existente, a superação da sociedade patriarcal, um projeto que supera o trabalho social e que requer a construção de um projeto maior de sociedade mais justa.
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