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Responsabilidade tributária objetiva

14/11/2006 às 00:00
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O presente estudo pretende, em rápidas pinceladas, examinar a questão da responsabilidade tributária objetiva, à luz das disposições do Código Tributário Nacional, notadamente do seu art. 124, II e verificar eventual incompatibilidade com a ordem jurídica global.

Logo no início da vigência do CTN, Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, inúmeros especialistas proclamaram a responsabilidade objetiva por infrações tributárias, que teria sido agasalhada pelo seu art. 136 in verbis:

‘Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato’.

A expressão ‘independe da intenção do agente ou do responsável’ conduziu parcela da doutrina à teoria da responsabilidade sem culpa subjetiva do agente. As infrações tributárias teriam natureza meramente formal.

Na verdade, a aludida expressão está a significar que independe da vontade livre e consciente de praticar a conduta antijurídica, ou seja, independe de dolo. A norma afasta o dolo, mas não afasta a culpa.

Conforme assinalamos, ‘enxergar no art. 136 do CTN a responsabilidade objetiva, sem consideração do indispensável aspecto da voluntariedade, acabaria por neutralizar a função maior das sanções estatuídas na legislação tributária, as quais visam assegurar a arrecadação de tributos, por meio de intimidações. Para que surta efeito a função intimidatória, obviamente, é necessário que o agente tenha a possibilidade de, livremente, não trilhar o caminho amparado pelo Direito’ [01].

Examinemos a figura da responsabilidade solidária de que cuida o art. 124, II do CTN:

‘Art. 124. São solidariamente obrigadas:

......................................................

II – as pessoas expressamente designadas por lei.’

Pois bem, com fundamento nesse inciso legal, a Lei nº 8.620/93 prescreveu em seu art. 13:

‘Art. 13. O titular da firma individual e os sócios das empresas por cotas de responsabilidade limitada respondem solidariamente, com seus bens pessoais, pelos débitos junto à Seguridade Social.

Parágrafo único. Os acionistas controladores, os administradores, os gerentes e os diretores respondem solidariamente e subsidiariamente, com seus bens pessoais, quanto ao inadimplemento das obrigações para a Seguridade Social, por dolo ou culpa’.

Quanto ao parágrafo único nada temos a objetar. Além da exigência de dolo ou culpa, a responsabilidade dos agentes aí mencionada tem caráter subsidiário, isto é, pressupõe inexistência ou insuficiência de bens da empresa devedora.

O problema está no caput, que tudo indica ter estatuído uma hipótese de responsabilidade solidária objetiva, isto é, sem culpa ou dolo. E assim vem sendo interpretado pelos agentes do fisco que, invariavelmente, arrolam, de forma desmotivada, os sócios de empresas como responsáveis solidários nos autos de infração lavrados contra empresa devedora.

Pergunta-se: essa norma do caput é constitucional? Ela pode ser interpretada isoladamente?

A ordem jurídica global não aceita a responsabilização de quem quer que seja sem culpa subjetiva. Abre-se uma exceção em se tratando de entidades políticas ou concessionárias de serviços públicos nos termos do § 6º do art. 37 da CF:

‘§ 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa’.

Esse preceito só exige dolo ou culpa na ação de regresso, vale dizer, na ação direta contra o poder público não há necessidade de indagação da culpa ou dolo. É a chamada responsabilidade objetiva do Estado de que cuidam os tratadistas.

Pois bem, se o texto constitucional abriu essa exceção é porque a ordem jurídica global repele a responsabilização sem culpa ou dolo.

De fato, o direito comum não admite imputação a não ser em caso de comprovada culpa do agente. Somente a partir dos nexos causais apurados é que se pode fixar a responsabilidade solidária. A lei não pode exigir mais do que a situação jurídica permite.

Lei especial não pode afastar o fundamento jurídico adotado pelo direito comum. A lei tributária não pode instituir responsabilidade solidária dos sócios da empresa, confundindo a pessoa jurídica com a pessoa física, cada qual com personalidade jurídica própria nos termos do direito comum.

Lembro-me que na da década de 90 patrocinei uma causa a favor de uma revendedora de veículos, indevidamente incluída no pólo passivo de uma ação indenizatória proposta pelo adquirente de automóvel contra a montadora de veículos, alegando defeito de fabricação, amparando sua pretensão no art. 18 do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece a responsabilidade solidária dos fornecedores de produtos de consumo duráveis e não duráveis pelos vícios de qualidade.

Repelida a ilegitimidade passiva ad causam, que argüimos, a revendedora foi condenada em 1ª instância juntamente com a fabricante do veículo. A decisão fundamentou-se na responsabilidade solidária objetiva de que cuida o art. 18 do CDC, pelo que, seria irrelevante o fato de o consumidor não ter apresentado o veículo ao revendedor, para exame do defeito alegado.

A decisão monocrática foi reformada pelo v. acórdão do Tribunal de Justiça, que deu provimento ao apelo da revendedora, afastando a responsabilidade solidária objetiva. Não houve interposição de recurso especial nessa parte. Segue-se a transcrição da Ementa do julgado para melhor compreensão:

‘Compra e venda de veículo – Vício de qualidade – Art. 18 do Código de Defesa do Consumidor – A solidariedade do revendedor não se sujeita à responsabilidade objetiva, mas depende de prova de culpa – Pelo vício de qualidade responde o fabricante, que deverá substituir o bem por outro, desde que o defeito não seja sanado em trinta dias. Ação procedente contra a montadora e improcedente contra o revendedor. Apelo deste provido integralmente. Provimento parcial do apelo do fabricante, para reduzir a verba honorária.’ (Ap. nº 273.147.1/1-00, Rel. Des. Alexandre Germano, DOE de 9-6-97).

Assim, aquele art. 18 do Código de Defesa do Consumidor sofreu interpretação dentro do Sistema Jurídico.

Da mesma forma, o art. 124, II do CTN não deve ser interpretado isoladamente, sob pena de caracterizar sua inconstitucionalidade, mas examinado dentro do Sistema Jurídico, mais precisamente, em conexão com os arts. 134 e 135 do CTN, que cuidam, respectivamente, da responsabilidade solidária dos sócios e da responsabilidade pessoal dos sócios, diretores, gerentes etc, conforme textos adiante transcritos:

‘Art. 134. Nos casos de impossibilidade da exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:

..................................................

VII – os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas’.

‘Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

I – As pessoas referidas no artigo anterior;

............................................................

III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado’.

Como se vê, ambos os dispositivos exigem, não apenas o nexo causal entre o crédito tributário e a conduta do agente, como também ação ou omissão culposa ou dolosa.

Na responsabilidade solidária do sócio de que trata o art. 134, três são os requisitos: a) o estado de liquidação da sociedade; b) a impossibilidade de o contribuinte satisfazer a obrigação principal; c) fato de o responsável solidário ter uma vinculação indireta, por meio de ato omissivo ou comissivo, com a situação que constitui o fato gerador da obrigação tributária.

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Na responsabilidade pessoal do art. 135, que se opera por substituição, os sócios, diretores, gerentes e representantes de pessoas jurídicas privadas só respondem pelos créditos tributários que resultem exclusivamente de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos. Não é o caso de tributo escriturado, declarado e não recolhido no prazo legal, pois, neste caso, o tributo tem origem em operação regular.

Resulta do exposto, que o art. 13 da Lei nº 8.620/93 deve merecer interpretação que se harmonize com os preceitos do Código Tributário Nacional, pois a matéria concernente à obrigação tributária está sob reserva de lei complementar (art. 146, III, b da CF). E o art. 124, II do Código Tributário Nacional, no qual se funda o art. 13 em questão, por sua vez, deve ser interpretado em harmonia com os seus artigos 134 e 135 daquele Código, sob pena de inconstitucionalidade.

Nesse sentido caminha a jurisprudência do STJ, como se verifica das ementas a seguir transcritas:

‘EMENTA.

TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. DÉBITOS PARA COM A SEGURIDADE SOCIAL. (SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LTDA. REDIRECIONAMENTO. RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES. SOLIDARIEDADE. PREVISÃO PELA LEI 8.620/93, ART. 13. INTERPRETAÇÕES SISTEMÁTICA E TELEOLÓGICA. CTN, ARTS. 124, II, E 135, III. CÓDIGO CIVIL, ARTS. 1.016 E 1.052. ENTENDIMENTO DA 1ª SEÇÃO DO STJ.

1. Tratam os autos de agravo de instrumento interposto pelo INSS em face de decisão proferida pelo juízo de primeiro grau que indeferiu pedido de inclusão dos sócios gerentes no pólo passivo da execução fiscal. O Tribunal de origem, sob a égide dos artigos 124, parágrafo único, 135, do CTN e 13 da Lei nº 8.620/93, reforma a decisão de primeiro grau. Recurso especial interposto por BWU Vídeo Ltda. apontando negativa de vigência dos artigos 135, III, do CTN e 13 da Lei nº 8.620/93, além de divergência jurisprudencial.

2. A solidariedade prevista no art. 124, II, do CTN, é denominada de direito. Ela só tem validade e eficácia quando a lei que a estabelece for interpretada de acordo com os propósitos da Constituição Federal e do próprio Código Tributário Nacional.

3. Inteiramente desprovidas de validade são as disposições da Lei nº 8.620/93, ou de qualquer outra lei ordinária, que indevidamente pretendem alargar a responsabilidade dos sócios e dirigentes das pessoas jurídicas. O art. 146, inciso III, b, da Constituição Federal, estabelece que as normas sobre responsabilidade tributária deverão se revestir obrigatoriamente de lei complementar.

4. O CTN, art. 135, III, estabelece que os sócios só respondem por dívidas tributárias quando exercerem gerência da sociedade ou qualquer outro ato de gestão vinculado ao fato gerador. O art. 13 da Lei nº 8.620/93, portanto, só pode ser aplicado quando presentes as condições do art. 135, III, do CTN, não podendo ser interpretado,exclusivamente, em combinação com o art. 124, II, do CTN.

5. O teor do art. 1.016 do Código Civil de 2002 é extensivo às Sociedades Limitadas por força do prescrito no art. 1.053, expressando hipótese em que os administradores respondem solidariamente somente por culpa quando no desempenho de suas funções, o que reforça o consignado no art. 135, III, do CTN.

6. Não há como se aplicar à questão de tamanha complexidade e repercussão patrimonial, empresarial, fiscal e econômica, interpretação literal e dissociada do contexto legal no qual se insere o direito em debate. Deve-se, ao revés, buscar amparo em interpretações sistemática e teleológica, adicionando-se os comandos da Constituição Federal, do Código Tributário Nacional e do Código Civil para, por fim, alcançar-se uma resultante legal que, de forma coerente e juridicamente adequada, não desnature as Sociedades Limitadas e, mais ainda, que a bem do consumidor e da própria livre iniciativa privada (princípio constitucional) preserve os fundamentos e a natureza desse tipo societário.

7. O princípio normativo e geral é de que a responsabilidade dos sócios de sociedade limitada ou dos acionistas de sociedade anônima é restrita à participação que possuam na empresa. No primeiro caso, pelo montante representado pelas quotas, no segundo, pela expressão financeira do valor acionário no capital social, exceção que se faz, tão-somente, a casos de constatada ocorrência de culpa ou dolo.

8. Entendimento firmado pela 1ª Seção desta Corte, por ocasião do julgamento, em 28/09/2005, do Recurso Especial nº 717.717/SP.

9. Recurso especial provido.’ (Resp 811692/SP, T1., Rel. Min. José Delgado, DJ de 02-05-2006, p. 269 – doc. 56).

‘EMENTA.

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO - RECURSO ESPECIAL - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - ERRO MATERIAL - ACOLHIMENTO - EXECUÇÃO FISCAL - SÓCIO-GERENTE - LEI 8.620/93, ART. 13 - CTN, ART. 135, III - INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA - RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA - PRECEDENTE DA EG. 1ª SEÇÃO (RESP 717.717/SP).

- Constatada a existência de erro material no acórdão embargado, há que se acolher os embargos de declaração.

-Este Tribunal firmou o entendimento de que os sócios-gerentes são responsáveis, por substituição, pelos créditos referentes a obrigações tributárias decorrentes da prática de ato ou fato eivado de excesso de poderes ou com infração de lei, contrato social ou estatutos, nos termos do art. 135, III, do CTN, porém, dependente de comprovação. Por isso, o simples inadimplemento de obrigações tributárias não caracteriza infração legal.

- Em se tratando de débitos com a Seguridade Social, o redirecionamento da dívida para os sócios da empresa executada depende, também, da observância das condições estabelecidas no art. 135, III, do CTN.

- Embargos de declaração acolhidos sem, contudo, alterar a conclusão do julgamento.’ (Resp. nº 7204077/SP, T2., Rel.Min. Francisco Peçanha Martins, DJ de 11-04-2006, p. 242 – doc. 57).

‘EMENTA.

TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. RESPONSABILIDADE PESSOAL DO SÓCIO-COTISTA. DÉBITOS DA SEGURIDADE SOCIAL CONTRAÍDOS PELA SOCIEDADE. LEI 8.620/93, ART. 13. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. INTERPRETAÇÃO. MATÉRIA PACIFICADA NO ÂMBITO DA 1ª SEÇÃO. SISTEMÁTICA DO ART. 135 DO CTN. FALTA DE PAGAMENTO DE TRIBUTO. NÃO-CONFIGURAÇÃO, POR SI SÓ, NEM EM TESE, DE SITUAÇÃO QUE ACARRETA A RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DOS SÓCIOS.

1. A 1ª Seção do STJ, no julgamento do RESP 717.717/SP, Min. José Delgado, sessão de 28.09.2005, consagrou o entendimento de que, mesmo em se tratando de débitos para com a Seguridade Social, a responsabilidade pessoal dos sócios das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, prevista no art. 13 da Lei 8.620/93, só existe quando presentes as condições estabelecidas no art. 135, III do CTN.

2. Para que se viabilize a responsabilização patrimonial do sócio-gerente na execução fiscal, na sistemática do artigo 135, III do CTN, é indispensável que esteja presente uma das situações caracterizadoras da responsabilidade subsidiária do terceiro pela dívida do executado.

3. Segundo a jurisprudência do STJ, a simples falta de pagamento do tributo não configura, por si só, nem em tese, situação que acarreta a responsabilidade subsidiária dos sócios (EREsp 374139/RS, Primeira Seção, Min. Castro Meira, DJ de 28.02.2005).

4. Recurso especial a que se nega provimento, com ressalva de ponto

de vista pessoal do relator.’ (Resp. nº 815369/MT, T1, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 10-04-2006, p. 161 – doc. 58).

Por oportuno, esclareça-se que essa questão da responsabilidade solidária nada tem a ver com a matéria concernente à desconsideração da pessoa jurídica por abuso de direito, hipótese em que o juiz poderá decidir, a requerimento da parte interessada, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica, nos termos do art. 50 do Código Civil e do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor.


Nota

01 Cf. nosso Direito tributário e financeiro, 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.496.

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Responsabilidade tributária objetiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1231, 14 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9161. Acesso em: 23 dez. 2024.

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