VI - O quorum do novo critério de admissibilidade do Recurso Extraordinário
A Carta de 1969, alterada pela Emenda n. 7/1977, deu força de lei ao Regimento Interno do Supremo Tribunal (art. 119, § 1º):
"As causas a que se refere o item III, alíneas a e d, deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal."
Com a introdução da "relevância da questão federal", o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF) foi adaptado (arts. 328 e 329). À evidência, a argüição da relevância era um prius em relação ao julgamento do recurso extraordinário (art. 328, § 5º VI). No mínimo quatro ministros deveriam manifestar-se a favor da relevância (inc. VII). Da não-admissão não cabia recurso. A "lista" (mais um empréstimo...) dos feitos admitidos ou inadmitidos era divulgada pela imprensa oficial (inc. VIII).
O novo ordenamento constitucional, inaugurado em 1988, por não ter mais tocado no instituto, voltou à nossa tradição: o critério para o conhecimento do recurso extraordinário seria objetivo. Achava-se na própria Constituição.
Com a Emenda Constitucional n. 45/ 2004, volta com roupagem nova o critério da relevância. O texto constitucional novo não defere mais ao Supremo, como acontecia com a Emenda 7/1977, o poder de estabelecer em seu Regimento regras legais sobre o assunto. Diz o § 3ª do inciso III do art. 102:
"No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros"
Antes, pela Carta de 1969, alterada pela EC n. 7/1977 e pelo RISTF, o recurso extraordinário só seria admitido se contasse com o voto favorável de, no mínimo, quatro dos onze ministros do Tribunal. Hoje, não. Aparentemente o critério é outro. O critério é de quorum negativo. A regra, no tocante ao discretionary power, é: "todo recurso extraordinário que satisfaça os requisitos legais será admitido, a menos que 2/3 dos ministros entendam que as questões levantadas pelo recorrente não têm repercussão geral". Pelo menos na aparência, hoje ficou mais fácil ter-se o recurso admitido do que antes, pela ECn. 7/1977.
VII - Conclusão
Como não poderia deixar de ser, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, as regras de admissibilidade do extraordinário deverão ser mudadas para que as coisas possam permanecer do mesmo jeito.
Todos aqueles que se interessam pela história da Suprema Corte dos Estados Unidos sabem que o Presidente Franklin D. Roosevelt, diante das sucessivas podas em seu New Deal por uma Corte conservadora e empedernida, enviou ao Congresso, em março de 1937, um projeto de lei que aumentava o número de cargos da Suprema Corte: quando um juiz fizesse 70 anos e não se aposentasse, automaticamente ficava criado mais um cargo de justice até o limite de 15. Esse projeto recebeu o nome de Court-Packing Bill (Cf. ABRAHAM, 1986, p. 76). Houve muita reação, ao argumento de que se tratava de "uma ameaça à independência do judiciário federal" (a threat to the independence of the federal judiciary) (CHEMERINSKY, 1997, p. 186). O projeto de lei não foi para frente, mas as coisas se acomodaram com aposentadorias voluntárias, mudança de posição e pressão social. Desse modo, o aumento de juizes da Suprema Corte de 9 para 15, por exemplo, não seria um total despropósito. Mais writs of certiorari poderiam ser admitidos e, conseqüentemente, providos. Pela relevância do Judiciário na vida do americano, a aceitação seria fácil se o projeto partisse da própria Corte. O que lá não se tolera é a intrusão de poderes estranhos que atentem contra a independência do juiz, que começou na Idade Média com as velhas cortes inglesas que criaram raízes em Westminster.
E no Brasil? Caminhos já foram apontados há muito: transformação de nosso Supremo Tribunal Federal em tribunal constitucional, ou aumento de número de juizes7. Se o número de feitos continua excessivo (daí a Relevância e a Súmula Vinculante), por que não se começar pelo aumento do número de juizes? A Alemanha, Estado federal como o nosso, com uma população estimada em menos de 83 milhões de habitantes8, dispõe de um Tribunal Constitucional Federal ligado ao Poder Judiciário (Die Rechtsprechung), com competência bem menor do que o nosso Supremo Tribunal Federal. Seu papel relevante está no julgamento da Verfassungsbeschwerde (defesa de direitos fundamentais e assemelhados) e no controle da constitucionalidade de normas (Normenkontrolle). Pois bem, mesmo assim, o Bundesvetfassungsgericht tem 16 juizes, com mandato (Amtszeit) de 12 anos (Cf. JARASS; PIEROTH, 1992, p. 872). A República Portuguesa, com população menor do que a cidade de São Paulo9, conta um Tribunal Constitucional (art. 222º, 1), que não integra o Poder Judiciário, com 13 juizes10. A Espanha, com uma população de 39 milhões de habitantes11, ou seja, pouco mais do dobro da população de Minas Gerais, dispõe de um Tribunal Constitucional (art. 159) composto de 12 juizes com mandato de 9 anos12. O Tribunal Constitucional da Áustria (Verfassungsgerichtshof) é formado de 14 juizes13. A população austríaca é menor do que a da cidade de São Paulo14. A Itália, com população aproximada de 57 milhões e meio15, dispõe de uma Corte Costituzionale formada de 15 juizes (art. 135). Por último, o Conseil Constitutionnel francês, com 9 juizes (art. 9)16, com mandato de 9 anos, serve a uma população de menos de 58 milhões e meio de habitantes17.
Se a população brasileira já ultrapassou a casa dos 180 milhões18, penso que o número de juizes de nosso Supremo Tribunal Federal bem que poderia ser, com grande vantagem para os jurisdicionados, ampliado. A alegação de que o maior número de juizes dificultaria a fixação da jurisprudência acha-se na contramão de outras cortes ou tribunais constitucionais estrangeiros, como se acabou de ver, ainda que pela rama. Também não me parece consistente dizer que o brasileiro, por não ter a politização do europeu, pouco se preocupa com as "questões federais", ou melhor dizendo, com as "questões constitucionais". Ao contrário, a demora da prestação jurisdicional é sempre um fator importante que pesa no animus litigandi. Por outro lado, ainda assim, o número de recursos extraordiários não conhecidos atesta o contrário.
Notas
1 A tradução foi livre. No original: "(...) the judiciary must change with the changing times" (Disponível em: http://www.lectlaw.com/files/ jud38.htim. Acesso em: 2 set. 2005).
2 Admitia-se, não obstante, que julgado de tribunal distrital federal colegiado (three-judge district coiirts) subisse como mandatory appeal.
3 "Art. 9º Paragrapho único. Haverá também recurso para o Supremo Tribunal Federal das sentenças definitivas proferidas pelos tribunaes e juizes dos Estados (...)".
4 "Na essência, o nosso recurso extraordinário é idêntico ao writ of error dos norte-americanos. O que differença um do outro, é que, competindo pela Constituição norte-americana aos Estados legislar sobre o direito civil, commercial e penal, e sendo essa attribuição entre nós conferida ao Congresso Nacional, maior ha de ser necessariamente em nosso paiz o numero de casos em que tal recurso pôde e deve ser interposto; pois, sua funcção no Brasil consiste em manter, não só a autoridade da Constituição e de algumas leis federaes, como a autoridade, e consequentemente a unidade, do direito civil, commercial e penal, em todo o território da União" (LESSA, 1915, p. 103 et seq.).
5 "O Supremo Tribunal Federal julgará os recursos extraordinários das sentenças dos tribunaes
dos Estados, ou do Distrito Federal, nos casos ex pressos nos artigos 59, § V e 61 da Constituição e
no artigo 9º, § único, letra c, do Decreto n. 848, de 1890, pelo modo estabelecido nos artigos 99 e 102
do seu regimento."
6 A Judiciary Act de 1789 não falou em procedimento criminal. Em 1917, todavia, inicia um período de regulamentação do processo penal pelo Congresso (Cf. MAYERS, 1955, p. 137). O conceito de
codificação nos Estados Unidos é diferente do nosso. Está mais para "compilação" do que mesmo
para codificação. Existe um Federal Rules of Criminal Procedure, uma espécie de Código de Processo
Penal, como também existe um "código" penal federal.
7 Ver o resumo de Corrêa (1987, p. 42 et seq.).
8 Cf. Disponível em: http://www.destatis.de/presse/ englisch/pm2003/p2300022.htm. Acesso em: 20 set. 2005.
9 Pelo censo de 2004:10.536 habitantes. Cf. Disponível em: http://www.portugal.gov.pt/Portal/ PT/Portugal. Acesso em: 20 set. 2005.
10 Texto integral após a IV Revisão Constituição (2004). Disponível em: http://www.presidencia
republica.pt/pt/republica/constituicao/crp_l.html. Acesso em: 20 set. 2005.
11 Disponível em: http://www.language. iastate.edu/sp304/es/espana.htm. Acesso em: 20 set. 2005.
12 Disponível em: http://www.congreso.es/funciones/constitucion/titulo_9.htm. Acesso em: 20 set. 2005.
13 Disponível em: http://www.vfgh.gv.at/ ans/vfgh-site/vfgh/organisation.html Acesso em: 20 set. 2005.
14 Cerca de 8 milhões e 100 mil habitantes. Cf.Disponível em: http://www.ceja.educagri.fr/por/pays/autr.htm#sol. Acesso em: 20 set. 2005.
15Disponível em: http://agripiiin.se/eu/default_sp.asp?euobjektID=20&heading=objekt&allaegenskaper=yes&frm
Compare=yes&eugruppID=-1. Acesso em: 30 set. 2005.
16 Disponível em: http://www.conseil-constitutionnel.fr/textes/constit.htm#Titre%20VII. Acesso em: 20 set. 2005.
17 Disponível em: http://www.guiadelmundo.com/paises/france/poblacion.html. Acesso em: 20 set. 2005.
18 Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidência/noticias/noticia_impressao.php?id_noticia
=207. Acesso em: 20 set. 2005.
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