I - INTRODUÇÃO
Em 18/10/2006, o jornal "Valor Econômico" publicou matéria intitulada "Tribunal superior tem histórico de viradas na jurisprudência", dando conta dos reveses que os entendimentos jurisprudenciais dos tribunais superiores vêm sofrendo atualmente. Entre as teses tributárias exemplificadas no texto jornalístico, foram citadas a isenção da COFINS para prestadores de serviços (Súmula nº 276 do STJ), bem como o crédito-prêmio do IPI.
É possível ler a matéria por dois ângulos. O empresário certamente vislumbrou o impacto econômico dessas modificações de posicionamentos sob a ótica de suas finanças. Não é difícil augurar que o empresário leitor do jornal logo se pôs a fazer contas e verificar como a nova jurisprudência irá refletir em seus balanços e em seus resultados.
Mas e como o operador do direito pode visualizar o problema retro identificado? Deve ele se restringir à indignação pessoal e combater, pontualmente, os posicionamentos que lhes forem desfavoráveis, ou é possível "ler" a questão de forma mais ampla?
É esta a tarefa que nos propomos a desbravar doravante.
II – A IDENTIFICAÇÃO DO PROBLEMA
É sabido que os tribunais superiores vêm revendo seus antigos posicionamentos jurisprudenciais. Mas não é só. Referidas mudanças muitas vezes oscila. em um curto período de tempo e, não raras oportunidades, confirmam e negam, sucessivamente, o entendimento antes firmado.
Isto fica claro quando se toma como exemplo o entendimento do STJ acerca da aplicação do índice à correção monetária das demonstrações financeiras do ano base 1990: se IPC ou o BTNF. A escolha do índice reflete diretamente na apuração do lucro líquido daquele período que, como é cediço, consiste no ponto de partida à apuração do lucro real (base de cálculo do IRPJ e CSLL).
Inicialmente, o STJ tinha entendimento pacífico quanto à aplicabilidade do IPC como índice de correção monetária do período de 1990. De fato, consoante se verifica do REsp nº 325.882/SP, publicado no DJ de 25/02/2002, o STJ foi expresso em reconhecer que a Primeira Seção havia sedimentado o entendimento de que as disposições da Lei nº 8.200/91 retroagem ao ano base 1990.
Este posicionamento foi ratificado em vários outros julgados do STJ naquele ano, conforme se extrai das decisões proferidas no REsp nº 133.069 (DJ de 04/03/2002), REsp nº 199.621 (DJ de 03/06/2002), sendo mantido em 2003, 2004 e início de 2005 (vide REsp nº 462.695, DJ de 10/03/2003, AGREsp nº 140.127, DJ de 05/05/2004, e REsp nº 131.496/RS, DJ de 14/02/2005)
Ocorre que, em meados de 2005, o STJ modificou seu posicionamento. Realmente, nos termos do AGREsp nº 538.184/MG, DJ de 06/06/2005, aquela Corte, interpretando a seu modo o RE nº 201.465-6, de lavra do Min. Nelson Jobim, passou a entender que as disposições da Lei nº 8.200/91 tão somente reconheceram os efeitos econômicos decorrentes da metodologia de cálculo da correção monetária, de modo que não é lícita sua aplicação retroativa. Com estes argumentos, ficou decidido que o IPC não poderia ser utilizado como fator de atualização do BTNF na correção monetária das demonstrações financeiras do balanço do ano base 1990.
Mas, em acórdão proferido pela 2ª Turma no AGREsp nº 439.172, o STJ proferiu outro entendimento, que pode ser sintetizado em dois breves tópicos: (i) o entendimento da 1ª Seção do E. STJ é no sentido de que o IPC é o índice aplicável à correção monetária das demonstrações financeiras do ano base de 1990 para fins de apuração do IRPJ, CSLL e ILL; (ii) as alegações de que o E. STJ teria modificado seu entendimento não procedem porque a decisão do E. STF no RE nº 201.465-6/MG, em verdade, teve reflexos tão-somente quanto ao aspecto da devolução escalonada e não sobre a fixação deste ou daquele índice.
Tudo indicava que este seria o entendimento que de fato se consagraria vencedor. Tanto assim que, no REsp nº 210.261/ES (DJ de 06/03/2006), foi decidido que o IPC era mesmo o índice aplicável à atualização do BTNF para correção das demonstrações financeiras do ano base 1990.
Não foi o que aconteceu, tendo em vista que o STJ, em recentes decisões monocráticas, tem indeferido a aplicação do IPC como fator de atualização do BTNF, conforme se vislumbra da decisão proferida em EREsp 200539 (DJ de 27.09.2006).
Todavia, este posicionamento pode ser alterado novamente. É que o STF reabriu a discussão em torno da aplicação do IPC no ano base 1990 quando do início do julgamento do RE nº 201.512-1/MG pelo Plenário da Suprema Corte. Referido recurso, interposto pela Fazenda Nacional, tinha 02 (dois) objetivos: a) demonstrar a constitucionalidade das Leis nº 8.088/90, 8.200/91 e 8.682/93, no que determina a alteração do índice de correção do balanço para fins de cálculo dos tributos incidentes sobre o lucro de pessoas jurídicas (IRPJ e CSLL); b) autorizar a dedução das diferenças decorrentes, a partir de 1993, ao longo de 04 (quatro) anos.
O julgamento do indigitado recurso está suspenso atualmente, mas já conta com voto favorável proferido pelo Min. Relator Marco Aurélio Melo.
É nesse contexto de diversas idas e vindas de posicionamentos que o empresário contribuinte deve planejar seus investimentos no país. Uns obtiveram vitórias, enquanto outros foram derrotados pelo Fisco.
Com essa premissa em mente, passamos à análise dos efeitos econômicos e constitucionais do problema identificado.
III – OS EFEITOS DO PROBLEMA IDENTIFICADO
O artigo 170, IV, da Constituição Federal, prescreve que a ordem econômica nacional tem, entre outros fundamentos, o princípio da livre concorrência e a inexistência de qualquer ingerência do Poder Público sobre a atividade econômica como elementos basilares de sua estrutura.
Referida disposição garante que a iniciativa privada poderá atuar livremente, de modo que a concorrência entre duas ou mais empresas de um mesmo segmento econômico deverá ser respeitada sempre, tendo em vista que tal concorrência é saudável ao mercado e ao desenvolvimento econômico como um todo. Não pode o Poder Público, em hipótese alguma, interferir direta ou indiretamente nessa concorrência.
Pois bem. Imaginemos duas empresas atuantes em um mesmo mercado relevante, sendo, portanto, concorrentes entre si. Ambas dispendem valores para melhor vender seus produtos, seja com propaganda, capacitação profissional ou renovação do parque industrial. Disputam cada fatia do mercado e, nesses moldes, se equiparam em desempenho empresarial.
Para melhor elucidar o exemplo, chamemos as empresas de "A" e "B".
As empresas "A" e "B" vão ao Poder Judiciário em processos distintos para que lhes seja garantido a utilização do IPC para a correção monetária de suas respectivas demonstrações financeiras referentes ao ano base 1990. Tanto a empresa "A" como a empresa "B" fizeram provisões em suas contabilidades por conta da discussão da matéria.
Ao final dos trâmites processuais, chega ao STJ os recursos de "A" e "B". Ocorre que o recurso da empresa "A" é julgado favoravelmente aos seus interesses, ou seja, o IPC é reconhecido como índice aplicável de correção monetária. Após o trânsito em julgado, a empresa "A" reverteu suas provisões e continuou atuando normalmente no mercado.
Entretanto, o recurso da empresa "B" não vai a julgamento na mesma época do recurso da empresa "A". E, para sua infelicidade, o entendimento formado pelo STJ a época do julgamento da empresa "B" é em sentido oposto e, sendo assim, a empresa "B" não obtém um resultado favorável.
Em decorrência, a Receita Federal autua a empresa "B" e, em seguida, é apresentada contra ela a respectiva Execução Fiscal. Nesse diapsão, a empresa "B" tem seus bens penhorados e suas contas bancárias bloqueadas, o que lhe causa problemas como atrasos nos pagamentos de funcionários e fornecedores. No final das contas, a empresa "B" chega às margens da bancarrota, enquanto que a sua concorrente, a empresa "A", passa a dominar o mercado.
Ora, no exemplo acima narrado, o STJ infringiu ou não o princípio da livre iniciativa? A insegurança jurídica do STJ causou ou não sérios entraves ao princípio da livre iniciativa? Certamente que sim.
IV – MECANISMOS PROCESSUAIS QUE PODEM SER UTILIZADOS
O artigo 102, §1º, da Constituição Federal, dispõe sobre a possibilidade de arguição, ao STF, de descumprimento de preceito fundamental. Esta norma, deveras genérica, é complementada pela Lei nº 9.882/99, que prescreve que o objetivo desta ação é evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
A ação, na verdade, é meio processual de abrangência mais elástica, se comparada à ADIN ou à ADC. Estas últimas visam a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de um ato normativo específico, enquanto que a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamenatl (ADPF) objetiva a reparação de lesão a preceito fundamental resultante de ato (calha lembrar que não há especificação de "ato normativo") do Poder Público (Poder Executivo, Legislativo ou mesmo Judiciário).
Ora, a livre iniciativa é indubitavelmente um preceito fundamental da Constituição Federal, sendo que sua lesão por ato do Poder Público, incluindo-se aí do Poder Judiciário, pode sem ser questionado por meio de ADPF.
Nas pesquisas de jurisprudência à formulação do presente artigo, não foram encontrados precedentes à tese aqui exposta. Mas, se de um lado não há precedentes favoráveis, por outro não existem também decisões desfavoráveis.
V – CONCLUSÃO
Pelo presente trabalho, dispusemo-nos a demonstrar como as invertidas de entendiemento dos tribunais superiores geram uma insegurança jurídica tamanha que reflete drasticamente na vida econômica das empresas.
E mais. Foi esquadrinhado, ainda, um meio processual habilitado a questionar referida insegurança jurídica. Não se sabe se será acolhido ou não pelos tribunais. A futura jurisprudência dirá.