RESUMO: A elaboração do presente artigo tem como fundamento demonstrar que o procedimento administrativo da Usucapião Extrajudicial é uma importante ferramenta no fenômeno da desjudicialização do Direito, haja vista que possibilita a regularização da propriedade de bens imóveis de forma célere e eficaz, deslocando a competência do Poder Judiciário para as serventias extrajudiciais, nos casos em que restem satisfeitos os requisitos legais e em que não haja litígio. A problemática é relativa a uma exigência criada pelo Conselho Nacional de Justiça, que, ao elaborar o Provimento nº 65, que regulamenta o procedimento, no artigo 13º, § 2º, criou a condição de que, para que seja reconhecida a usucapião extrajudicial, haja a demonstração da ocorrência de um óbice à transferência da propriedade pelos meios comuns, como a lavratura de escritura ou realização de inventário, sem especificar o que enseja este óbice. O método utilizado para o desenvolvimento do trabalho foi o dedutivo, pautado em pesquisa teórico doutrinária, jurisprudencial e análise de material documental legal, visando aprofundar o tema e solucionar o problema proposto. Após a realização da pesquisa, deduz-se que a demonstração da ocorrência do óbice é subjetiva e deve ser analisada caso a caso pelo Oficial do Registro de Imóveis, bem como que inúmeras situações fáticas se mostram aptas a consubstanciar o óbice mencionado no referido Provimento.
Palavras-chave: Posse. Propriedade. Usucapião Extrajudicial. Óbice.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A presente pesquisa tem como objetivo demonstrar que a Usucapião Extrajudicial, introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pela entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que alterou a Lei nº 6.015/1973, incluindo o artigo nº 216-A, é uma importante via a propiciar a regularização fundiária no Brasil.
O interesse pela temática surgiu pela vivência cotidiana e profissional, ao perceber que a procura pelo procedimento da usucapião extrajudicial junto ao Cartório de Registro de Imóveis é cada vez maior.
A problemática envolve a inovação regulamentar trazida pelo Conselho Nacional de Justiça que, ao editar o artigo 13º, § 2º, do Provimento nº 65, que regulamenta o instituto da usucapião extrajudicial, trouxe a exigência de que, para que se intente o procedimento administrativo, haja a demonstração da ocorrência de um óbice à regularização da propriedade do imóvel pelas vias ordinárias, como lavratura de escrituras e realização de inventário.
Para tanto, o método selecionado foi o dedutivo, realizado por meio de pesquisa teórico doutrinária e jurisprudencial, além da análise de material documental legal, visando o aprofundamento no tema, bem como para consubstanciar o saneamento da problemática.
Ulteriormente a execução da pesquisa, diante da exposição de situações fáticas que consubstanciam a ocorrência de um óbice à regularização da transmissão da propriedade do imóvel pelas vias comuns, resta demonstrado que o requisito criado pelo Conselho Nacional de Justiça, em que pese resguarde o Registrador de Imóveis, no sentido de tornar criteriosa a análise do procedimento, especialmente a fim de evitar burla ao fisco e à qualificação registral, não deve ter o condão de tornar mais burocrático o procedimento que deveria garantir maior eficácia e celeridade à pretensão do usucapiente.
2 DIREITO DAS COISAS: DA POSSE E DA PROPRIEDADE
Impende iniciar o estudo do presente artigo, referindo que, diante do fato de a Usucapião estar inserida no Direito das Coisas, que trata, dentre outros, da posse e da propriedade, previamente ao estudo da Usucapião de bens imóveis, far-se-á uma breve conceituação acerca dos referidos institutos, haja vista que conversam entre si.
Para Clóvis Bevilácqua (BEVILACQUA, apud GONÇALVES, 2020, p. 20), o Direito das Coisas é “o complexo de normas reguladoras das relações jurídicas referentes às coisas suscetíveis de apropriação pelo homem. Tais coisas são, ordinariamente, do mundo físico, porque sobre elas é que é possível exercer o poder de domínio”.
Conforme ensina Marco Aurélio Bezerra de Melo (2019):
A existência do homem depende da apreensão de bens que lhe satisfaçam as necessidades básicas para uma vida digna. Desde aqueles que sirvam para a manutenção da própria vida, como a água e o alimento, até um local que lhe possa servir de moradia, passando pelo vestuário, produtos de higiene pessoal e os materiais próprios para o desenvolvimento do trabalho pessoal. (MELO, 2019, p. 2)
É necessário assegurar ao titular a segurança jurídica necessária ao desenvolvimento das competências dominiais, resguardando-o contra quem possa contestar a legalidade do direito assegurado pelo artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal, inclusive para que, por meio judicial, este possa recuperar o bem de quem dele, indevidamente, tenha se apropriado.
Com relação à regulamentação, o Livro III da Parte especial do Código Civil brasileiro é denominado “Direito das Coisas”, onde estão inseridas a posse e os outros direitos subsequentes. Já no Título II do Código Civil, que leva a denominação “Direitos Reais”, o artigo 1.225 elenca, dentre outros, a propriedade.
No que se refere aos direitos reais, pode-se dizer que são o conjunto de normas que disciplinam o jus in re, ou seja, o poder que o titular exerce sobre a coisa. Existem duas teorias acerca dos direitos reais: a teoria realista ou impersonalista e a teoria personalista. No primeiro caso, entende-se que o direito real é o ramo que estuda os poderes que o homem exerce sobre um bem, no que se refere à subordinação da coisa ao anseio de seu titular, sem que haja intermediários. Já para a teoria personalista, fundada na teoria Kantiana, tem-se que não é possível a existência de relação jurídica entre pessoas e coisas, que as relações se dão tão somente entre pessoas.
No entendimento de Melo (2019), as características mais marcantes dos direitos reais são a oponibilidade contra todos, a aderência ou inerência, a ambulatoriedade, a sequela, a publicidade, a taxatividade, a perpetuidade e a preferência.
As principais diferenças entre os direitos reais e os direitos pessoais são a oponibilidade contra todas – eficácia erga omnes, o fato de a coisa ser objeto da relação jurídica, a inexistência de intermediário e o direito à sequela.
2.1 Da Posse
A começar por sua natureza jurídica, conceituar a posse é tarefa difícil, pois existe divergência na Doutrina, se a posse se trata de fato ou de direito. E, mais, em se tratando de direito, se deve estar inserida nos direitos reais ou pessoais.
O Direito Civil brasileiro não protege apenas a posse decorrente da propriedade, mas também a posse como figura autônoma, como situação de fato. Pode-se falar que dois são os fundamentos da posse, o jus possessionis (direito de posse), que independe da existência de título e o jus possidendi (direito de ter posse), onde esta decorre de título legítimo devidamente transcrito.
Para Gonçalves (2020) “a posse é protegida para evitar a violência e assegurar a paz social, bem como porque a situação de fato aparenta ser uma situação de direito. É, assim, uma situação de fato protegida pelo legislador” (GONÇALVES, 2020, p. 45).
As principais teorias que visam conceituar a posse são a teoria subjetiva, asseverada por Friederich Karl Von Savigny e a teoria objetiva, de Rudolf Von Ihering, adotada pelo Direito brasileiro. A teoria subjetiva sintetiza a posse como a união entre o elemento objetivo (poder do homem sobre o bem), e o elemento subjetivo (intenção de tê-lo para si), operando-se a conjunção entre o corpus e o animnus domini. Na teoria objetiva, a posse é tida como a manifestação de algum dos poderes inerentes à propriedade, sendo que para que seja exercida, deve o ordenamento jurídico assegurar ao possuidor a possibilidade de efetivar estes poderes.
A teoria de Ihering traz a figura do proprietário não possuidor, daquele que, mesmo ostentando título da propriedade da coisa não a possua, quer por abandono ou por simplesmente não utilizar o bem.
Para Melo (2019), mesmo não sendo adotada pelo direito brasileiro, a teoria subjetiva constitui fonte para o estudo da usucapião, pois refere que no caso da posse ad usucapionem, é necessário que sujeito tenha o ânimo de ter a coisa como sua (animo sibi habendi). Além disso, nesta teoria é explicada a aquisição da posse pela apreensão e a perda pelo abandono.
Ihering refere que a proteção possessória é de extrema relevância e acaba por beneficiar o não proprietário. Ao enfatizar que a posse é resguardada pela propriedade e, justamente por esse motivo, sua proteção se justifica, acaba recebendo a posse autonomia em face da propriedade. Refere Melo (IHERING, 2007, p. 59, apud MELO, 2019, p. 22), que “a proteção da posse, como exterioridade da propriedade, é um complemento necessário da proteção da propriedade, uma facilidade de prova em favor do proprietário, que necessariamente aproveita também ao não proprietário”.
Extrai-se da teoria objetiva que o possuidor é aquele que se conserva na posse ou que tem o direito de retomá-la e, portanto, detém o direito à posse (jus possesionis). Tal situação perdura apenas até o instante em que o proprietário, dotado do jus possidendi, que tem o direito de ter a posse, a reclame, pois, havendo embate entre eles sobre a propriedade, a situação da posse extinguir-se-á em detrimento da propriedade. Salienta-se, contudo, que nas demandas onde se busca reconhecer o direito à posse, é irrelevante reconhecer de quem é a propriedade, pois prevalecerá o jus possesionis.
2.2 Da Propriedade
A propriedade se trata do mais completo dos direitos subjetivos, é o direito central dos direitos reais e o cerne do Direito das Coisas. Para Washington de Barros Monteiro (MONTEIRO, Curso de Direito Civil, v. 3, p. 83, apud GONÇALVES, 2020, p. 210), “constitui o direito de propriedade o mais importante e o mais sólido de todos os direitos subjetivos, o direito real por excelência, o eixo em torno do qual gravita o direito das coisas”.
No Direito Civil brasileiro, os poderes do proprietário vêm recepcionados no artigo 1.228 do Código Civil, quais sejam, “faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”
Para Melo (2019, p. 91), “podemos dizer que a propriedade é um direito subjetivo, absoluto, elástico, perpétuo, complexo e limitado, pelo qual uma pessoa submete determinado bem ao seu poder e interesse”.
É direito subjetivo, pois consuma um fato jurídico onde todos têm a obrigação de não fazer ao proprietário; é absoluta, já que é executada contra todos; é elástica, porque faculta ao arbítrio d proprietário estender e encurtar os poderes de domínio; é perpétua, pois não se encerra pelo desuso; é complexa, porque delimita ao proprietário os direitos sobre o bem; e é limitada, pois as faculdades do artigo 1.228 do Código Civil devem ser exercidas com cautela.
2.3 Da Função Social da Propriedade[4]
Para que se possa falar em usucapião, é necessário discorrer acerca do princípio constitucional da função social da propriedade, uma vez que é ele que garante que o imóvel atenda à sua função social e econômica.
De acordo com Gonçalves (2020), no direito romano, a propriedade era dotada de traço individualista. Na Idade Média existia um cuidado para que o domínio do imóvel permanecesse em dadas famílias, que estas mantinham seu poder no sistema político, surgindo uma duplicidade de sujeitos, onde quem explorava economicamente o imóvel pagava ao proprietário pelo uso. Com a Revolução Francesa, a propriedade consolidou-se com caráter individualista. No século XX, o caráter social da propriedade foi enfatizado.
Ainda, de acordo com o autor (Ibid.), apesar da origem controversa do princípio da função social, Léon Duguit é tido como “precursor da ideia de que os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário deve comportar-se e ser considerado, quando à gestão dos seus bens, como um funcionário” (GONÇALVES, 2020, p. 224-225).
Segundo Duguit (1975, apud GONÇALVES, 2020, p. 225):
(...) a propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza e obrigação de emprega-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder. (DUGUIT, 1975, p. 236, apud GONÇALVES, 2020, p. 225)
No Direito brasileiro, a função social da propriedade é garantia constitucional, pois o artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal assegura que esta atenderá a sua função social. A função social da propriedade é tida, ainda, como princípio informador da atividade econômica, impondo limites à prática empresarial, pois, conforme o artigo 170, inciso III, da Carta Magna, a ordem econômica observará a função social da propriedade.
Nesse sentido, o artigo 1.228, § 1º, do Código Civil refere que o direito de propriedade deve ser exercido com observância às finalidades econômicas e sociais, preservando “a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”.
No entendimento de Melo (2019):
A função social da propriedade tornou-se uma exigência da vida em sociedade, pois da mesma forma que é importante a defesa dos direitos individuais dos titulares da propriedade, é fundamental que se exija do proprietário a observância das potencialidades econômicas e sociais dos bens que deverão ser revertidos em benefício da sociedade. (MELO, 2019, p. 95)
Ao referir a possibilidade de sobreposição de um direito ao outro, Anderson Schreiber (SCHREIBER, 2013, p. 259-260, apud MELO, 2019, p. 95), aduz que a “ponderação entre esses valores deve ser feita sempre com a intenção de garantir a menor restrição possível a todos eles, e de evitar ao máximo a supressão de um em favor de outro”.
Ao tratar acerca da regularização fundiária e do princípio da função social da propriedade, Vinícius de Melo Lima e Marcelo Cacinotti Costa (2018), com relação à alta quantidade de imóveis em situação informal, referem que este “mercado informal” prejudica o Estado, mas, principalmente, às pessoas que convivem com a informalidade, “sonegando-se, assim, o direito constitucional à dignidade, materializado pelo direito de propriedade como um direito fundamental, principalmente pela inércia do próprio Estado”. (LIMA; COSTA, 2018, p. 60)
Relativamente ao tema, os mencionados autores (Ibid.) asseveram que:
(...) é possível afirmar que a abrangência deste tema transcende à única finalidade de garantir direitos e garantias fundamentais. E isso é verdade porque, uma vez registrada a propriedade que hoje se encontra irregular, o cidadão passará à condição de proprietário, passando a integrar o sistema jurídico formal que a Constituição lhe assegura. (LIMA; COSTA, 2018, p. 64)
Por conseguinte, verifica-se que não é possível dissociar a propriedade daquilo que lhe outorga conotação jurídica, ou seja, da execução do domínio obedecendo à sua função social.
3 DA USUCAPIÃO
A expressão usucapião tem origem latina e advém da união da palavra uso ao verbo capio (tomar, ocupar, adquirir), significando, portanto, tomar através do uso. Desta forma, tem-se que a usucapião é o modo de aquisição da propriedade e outros direitos reais, decorrente da posse prolongada e pública, desde que cumpridos alguns requisitos legais.
Consoante refere Francisco José Barbosa Nobre (2018, p. 27), “Com o transcurso do tempo, uma situação de fato – a posse – acaba, por meio da usucapião, por se convolar em uma situação de direito – a propriedade”.
O instituto da usucapião surgiu no Direito Romano[5], como forma de aquisição da propriedade, a fim de acolher aqueles que, mesmo tendo adquirido a propriedade, em virtude de máculas no método de transmissão da propriedade, não eram tidos como proprietários.
Conforme menciona Melo (2019, p. 118), a primeira positivação ocorreu com a Lei das XII Tábuas, quando era exigido tempo de posse de um ano para os bens móveis e de dois anos para imóveis, prazo que foi aumentado para dez anos entre presentes e vinte anos entre ausentes, consoante refere a Tábua 6ª , inciso III: “a propriedade do solo se adquire pela posse de dois anos; e das outras coisas, pela de um ano”.
Para alguns autores a usucapião é tida de forma sinonímia à prescrição aquisitiva, pois em ambos os casos os efeitos são gerados pelo decurso do tempo, mesmo que na usucapião ocorra a aquisição de um direito, enquanto na prescrição há a extinção de um. Por outro lado, de acordo com Boczar e Assumpção (2018, p. 34), “parte da Doutrina critica o uso dessas expressões como sinônimas, uma vez que entendem que sequer pertencem ao mesmo gênero”. É o decurso do tempo que regula tanto a aquisição, quanto a perda da propriedade.
Na usucapião ocorre um confronto entre a pretensão particular do proprietário e o desejo pessoal do possuidor, sendo que o segundo vem consubstanciado pelo mais adequado proveito do bem e, portanto, garantia do cumprimento da função social da propriedade.
Nesse sentido, segundo Nobre (2018):
A usucapião, ao conferir propriedade ao possuidor, termina por destituir dessa mesma propriedade aquele que até então a titulava. A solução, porém, acaba por ser justa, pois afasta em definitivo da condição de proprietário aquele que dela se distanciou sem buscar modos de reavê-la. Por essa mesma razão, exige-se, para a usucapião, que haja inércia do proprietário não-possuidor por um tempo razoavelmente longo, suficiente para se presumir o desinteresse pelo bem, ao passo que, da parte do possuidor não-proprietário, se manifeste a ação de dar ao bem a finalidade econômica e social que lhe é própria. (NOBRE, 2018, p. 28)
Ainda nesse ínterim, como assevera Melo (2019):
Se por um lado é premiado o usucapiente, por outro é punido o desidioso. Afinal de contas, nada mais justo do que uma pessoa que agregou valor a determinado bem em razão da utilização, do trabalho, produção ou pela moradia, dentre outros, seja contemplada pelo reconhecimento social e jurídico de ser proprietário do bem. (MELO, 2019, p.119)
Apesar de haver discussão doutrinária se a usucapião se trata de forma originária ou derivada de aquisição da propriedade, o entendimento majoritário é que, em virtude de não preceder de transferência de propriedade do alienante ao adquirente, a usucapião se trata de forma originária de aquisição da propriedade, pois com o reconhecimento da usucapião, nasce uma nova propriedade, extinguindo-se o direito do proprietário anterior.
Para configurar a usucapião é crucial o exercício da posse ininterrupta, sem oposição e com intenção de dono, por tempo previsto em lei, sobre coisa hábil a ser usucapida.
A posse ininterrupta é a posse contínua, pelo prazo previsto em lei, sem que haja intervalos pelo próprio possuidor ou interrupção por parte de um terceiro interessado, pois a intermitência ou vacilação pelo possuidor na condução do seu direito afastam a possibilidade de usucapir o bem. A legislação brasileira permite a soma de posse do possuidor e seus antepassados, desde que mansa e pacífica, para fins de usucapião.
Por outro lado, mister ressaltar que as causas que interrompem a prescrição extintiva também se aplicam à usucapião. Portanto, todos os mecanismos legais contidos no artigo 202 do Código Civil podem impedir a consumação da prescrição aquisitiva.
No que concerne à posse sem oposição, ou posse mansa e pacífica, é exigido que a posse seja inconteste, que não haja reação do titular com relação ao possuidor, haja vista que, caso contestada, a posse não será apta a consubstanciar a usucapião.
Já, no que se refere à posse com intenção de dono (animus domini), tal requisito possui cunho subjetivo, na medida em que se refere à intenção de portar o bem como se fosse seu, quando o possuidor não reconhece em qualquer outra pessoa direito superior ao seu.
No que diz respeito ao requisito de que o bem seja passível de ser usucapido, o Direito brasileiro veda a possibilidade de usucapião de bens públicos. Destarte, o artigo 183, § 3º e o artigo 191, parágrafo único, da Constituição Federal expressam a proibição, asseverando que ”os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”. Ainda, o artigo 102 do Código Civil refere que “os bens públicos não estão sujeitos à usucapião”. Portanto, os bens públicos, discriminados no artigo 99 do Código Civil[6], inclusive bens dominicais e terras devolutas, não são aptos a serem usucapidos.
Nas palavras de Miranda, Mello, Lago e Bottega (2020):
Pela diretriz do ordenamento jurídico brasileiro atual, a usucapião busca, ao mesmo tempo, premiar aquele que exerce a posse com ânimo de dono por determinado lapso temporal e sancionar aquele proprietário ou titular de direito real que negligenciou a propriedade ou nela não exerceu função social. (MIRANDA; MELLO; LAGO e BOTTEGA, 2020, p. 18)
Desta forma, a usucapião é o instituto pelo qual o possuidor, que exerce a posse com animus domini, por certo período, agregando valor social ao bem, converte-a em propriedade.
3.1 As espécies de Usucapião
Conquanto a usucapião possa ter como objeto bens móveis e imóveis, a abordagem do presente trabalho refere-se tão-somente à usucapião de bens imóveis. No ordenamento jurídico brasileiro, as espécies de usucapião estão previstas nos artigos 183 e 191 da Constituição Federal e nos artigos 1.238 a 1.244 do Código Civil. A matéria também é abordada nos artigos 9º e 10º da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), bem como no artigo 33 da Lei nº 6.001/1973 (Estatuto do Índio).
Desta forma, verifica-se que o Direito brasileiro estabelece três espécies de usucapião de bens imóveis, quais sejam, a usucapião extraordinária, a usucapião ordinária e a usucapião especial ou constitucional, que se subdivide em usucapião especial rural e usucapião especial urbana. Impende mencionar, ainda, a existência de uma quarta espécie, a usucapião indígena.
3.1.1 Usucapião Extraordinária
A Usucapião Extraordinária é referida pelo artigo 1.238 do Código Civil[7]. Para Gonçalves (2020), essa modalidade de usucapião trata-se da espécie “mais comum e conhecida. Basta o ânimo de dono e a tranquilidade da posse por quinze anos. O usucapiente não necessita de justo título nem de boa-fé, que sequer são presumidos: (...) O título, se existir, será apenas reforço de prova, nada mais” (GONÇALVES, 2020, p. 241).
O Código Civil de 1916 exigia prazo de posse de vinte anos para essa espécie de usucapião, período reduzido para quinze anos pelo artigo 1.238 do Código Civil de 2002.
Segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2016, apud, BOCZAR e ASSUMPÇÃO, 2018) a redução do prazo demonstra “valorização da substância (realidade) em detrimento da forma (o título da propriedade), em atendimento ao princípio constitucional da solidariedade social (art. 3º, IV, da CF) que tem como uma de suas vertentes a função social da posse”. (GAMA, 2016, p. 379, apud BOCZAR e ASSUMPÇÃO 2018, p. 40)
Com relação aos pressupostos, ao mencionar que o Código Civil anterior considerava presumidos o justo título e a boa-fé, em razão do tempo prolongado, Melo (2019) refere que o “equívoco foi corrigido e a nova lei deixa claro que os referidos requisitos especiais não são exigidos em razão, exatamente, do longo tempo dessa modalidade de usucapião conhecida como longissimi temporis”. (MELO, 2019, p.136)
Compreende-se, portanto, que a usucapião extraordinária, conquanto seja a espécie que exige menos requisitos, é a que requer o maior tempo de posse.
O parágrafo único do artigo 1.238 do Código Civil reduziu o prazo da posse para dez anos, nos casos em que o possuidor construa residência para fins de sua moradia habitual (usucapião extraordinária habitacional) ou venha a investir mediante realização de obras ou serviços de caráter produtivo no local (usucapião extraordinária pro labore).
Nas palavras de Melo (2019), esta é uma “feliz previsão legal que prestigia a função social da propriedade, pois há um incentivo ao usucapiente no sentido de dar uma destinação social ao bem, utilizando-o para moradia ou como meio de produção”. (MELO, 2019, p. 137)
Portanto, a inovação tem o viés de enaltecer a função social da propriedade, já que o possuidor é estimulado a conceder finalidade social ao imóvel, que será utilizado para moradia ou meio de produção, possibilitando a redução do prazo de posse nesta modalidade.
3.1.2 Usucapião Ordinária
A usucapião ordinária é disciplinada pelo artigo 1.242 do Código Civil[8]. Referida espécie exige a posse mansa e pacífica, exercida com animus domini, pelo prazo contínuo de dez anos, bem como outros dois requisitos, quais sejam o justo título e a boa-fé.
Por posse de boa-fé entende-se aquela caracterizada pelo desconhecimento do possuidor acerca do vício ou entrave que impossibilita a aquisição do bem. Já o justo título é tido como o negócio jurídico apto a transferir a propriedade, desde que não contenha falhas.
O parágrafo único do artigo 1.242 do Código Civil disciplina a chamada usucapião tabular. Nesta espécie de usucapião há redução do prazo de posse para cinco anos, nos casos em que, além de cumpridos os demais requisitos, haja transmissão onerosa, devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis, a qual, mais tarde, venha a ser anulada.
Vale ressaltar que, para que reste configurada esta modalidade de usucapião, com consequente redução do prazo de posse, também é necessário que o possuidor tenha estabelecido moradia no imóvel, ou tenha o tornado produtivo.
De acordo com Nobre (2018):
Trata-se de hipótese rara, eis que pressupõe que alguém, confiando nas informações constantes do registro de imóveis, tenha realizado a aquisição onerosa e, posteriormente, por alguma falha do registro ou do título do alienante, o registro tenha sido anulado, levando de roldão o título do possuidor. É situação em que a boa-fé do possuidor é qualificada pela existência de título registrado, daí ser por vezes denominada usucapião tabular, ou usucapião de livro. (NOBRE, 2018, p. 32)
Neste instituto jurídico, conforme preconiza o artigo 1.243 do Código Civil[9], também é passível a accessio possessionis ou soma das posses para que se alcance o prazo necessário à usucapião.
Depreende-se, assim, que apesar de exigir tempo de posse menor com relação à usucapião extraordinária, a usucapião ordinária, bem como a tabular, demandam maior número de pressupostos que devem ser satisfeitos pelo usucapiente.
3.1.3 Usucapião Especial ou Constitucional
Com escopo ao cumprimento do princípio da função social da propriedade, a Constituição Federal criou, no artigo 183, a chamada usucapião especial urbana ou pró-moradia; e, no artigo 191, a usucapião especial rural ou pro labore.
3.1.3.1 Usucapião Especial Urbana
No que concerne à usucapião especial urbana, além de introduzida pelo artigo 183 da Constituição Federal[10], vem reforçada pelo artigo 9º da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), que mantém a íntegra da redação do artigo 183, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal; e pelo artigo 1.240 do Código Civil, que apenas suprimiu o § 3º do referido artigo 183.
Esta modalidade de usucapião visa propiciar a consolidação do direito fundamental à moradia, razão pela qual a legislação determina que o possuidor estabeleça sua moradia ou de sua família no imóvel, de forma contínua, mansa e pacífica, pelo prazo de cinco anos.
Verifica-se que, nesta espécie de usucapião, além dos requisitos comuns às outras modalidades, do estabelecimento da moradia no imóvel, é necessário que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural; que a área não seja superior a 250m², que abrange tanto o terreno, quanto a construção, sendo vedado que uma ou outra ultrapasse o limite estabelecido; e, ainda, que anterior usucapião não tenha sido reconhecida ao possuidor.
Depreende-se, ainda, que o artigo 9º, § 3º, do Estatuto da Cidade[11], define que, nesta espécie de usucapião, a soma das posses mencionada no artigo 1.243 do Código Civil, apenas ocorrerá a título universal (sucessio possessionis), nos casos em que o herdeiro já residisse no imóvel quando do falecimento do possuidor original.
Com relação à partilha desse direito possessório, ensina Paulo Hermano Soares Ribeiro (RIBEIRO, 2009, apud BOCZAR e ASSUMPÇÃO, 2018), “a posse do autor da herança não irá ser partilhada igualmente aos herdeiros legítimos – assim como ocorre nas demais situações – mas será transferida somente àquele herdeiro legítimo que já se encontrava na posse do imóvel ao tempo da abertura da sucessão”. (RIBEIRO, 2009, p. 288-289, apud BOCZAR e ASSUMPÇÃO, 2018, p. 49)
Portanto, conforme aduziu o mencionado autor (Ibid.), esta é uma situação atípica, já que o herdeiro possuidor excluirá os demais herdeiros para que ocorra a soma do tempo de posse do falecido ao seu tempo de posse e se configure a usucapião especial urbana.
3.1.3.2 Usucapião Especial Urbana Coletiva
O artigo 10º do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001)[12] disciplina a modalidade da usucapião especial urbana coletiva, hipótese em que pessoas de baixa renda ocupem um imóvel de forma coletiva, quando não seja possível identificar a área de cada possuidor, mas que, dividindo-a pelo número de possuidores, a área de cada possuidor não exceda 250m². Permanecem aqui os requisitos de posse mansa e pacífica, com intuito de moradia, pelo prazo de cinco anos, desde que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel rural ou urbano.
No caso da usucapião especial urbana coletiva, de acordo com o que refere o º 1ª do artigo 10º do Estatuto da Cidade, é possível a soma das posses, tanto a accessio possessionis quanto a successio possessionis, desde que contínuas, a fim de obter o tempo necessário.
Para Gama (GAMA, 2016, apud BACZAR e ASSUMPÇÃO, 2018), “além de promover o direito à moradia e a dignidade de pessoa humana, também é instrumento de regularização fundiária, uma vez que permite formalizar a propriedade com base na posse-moradia”. (GAMA, 2016, p. 384, apud BACZAR e ASSUMPÇÃO, 2018, p. 51)
Ainda, no que se refere à assertiva contida no artigo 10º da Lei nº 10.257/2001, de que usucapião especial coletiva urbana será declarada pelo juiz, é imprescindível que se atente ao fato de que o Estatuto da Cidade é anterior à entrada em vigor do novo Código Civil, que prevê o reconhecimento da usucapião na esfera extrajudicial.
3.1.3.3 Usucapião Familiar
A modalidade de usucapião familiar está disposta no artigo 1.240-A do Código Civil[13], sendo a espécie que reúne a necessidade de apresentação dos mais complexos requisitos e, em contrapartida, do menor tempo de posse, dois anos.
Conforme assevera Nobre (2018), para que reste configurada, é necessário que se acumulem os seguintes requisitos: área urbana de até 250m²; propriedade, em comunhão ou condomínio, com ex-cônjuge ou ex-companheiro que tenha abandonado o lar; utilização do imóvel como moradia ou de sua família; inexistência de prévio reconhecimento de outra usucapião da mesma espécie; e inexistência de outra propriedade urbana ou rural. Desta forma, se cumpridos os requisitos, restará configurada a usucapião em dois anos.
3.1.3.4 Usucapião Especial Rural
A espécie da usucapião especial rural surgiu, no direito brasileiro, na Constituição Federal de 1934, tendo por escopo a manutenção do homem no campo. As constituições de 1937 e 1946 mantiveram a modalidade, mas a de 1967 remeteu o instituto à regulamentação por lei ordinária. Com a Lei nº 6.969/1981, o tema foi regulamentado, sendo a área a ser usucapida limitada em 25 hectares, bem como admitida a usucapião de terras devolutas.
O artigo 191 da Constituição Federal[14], ao regulamentar a usucapião especial rural aumentou a área a ser usucapida para 50 hectares e vedou a usucapião de quaisquer bens públicos. Nesse sentido, o Código Civil, no artigo 1.239, espelhou integralmente o dispositivo constitucional, excluindo apenas o parágrafo único.
Com relação à área rural a ser usucapida, impende referir que a limitação em 50 hecatares é atinente apenas a esta espécie, não havendo impedimento de que, em sendo área superior ao limite estabelecido pela legislação, se processem outras espécies de usucapião.
Para Boczar e Assumpção (2018), “a usucapião especial rural tem o objetivo de fixar o homem no campo e proteger o trabalhador agrícola(...) Nesse caso, não basta a posse por 5 (cinco) anos, mas também é necessária a moradia no imóvel, bem como torna-lo produtivo por trabalho próprio ou de sua família” (BOCZAR e ASSUMPÇÃO, 2018, p. 45).
Essa hipótese não é passível de accessio possessionis, já que as exigências são personalíssimas e, portanto, têm de ser realizadas pelo usucapiente. Nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves (2013, p. 263):
A Doutrina e a Jurisprudência não agasalham, todavia, a soma ou a adição da posse, denominada accessio possessionis. Não pode, assim, o possuidor acrescentar à sua posse a dos seus antecessores, uma vez que teriam de estar presentes as mesmas qualidades das posses adicionadas, o que seria difícil de ocorrer, visto que há requisitos personalíssimos incompatíveis com a aludida soma, como a produtividade do trabalho do possuidor ou de sua família e moradia no local. É afastada até mesmo a hipótese de adicionamento quando o sucessor a título singular faz parte da família e passa a trabalhar a terra e a produzir, nela residindo. (GONÇALVES, 2013, p. 263, apud BOCZAR e ASSUMPÇÃO, 2018, p. 46)
Depreende-se, portanto, que esta modalidade de usucapião não faz a exigência de apresentação de justo título e boa-fé, conquanto para seu reconhecimento devam ser cumpridas especificidades personalíssimas, consoante mencionado alhures.
3.1.4 Usucapião Indígena
A usucapião especial indígena é disposta no artigo 33 da Lei nº 6.001/1973 (Estatuto do Índio)[15]. A exemplo de todas as modalidades de usucapião, essa espécie também requer a posse mansa e pacífica, exercida de forma contínua, com animus domini e pelo prazo de dez anos sobre área rural que não exceda a 50 hectares.
O artigo 4º do Estatuto do Índio diferencia os índios isolados dos índios integrados, referindo que os primeiros são aqueles que vivem em grupos que não mantém contato com elementos da comunhão nacional e que os segundos são aqueles que, quando incorporados à comunhão nacional, adquirem capacidade civil, mesmo mantendo costumes e tradições culturais.
No entendimento de Nobre (2018), esta modalidade possui “escasso interesse prático, posto que, na prática, na maioria das vezes será mais benéfico amoldar-se à usucapião constitucional rural, que dispõe de prazo mais reduzido de cinco anos”.
As áreas aptas à usucapião indígena são apenas aquelas que sejam rurais e particulares e tenham até 50 hectares, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro veda a usucapião de bens públicos, mesmo que sejam ocupadas por grupos indígenas.
3.2 Efeitos da Usucapião
Com o reconhecimento da usucapião, em razão do preenchimento dos requisitos, a consumação será declarada por sentença ou por decisão administrativa, gerando a aquisição do direito real sobre o qual foi exercida a posse.
Depreende-se que a sentença declaratória ou a decisão administrativa de reconhecimento da usucapião geram efeitos ex tunc, ou seja, reconhecem, com oponibilidade erga omnes, o direito já existente do usucapiente, a posse ad usucapionen, desde o momento em que este preencheu os requisitos exigidos pela legislação.
Conforme entendimento de Melo (2019), o efeito retroativo da declaração da usucapião até a data que iniciou a posse se justifica pela necessidade de proteção a terceiros que tenham mantido relações jurídicas com o possuidor, pela aparência de proprietário possuída por este.
Por outro lado, impende mencionar que a oponibilidade erga omnes da decisão que reconhece a usucapião apenas será alcançada com o devido registro da decisão junto ao Cartório de Registro de Imóveis, ato que garante publicidade à decisão declaratória, gerando efeitos ex nunc, ou seja, daquele momento em diante.
4 USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL
É sabido que o sistema judiciário está em crise, na medida em que as demandas processuais cada vez crescem mais, o que torna mais lento o processamento das ações judiciais. Em virtude disso, o fenômeno da desjudicialização vem ganhando força.
Nas palavras de Nobre (2018), diante do aludido fenômeno se propicia “a realização mais breve dos direitos individuais, seja pela via alternativa propiciada pela desjudicialização, seja pela melhoria de performance geral do próprio Judiciário” (NOBRE, 2018, p. 47).
Mencionado autor (Ibid.) define a desjudicialização como “a transferência de atividades que tradicionalmente cabem aos juízes para outros órgãos ou agentes, obtendo, na prática, o alívio da sobrecarga judiciária e a maior brevidade ou simplicidade na efetivação do direito” (NOBRE, 2018, p. 47-48), dentre as quais se sobressai a desjudicialização nos casos apreciados pelos delegatários de foro extrajudicial, uma vez que estes são profissionais do direito e dotados de fé pública, que, além de terem atuação imparcial, estão presentes em todo o território nacional e são submetidos à fiscalização pelo Poder Judiciário.
No que se refere à usucapião extrajudicial, tem-se que as primeiras manifestações da doutrina apontam que a Lei nº 11.977/2009 foi precursora no que concerne à possibilidade de usucapião na via administrativa, pois previu procedimento dessa natureza no âmbito da regularização fundiária.
A usucapião extrajudicial é um instituto novo no Direito Registral brasileiro, na medida em que, até então, o que se tinha eram as possibilidades da usucapião administrativa de imóveis da União (Lei nº 5.972/19730), usucapião administrativa de terras devolutas federais (Lei nº 6.969/1981), e usucapião administrativa na regularização fundiária de assentamentos urbanos (Lei nº 11.977/2009).
Com a implantação do artigo 216-A da Lei de Registros Públicos, introduzido pelo artigo 1.071 do Código de Processo Civil, passa a ser reconhecida a usucapião na seara extrajudicial, aplicável a qualquer imóvel, urbano ou rural, limitando-se apenas às condições estabelecidas pela Constituição Federal, bem como àquelas decorrentes do texto legal.
De acordo com Nobre (2018), o procedimento da usucapião extrajudicial “é indiscutivelmente mais simples e rápido que uma ação judicial de usucapião. Ter o imóvel legalizado em poucas semanas é um sonho dourado até então inacessível, eis que ações judiciais de usucapião costumavam durar anos”. (NOBRE, 2018, p. 23)
Para Nobre (2018), a seara extrajudicial é mais próxima do cidadão comum, uma vez que possibilita o reconhecimento de seus direitos de forma mais breve, mencionando que os cartórios se tornaram espaço de concretização dos direitos constitucionais.
Tendo em vista a complexidade do procedimento de usucapião extrajudicial, que foi implementado no ordenamento jurídico em apenas um artigo da Lei dos Registros Públicos, restou necessária a manifestação do Conselho Nacional de Justiça e das Corregedorias Gerais de Justiça dos Estados, a fim de estabelecer orientações aos tabeliães e registradores.
Com o intuito de conceder normatização uníssona ao instituto, o Conselho Nacional de Justiça elaborou o Provimento nº 65, de 14 de dezembro de 2017, que estabelece as diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial nas serventias notariais e registrais.
O procedimento da usucapião extrajudicial é intentado mediante apresentação de requerimento do usucapiente e seu cônjuge ou companheiro, devidamente assinado por advogado ou defensor público constituído, endereçado ao oficial do Registro de Imóveis da circunscrição em que se localiza o imóvel usucapido ou maior parte dele.
Consoante assevera Melo (2019):
O fato de se tratar de um movimento de desjudicialização não retira do procedimento o caráter técnico-jurídico e, por tal motivo, observado o princípio da instância, a medida é deflagrada pelo interessado que deverá estar devidamente representado por seu advogado que, como cediço, é um agente indispensável à administração da justiça (art. 133, CF), seja em presença do juiz ou de um delegatário desse serviço público (art. 236, CF). (MELO, 2019, p. 153)
O requerimento deve conter requisitos de uma petição inicial, conforme artigo 319 do Código de Processo Civil. No requerimento deve ser apresentada a descrição da situação fática pormenorizada da posse, descrevendo o imóvel e suas benfeitorias ou acessões, mesmo que não estejam devidamente regularizadas, a fundamentação legal e o pedido de reconhecimento da usucapião.
Conforme dispõe o artigo 4º do Provimento nº 65 do CNJ, o requerimento deverá ser instruído com ata notarial, na qual, obrigatoriamente, constarão: a qualificação completa do requerente e respectivo cônjuge ou companheiro, se houver, bem como do proprietário tabular do imóvel, na forma do artigo 2º do Provimento nº 61/2017/CNJ[16], além do documento de identidade do requerente; a descrição completa do imóvel objeto da usucapião; o tempo de posse, compreendendo o tempo de posse e de seus antecessores, se assim for o caso; a forma de aquisição da posse pelo usucapiente e por seus antecessores; a modalidade de usucapião e sua base legal; o valor atribuído ao imóvel; e outras informações que o tabelião julgue importantes, tais como depoimentos de testemunhas ou confrontantes.
A ata notarial possui caráter sui generis e, para sua lavratura, o tabelião deve analisar todo o conjunto probatório e, caso seja de seu interesse, poderá colher declarações e efetuar diligências, a fim de formar seu convencimento sobre a presença ou não dos requisitos à usucapião.
Além da ata notarial, o requerimento deverá ser instruído com planta e memorial descritivo, assinados por responsável técnico e com prova de ART/RRT/TRT no respectivo conselho profissional e pelos titulares de direitos sobre o imóvel usucapiendo, contendo reconhecimento de firma de todas as partes,
Deverá, ainda, integrar o requerimento justo título ou quaisquer documentos que demonstrem a origem, a continuidade e o tempo de posse; certidões negativas das distribuições da Justiça Estadual e Federal do local do imóvel, expedidas dentro de trinta dias, em nome dos requerentes, proprietários do imóvel e demais possuidores e respectivos cônjuges ou companheiros, em ambos os casos; descrição georreferenciado nas hipóteses em que assim a lei exige; procuração com poderes especiais e com firma reconhecida outorgada ao advogado pelo requerente e seu cônjuge ou companheiro; e certidão dos órgãos competentes que ateste a natureza urbana ou rural do imóvel, expedida até trinta dias antes do requerimento.
O título registrável apenas surge no final do procedimento, que se inicia com a apresentação do requerimento e demais documentos que o compõem, consoante referido anteriormente, gerando protocolo, que tem prazo legal de 30 dias no Registro de Imóveis. Entretanto, no caso da usucapião, o protocolo poderá ser prorrogado pelo prazo necessário para processar a usucapião extrajudicial.
O registrador fará análise formal do requerimento e dos documentos apresentados, sendo a ele facultado impor exigências e realizar diligências, a fim de formar seu convencimento.
De acordo com Nobre (2018), o registrador pode, na primeira fase de qualificação, impor exigências, as quais, caso não cumpridas, poderão causar o indeferimento do pleito, aduzindo que “o registrador tem ampla liberdade para a análise e a gestão da prova, podendo exigir complementações ou, de ofício, realizar diligências, inclusive ao local da posse, se assim entender conveniente”. (NOBRE, 2018, p. 221)
Deve ser efetuada notificação dos titulares do imóvel, constantes na matrícula, dos titulares de direitos reais e dos confrontantes do imóvel. A notificação pode ser feita pelo oficial registrador de imóveis, pelo oficial do registro de títulos e documentos ou por correio, com aviso de recebimento. O prazo para manifestação dos interessados é de quinze dias, sendo o silêncio interpretado como concordância.
Salienta-se que, caso todos os interessados já tenham prestado anuência na documentação apresentada ao registrador de imóveis, as notificações serão desnecessárias, bem como que, caso o requerente apresente justo título, como por exemplo, um contrato de promessa de compra e venda, onde já houve quitação, não será necessária a anuência do proprietário tabular, nem tampouco sua notificação.
Após qualificação positiva, deverá o registrador de imóveis expedir notificações, com aviso de recebimento, às Fazendas Públicas da União, Estados e Municípios, para que mencionem, no prazo de quinze dias, interesse pelo no procedimento administrativo.
De acordo com o que menciona Melo (2019), em virtude de que a legislação não logrou êxito em tornar desnecessária a ciência do procedimento a eventuais interessados, cabe ao registrador de imóveis publicar edital em jornal de grande circulação, abrindo prazo de quinze dias para eventuais impugnações.
Tanto no caso de reconhecimento, como no caso de rejeição da usucapião, o registrador deverá fundamentar sua decisão, mediante apresentação de nota elucidativa.
4.1 Demonstração de óbice à correta escrituração
Ao editar o Provimento nº 65, o Conselho Nacional de Justiça criou um importante requisito ao reconhecimento da usucapião extrajudicial, conforme dispõe o § 2º do artigo 13º do Provimento nº 65/CNJ, que assim refere:
§ 2º Em qualquer dos casos, deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, devendo registrador alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa na referida justificação configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei.
Depreende-se da análise do referido dispositivo, que houve preocupação do Conselho Nacional de Justiça com o uso desmedido da usucapião extrajudicial com o intuito se evadir do pagamento dos impostos referentes à transmissão dos imóveis.
Em virtude do princípio da tecnicidade, que norteia a atividade notarial, segundo o qual tem-se que o tabelião precisa orientar as partes interessadas acerca da melhor solução jurídica à questão. Diante disso, em sendo possível a lavratura de escritura de transmissão da propriedade, não se deve optar pelo procedimento da usucapião extrajudicial, mas apenas quando houver impossibilidade de lavratura de escrituras de compra e venda, doação, partilha.
Com relação à exigência criada pelo § 2º do artigo 13º do Provimento nº 65 do CNJ, afirma Marcelo Couto (2019) que:
(...) a usucapião extrajudicial não substitui as formas ordinárias de transferência de propriedade, esclarecendo que, nos casos em que for possível a transferência da propriedade por escritura pública ou inventário, não será cabível a usucapião extrajudicial. Essa exigência se justifica na finalidade de evitar fraudes e formas de eximir as partes do pagamento dos tributos incidentes sobre eventual transferência regular da propriedade do imóvel. (COUTO, 2019, p. 157, apud BOCZAR; CHAGAS e ASSUMPÇÃO, 2019, p. 1)
No mesmo interim, Francisco Nobre (2018) refere que o Provimento nº 65/CNJ criou a necessidade de apresentação de “justa causa” para a via extrajudicial, mencionando que, “embora sem maior fundamento científico, a preocupação com a adequada motivação do uso da usucapião tem razões práticas compreensíveis” (NOBRE, 2018, p. 209), a fim de que se evite a burla ao rigor da qualificação registral e evasão fiscal dos impostos de transmissão.
Desta forma, verifica-se que o registrador de imóveis não pode permitir que a utilização da via extrajudicial seja um meio de abuso de direito, ou seja, de burlar o pagamento dos tributos sobre a transferência da propriedade dos imóveis, que são o ITBI, nos casos de transmissão inter vivos e o ITCD, nos causas de transmissão causa mortis.
Vale referir que a novidade que exige a comprovação de um óbice à transferência da propriedade pelos meios comuns, trata-se de inovação regulamentar, já que o requisito não é exigido por lei. Salienta-se que, nos casos de propositura de ação judicial de usucapião, inexiste tal requisito.
Compreendendo a importância deste requisito, Ana Clara Amaral Arantes Boczar, Daniela Bolivar Moreira Chagas e Letícia Franco Maculan Assumpção, elaboraram artigo denominado “USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL: A necessidade de comprovação de óbice para a transferência da propriedade pelos meios comuns”[17], no qual apresentaram uma série de hipóteses que consubstanciam o óbice. São as hipóteses:
A primeira possibilidade aventada é a do imóvel invadido, em virtude de que, neste caso, não existe negócio jurídico com o proprietário tabular do imóvel e, consequentemente, não há que se falar em lavratura de escritura, já que trata da posse injusta que se operou contra a vontade do possuidor anterior.
A segunda hipótese referida é a da não localização do alienante. Nesse caso, há a existência, por exemplo, de um contrato particular de promessa de compra e venda ou procuração que consubstancie a transmissão do imóvel, munida de prova de pagamento e até mesmo de recibo de quitação. Entretanto, o alienante não é encontrado para lavrar a escritura definitiva. Salienta-se que o caput e o § 1º do artigo 13 do Provimento nº 65 referem que a prova de quitação e o compromisso de compra e venda configuram justo título a ensejar o reconhecimento da usucapião, dispensando, inclusive, a notificação do titular do imóvel.
Conquanto referida situação fática seja apta a ensejar ação de adjudicação compulsória, há de se observar que a propositura da mencionada ação não se trata de meio comum para regularização da propriedade. Portanto, conforme entendimento jurisprudencial, decorrente da “Dúvida 1070011-04.2018.8.26.0100. 1ª Vara de Registros Públicos. Diário de Justiça Eletrônico, São Paulo, 12 nov. 2018”, mencionada por Marcelo de Rezende Campos Marinho Couto (COUTO, 2019, apud, BOCZAR; CHAGAS e ASSUMPÇÃO, 2019, p. 3), em sendo faculdade do requerente, este pode optar pelo procedimento de usucapião extrajudicial ao invés da adjudicação.
A terceira situação trazida à baila é a da extinção irregular da pessoa jurídica que alienou o imóvel, na medida em que não ocorreu a liquidação da pessoa jurídica, nem tampouco foi indicado sócio responsável para transferir os bens antes da extinção. Nesse caso, resta configurado o óbice à escrituração pelas vias ordinárias.
Outra situação apresentada é a da pessoa jurídica que não tem CND, nos estados em que a CND é exigida para lavratura de escritura. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou, considerando inconstitucional a restrição imposta pelo Estado ao livre exercício da atividade econômica, nos casos em que a restrição for utilizada como meio de cobrança de tributos[18].
O caso de imóvel usucapiendo localizado em loteamento irregular ou clandestino, sob a perspectiva do referido artigo, também enseja o reconhecimento de óbice à transmissão pelas vias normais, na medida em que, em se tratando de loteamento irregular ou clandestino, é inviável a escrituração da transmissão. Ademais, o Provimento nº 65 permite a usucapião extrajudicial de imóvel não matriculado, bem como elucida, no artigo 25[19], que o registrador de imóveis não recai na prática de crime ao registrar loteamento irregular, quando reconhecer a usucapião.
A possibilidade de recusa a realizar o inventário por parte dos herdeiros do alienante, da mesma forma, caracteriza óbice à transferência pelos meios comuns, uma vez que não se pode compelir os herdeiros a realizarem inventário, quer pela via judicial, quer pela via extrajudicial. Desta forma, em havendo instrumento de promessa de compra e venda firmado por pessoa que, posteriormente, veio a falecer, e em seus herdeiros não tendo intenção de fazer inventário, a alternativa é recorrer ao procedimento de usucapião extrajudicial.
Ressalte-se que essa hipótese não se confunde com a de que os próprios herdeiros busquem a via judicial, a fim de se esquivar de recolher o imposto pela transmissão causa mortis dos bens que eles próprios iriam receber.
Nesse ínterim, também é possível o reconhecimento da usucapião nos casos em que ocorram vícios na escritura pública de cessão de direitos hereditários[20].
Mais uma hipótese avençada é a de inventários sucessivos que levam à excessiva onerosidade. Há casos em que o imóvel onde é exercida a posse está transcrito em nome de pessoas falecidas há muito tempo, razão pela qual, para regularizar a propriedade, observando a cadeia sucessória, seria necessária a realização de inúmeros inventários, tornando demasiadamente onerosa a regularização por parte do atual detentor da posse.
A situação do imóvel inferior ao módulo urbano ou rural, igualmente, concretiza o óbice à regularização pela escrituração. Quando da lavratura da escritura, o tabelião irá observar os módulos alienados, uma vez que as frações mínimas de parcelamento, tanto de imóveis urbanos, quanto rurais, que são determinados por lei. Ocorre que, geralmente há situações fáticas em que a área objeto da usucapião é inferior aos limites definidos.
No caso da Usucapião Especial Urbana, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou em Repercussão Geral sobre o tema[21], aduzindo que, em se tratando a modalidade de usucapião especial urbana decorrente de previsão constitucional, não pode o plano diretor – legislação municipal, ensejar óbice à usucapião, haja vista se tratar de norma hierarquicamente inferior.
Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça[22] também já se manifestou acerca do reconhecimento da usucapião especial rural de imóvel inferior ao módulo rural, argumentando que o artigo 191 da Constituição Federal estabelece quantum máximo de área, mas não faz menção ao mínimo, razão pela qual, estando presentes os requisitos, não há óbice ao reconhecimento da usucapião.
Nesse sentido, assim é o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
APELAÇÃO. AÇÃO DE USUCAPIÃO. ART. 1.239 DO CC. ÁREA INFERIOR AO MÓDULO RURAL. PRESENÇA DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO. INTERESSE PROCESSUAL E POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. SENTENÇA REFORMADA. APLICAÇÃO DO ART. 1.013, §3º, do CPC/2015. PREENCHIDOS OS REQUISITOS DA USUCAPIÃO NA MODALIDADE ESPECIAL URBANA. I. O feito encontra-se apto ao julgamento na forma do artigo 1.013, § 3º, do CPC/2015. Observados os princípios processuais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. II. Não se pode negar à parte o direito de buscar o Poder Judiciário para declarar sua eventual propriedade sobre bem imóvel descrito na inicial, reputando-se legítima a escolha da via da ação de usucapião para alcançar a declaração de domínio. No caso, o imóvel está localizado dentro do todo maior, possuindo dimensão menor que o módulo rural da região. Existência de jurisprudência que ampara a pretensão da autora. Precedentes jurisprudenciais. III. Vencida a questão da limitação da área, o conjunto probatório do feito demonstra, com segurança, que a apelante preenche os requisitos necessários a declaração de domínio do imóvel descrito na inicial, na modalidade do art. 1.239 do CC. É reconhecida como proprietária da fração rural, nele residindo desde 2005. Mantém o imóvel cercado, sendo que, da fração de terras rurais retira seu sustento e de sua família, uma vez que vive do que produz nas terras, além de possuir criação de animais. Além do mais, esse é seu único imóvel. Apelação provida.[23] (grifou-se)
Por outro lado, o Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, em recente decisão, datada de 02/02/2021 e publicada em 23/04/2021, nos autos da Apelação Cível nº 1004047-07.2020.8.26.0161, entendeu que a leitura do § 2º do artigo 13º, é no sentido de que tão somente deve ser justificado no requerimento o motivo de se optar pela usucapião extrajudicial, ao invés de regularizar a transmissão da propriedade pelas vias comuns, mas que a possibilidade de intentar outro meio de regularização da propriedade que não a usucapião não configura óbice ao procedimento extrajudicial, haja vista se tratar de faculdade da parte optar pela via extrajudicial.
Acerca da referida decisão, assim proferiu o Corregedor Geral de Justiça do Estado de São Paulo Ricardo Anafe[24]:
Em breve resumo, a usucapião extrajudicial não é uma nova modalidade de aquisição originária da propriedade, mas mero procedimento facultativo apresentado diretamente no Cartório de Registro de Imóveis em que estiver situado o imóvel usucapiendo para fim de declaração da propriedade em favor do ocupante, desde que preenchidos os requisitos legais para tanto.
O obstáculo apresentado pela Oficiala do Registro de Imóveis de Diadema não se sustenta, pois a multiplicidade de opções franqueadas pela legislação vigente para regularização do imóvel a cargo do ocupante não é excludente ainda que uma ou outra possibilidade seja mais demorada ou mais ou mesmo custosa.
Compete a Registradora analisar o pedido administrativo de usucapião segundo os requisitos impostos na legislação civil para a modalidade nomeada no pleito inaugural e não embaraçar o uso do procedimento administrativo sob o argumento de existirem outras opções de regularização do imóvel simplesmente.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso para julgar improcedente a dúvida, com determinação para prosseguir o procedimento extrajudicial de usucapião pela Oficiala do Registro de Imóveis de Diadema. (grifou-se)
O que se extrai da recente decisão, portanto, é que, desde que estejam presentes os requisito legais, bem como que não haja burla ao fisco, deve ser reconhecido o procedimento extrajudicial, a fim de que não se burocratize demasiadamente um instituto que foi criado pelo Direito brasileiro para facilitar a regularização de imóveis.
Depreende-se, assim, que, apesar de a inovação não decorrer de texto de lei, há de ser demonstrado o óbice à escrituração da transmissão da propriedade pelas vias ordinárias. Entretanto, inúmeras são as situações que justificam o obstáculo, quer seja apenas pela demonstração do óbice no requerimento, quer seja pela efetiva comprovação do obstáculo. Desta forma, o óbice apresentado deve ser analisado de forma subjetiva, em cada caso concreto, por parte do oficial registrador de imóveis.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante todo o exposto, depreende-se que a Usucapião Extrajudicial não é uma nova modalidade de usucapião, mas sim um novo procedimento de reconhecimento da usucapião, que visa regularizar a aquisição da propriedade de forma mais célere e eficaz.
Conforme referido por Marcelo Couto (COUTO, 2019, p. 161, apud BOCZAR; CHAGAS e ASSUMPÇÃO, 2019, p. 15), apenas “a situação concreta poderá demonstrar que o óbice existente justifica o cabimento da via extraordinária da usucapião, levando-se em conta a complexidade do caso, o animus dos envolvidos, e a questão tributária”.
Ademais, em se tratando o instituto de uma forma que visa acelerar o alcance da pretensão em favor do requerente, bem como de garantir o cumprimento do preceito constitucional da função social da propriedade, não se mostra razoável burocratizar demasiadamente o procedimento.
Corroborando as palavras de Melo (2019), tem-se que o procedimento da usucapião extrajudicial contribui de forma mais rápida e eficaz com o reconhecimento da usucapião, que é decorrente da posse prolongada no tempo, gerando à sociedade convencimento de que o possuidor é realmente o proprietário e cumpre a função social do imóvel.
Portanto, desde que cumpridos os requisitos legais exigidos para a configuração de cada espécie de usucapião, observada a inexistência de fraude ou de modo de burla e evasão às questões fiscais, o registrador de imóveis deve analisar a exigência trazida pelo § 2º do artigo 13 do Provimento nº 65 do CNJ caso a caso, compreendendo a diversidade de cada situação fática, bem como a subjetividade do que consubstancia o óbice na situação concreta, reconhecendo a usucapião na via extrajudicial.