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Aspectos processuais da nova lei antitóxicos

23/11/2006 às 00:00
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RESUMO: Depois de abordarmos os aspectos penais da lei antidrogas no artigo anterior (sucintos comentários à lei 11.343/2006), o presente trabalho tentará abordar, agora, os aspectos processuais da nova lei e, como no aspecto do direito material, o legislador já havia cometido vários deslizes, não poderíamos esperar diferença no âmbito do direito processual.


INTRODUÇÃO:

Como em todo estudo de aspectos processuais, começaremos pelo da competência, uma vez que o legislador a alterou em relação ao tráfico internacional de entorpecentes, que, no passado, era regulado no art. 27 da Lei 6.368/76, assim redigido:

"O processo e julgamento do crime de tráfico com exterior caberão à justiça estadual com interveniência do Ministério Público respectivo, se o lugar em que tiver sido praticado, for município que não seja sede de vara de Justiça Federal, com recurso para o Tribunal Federal de Recursos."

Ocorre que a nova redação do art. 70, parágrafo único, da Lei 11.343/06 alterou a competência anterior no novo artigo transcrito abaixo:

"Art. 70. O processo e o julgamento dos crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, se caracterizado ilícito transnacional, são da competência da Justiça Federal.

Parágrafo único. Os crimes praticados nos Municípios que não sejam sede de vara federal serão processados e julgados na vara federal da circunscrição respectiva."

Foi modificada a exceção, agora não será mais possível a competência da Justiça Estadual, quando no local do crime não exista Vara Federal. Agora, com a introdução do parágrafo único do art. 70 citado acima, o processo deverá correr na Vara Federal da circunscrição respectiva, e os recursos, claro, deverão ser encaminhados ao Tribunal Regional Federal.

Com relação às súmulas 522 do S.T.F e 122 do S.T.J não deverá ocorrer nenhuma mudança.

Ao nos depararmos pela primeira vez com a redação do § 1° do art. 48 da Lei 11.343/06, tivemos a impressão (errada) de que só se aplicaria o procedimento do art. 60 da Lei 9.099/95 aos crimes previstos no art. 28 da Lei ora em análise, mas, observando melhor, pode-se notar que não, já que o art. 33, § 3°, e o art. 38 da lei também possuem penas compatíveis na utilização do procedimento da lei 9.099/95, ou seja, são também infrações de menor potencial ofensivo. É bem verdade que o legislador se esforçou em redigir de forma confusa o § 1°, mesmo assim, não há como se pensar diferente. Na mesma esteira se encontra Luiz Flávio Gomes ao comentar esse parágrafo em seu artigo "nova lei de tóxicos: qual procedimento deve ser adotado? Em seu artigo ele assim comenta:

"Quem desavisadamente lesse o § 1° que estamos comentando chegaria à conclusão de que o procedimento dos juizados (art. 60 e ss. da Lei 9099/1995) somente seria aplicável para as infrações (de menor potencial ofensivo) previstas no art. 28. Essa, entretanto, não nos parece a leitura correta do diploma legal ora enfocado. Na nova lei de drogas, para além das infrações do art. 28, outras existem com sanção cominada não superior a dois anos. São elas: art. 33, § 3 (tráfico privilegiado) e art. 38 (prescrição culposa de drogas)".

Iniciaremos agora por analisar o parágrafo 2° do art. 48 da lei em comento, em que está assim esculpido:

"§ 2° Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários" (grifo nosso).       

Aqui já começam as primeiras dissensões sobre o tema prisão em flagrante. Tivemos a oportunidade de ler alguns artigos publicados na internet __ o tema ainda é recente __ e verificamos que poucos o abordaram e os que comentaram, ao que parece, não entenderam bem a norma. Um artigo afirmava que, agora, já não se poderá prender o usuário em flagrante, ou seja, se uma autoridade ou agente da autoridade presenciar alguma das condutas descritas no art. 28 da lei 11.343/06, nada poderá fazer, pois a lei agora proíbe a prisão em flagrante.

Não é isso, para se interpretar corretamente a norma é necessário pequeno domínio do tema prisão em flagrante. A prisão em flagrante possui dois momentos distintos: primeiro a prisão captura, que é o encaminhamento do agente da prática do fato ilícito até a delegacia, segundo a lavratura do auto de prisão em flagrante, o que seria, em outros casos, o título prisional do infrator. Portanto, o que a lei nova está vedando é apenas a segunda parte da prisão em flagrante, isto é, a lavratura do auto de prisão, a qual realmente não faria o menor sentido, pois o autor do fato não pode ficar detido.

Alguns artigos também já andam alardeando que, se a autoridade policial tentar levar o usuário até a delegacia, aquela estará incurso no crime de abuso de autoridade; voltamos a deixar claro que não se trata disso, o usuário deverá realmente ser encaminhado até a delegacia pelo já exposto acima, e o agente condutor não estará incurso em nenhuma conduta de abuso de autoridade.

Continuando no parágrafo § 2° do art. 48, verificamos um detalhe interessante de que talvez o legislador não se tenha dado conta, porquanto, como já grifado acima, no art. 48, § 2°, a expressão "assumir o compromisso de a ele comparecer" já foi usada na lei 9.099/95 no art. 69, parágrafo único, só que com uma diferença: aqui a expressão termina com a possibilidade de prisão do agente se esse não se comprometer a comparecer em juízo, mas, na nova lei, essa expressão ficou ausente, o que poderia dar a entender ao estudante de primeira linhas de Direito que, no caso de recusa do usuário, esse teria que ficar detido, como ocorre no procedimento da lei. 9099/95, até porque o § 1° do art. 48 faz menção expressa na aplicação dessa lei às condutas do art. 28. Mas essa não pode ser a melhor interpretação, pois, ao analisarmos os parágrafos subseqüentes, parece não ser essa a intenção do legislador, (seria errar demais, até para nossos legisladores), portanto, ao usar a expressão "vedada a detenção do agente" no § 3°, e no § 4° a expressão "e em seguida liberado", não nos parece restar dúvida de que realmente o legislador errou sim, só que no § 2°, ao tentar impor um compromisso ao agente que de nada efetivo trará se ele não se comprometer.

No parágrafo 3° do mesmo artigo, ficamos estarrecidos com a péssima redação, a ponto de deixar em aberto qualquer tipo de interpretação razoável. Estando assim redigido esse parágrafo:

"Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2° deste artigo, serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente".

Não resta dúvida de que o legislador, ao dar ênfase no § 2°, de que o infrator da conduta do art. 28 será encaminhado ao "juízo competente", deixou claro sua intenção de deixar a autoridade policial o mais distante possível do usuário e, nesse sentido, vemos como salutar, já que, na prática, era sempre este que sofria na delegacia, muitas vezes sendo achacado por policiais de péssima conduta. Porém, sabemos, também, que juízo de plantão 24 (vinte e quatro horas) no Brasil é pura utopia. Portanto, tudo continuará como está, isto é, o usuário sendo encaminhado para a delegacia, e lá, a autoridade policial tomará as providências necessárias.

Então vejamos qual seria a utilidade do § 3°? Quais seriam as providências que deveriam ser tomadas pela autoridade policial na falta da autoridade judicial? A resposta deveria estar clara e expressa no § 2°, mas, a nosso ver, não está. Iremos fracionar então as condutas do § 2° para um melhor entendimento dessas providências: 1) "Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante". Vemos aqui que essa providência já seria tomada pela autoridade policial, sendo desnecessário tal lembrança; 2) "Devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao Juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer". Ora, se, no § 2°, o legislador já prevê a ausência da autoridade judicial com o devido compromisso de o agente comparecer posteriormente, não há sentido na repetição dessa providência pela autoridade policial no § 3°; 3) "Lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários". Mais uma inutilidade, pois já são da atribuição da autoridade policial tais providências, como se tem verificado na aplicação dos procedimentos da Lei 9.099/95.

Já ouvimos algumas interpretações mais amplas, no sentido de que seria possível, no caso da ausência da autoridade judicial no momento da captura, a aplicação direta pela autoridade policial das sanções do art. 28, I, II, III da Lei comentada. Não nos parece ser a melhor interpretação, já que o § 3° nos remete tão-somente às providências do § 2°, e não às aplicações das "sanções" do art. 28, o que seria um erro crasso, mesmo vindo de nossos legisladores, pois seria impensável admitir que a autoridade policial pudesse aplicar sanções sem o devido processo legal ou, ao menos, algo parecido com o que podemos chamar de devido procedimento legal adotado na lei 9.099/95, mesmo se tratando de sanções de pouca ou nenhuma efetividade, mas, ainda assim, com natureza de sanção.


DA INVESTIGAÇÃO

Detalhe pouco ou nada comentado na doutrina diz respeito ao art. 17 da Lei 6.368/76 ora revogada, o qual era, em nosso entender, o único referente ao inquérito sigiloso em nossa legislação, porquanto impunha uma sanção de 2 (dois) a 6 (seis) meses e multa, bem como, sanções administrativas. Em outros inquéritos, tais sanções não são impostas, sendo, portanto, esse o único inquérito realmente sigiloso.

O art. 50 da lei em comento traz novidade apenas quando abre vista de imediato ao Ministério Público, para ser exato, em 24 horas, já na fase de flagrância, o que, sem dúvida, é um avanço, pois, com isso, o legislador está respeitando de uma melhor forma o nosso sistema acusatório, que não é respeitado em muitas leis extravagantes depois da Carta Magna.

O art. 51 aumentou o prazo para o término do inquérito, sendo agora, no caso de indiciado preso, de 30 (trinta) dias e, se o indiciado estiver solto, de 90 (noventa) dias. Tal mudança, veio melhorar a adequação dessa lei com uma possível prisão temporária, o que não ocorria com o prazo da lei anterior. O parágrafo único mais uma vez faz menção a ouvir o Ministério Público, como já comentado acima, muito salutar.

No art. 53, o legislador repete quase que inteiramente o art. 33 da lei 10.409/02, inclusive com os seus erros. Quando nos referimos a erros, estamos referindo- nos à utopia dos incisos I e II do art. 53 da lei, uma vez que, entendemos que esses institutos de polícia infiltrada e do flagrante retardado não podem ser aplicados a todos os casos de maneira abstrata como gostaria o nosso legislador (nesse ponto, para não nos alongarmos muito, remetemos o leitor ao nosso artigo intitulado "Breves Comentários à lei 9.034/95", em que esses institutos foram profundamente debatidos, e lá, demonstrado o nosso entendimento). Ao menos, o legislador manteve na redação desse artigo a vista ao Ministério Público, mas, infelizmente, a mesma redação não está presente no art. 2° da Lei 9.034/95, o que, sem dúvida, poderia melhorar um pouco a utilidade dessa Lei tão confusa.

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No art. 55, o legislador fez melhorias em relação ao artigo anterior (art. 38 da lei 10.409/02), pois, naquele, usou a expressão "notificar o acusado" e não "citação do acusado", como no artigo 38 da lei revogada. Portanto, tecnicamente ficou melhor redigido, uma vez que, como as duas lei contemplam uma defesa prévia antes do juiz receber a denuncia, não era cabível o agente ser citado antes da instauração do processo, portanto, andou bem o legislador ao fazer a troca das expressões.

O art. 56 da Lei traz a figura do assistente, cuja aplicação só seria possível com relação ao art. 38 da Lei 11.343/06, porque, nos demais crimes, não se pode vislumbrar a participação do assistente, uma vez que o bem penalmente tutelado nessa lei é a saúde pública, ou seja, a saúde coletiva de toda a sociedade, sendo, por conseguinte, inviável a intervenção de assistente.

Chegamos finalmente ao art. 59 da lei 11.343/06, mas não chegamos ao final das polêmicas criadas pelo legislador, essa por certo será uma das maiores.

"art. 59 – nos crimes previstos nos arts. 33 e § 1° e 34 e 37 esta Lei, o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, salvo se for primário de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória"

O problema que verificamos aqui diz respeito à aparente confusão criada pelo legislador em relação ao art. 44 da lei 11.343/06, que assim está redigido:

"os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1°, e 34 e 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos" (grifo nosso).

Pois bem, no caso de prisão em flagrante de um traficante de bons antecedentes e primário, não terá direito a liberdade provisória, como verificado; porém, depois de passar toda a instrução processual penal preso, se condenado, esse poderá apelar em liberdade em função da redação do art. 59 transcrita acima.

Esse problema não é novo na doutrina e na jurisprudência e teve início na entrada em vigor da Lei 8.072/90, especificamente no seu parágrafo 2° do art. 2º, em relação ao art. 594 do CPP; entretanto já bastante debatido e pacificado. Porém, com a nova lei, irão ocorrer de novo algumas discussões sobre o tema. Entendemos que não há nenhuma dúvida a respeito do tema, bastando aplicar o melhor dos princípios __ o "bom senso", melhor denominado de princípio da razoabilidade, ou seja, se o traficante for preso em flagrante e permanecer assim durante todo o processo, ao ser condenado em sentença deverá permanecer preso, não podendo apelar em liberdade. No entanto, se o traficante estiver respondendo ao processo solto, quando da sua condenação em sentença, se o réu possuir os requisitos dos bons antecedentes e primariedade, entendemos que poderá apelar em liberdade, pois só assim estaremos respeitando a lógica sistêmica das normas.

Esperamos ter contribuído com mais esse artigo, tentando aproveitar de toda forma possível essa nova Lei, que muitos com certeza irão taxar de inconstitucional em vários aspectos, alguns com alguma razão, e outros nem tanta, pois temos notado que grande parte dos autores sempre dão preferência a bradar a inconstitucionalidade de todas as Leis que entram em vigor sem se esforçar na tentativa de uma possível compatibilidade com a nossa Constituição da República. O que fica de tudo é que devemos ser otimistas em relação a essa nova lei, até porque, como declarado com propriedade pelo professor Antônio José Campos Moreira:"no passado eram duas Leis ruins e agora só temos uma".


BIBLIOGRAFIA:

Gomes, Luiz Flávio. Nova lei de tóxicos não prevê prisão para usuário. Jus Navegandi, Teresina, ano 10, n. 1141, 16 ago 2006.

Gomes, Luiz Flávio. Nova lei de tóxicos: qual procedimento deve ser adotado?. Jus Navegandi, Teresina, ano 10, n. 1154, 29 ago 2006.

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Sobre o autor
João Carlos Carollo

advogado no Rio de Janeiro (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAROLLO, João Carlos. Aspectos processuais da nova lei antitóxicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1240, 23 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9199. Acesso em: 19 abr. 2024.

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