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Os princípios da eticidade, da socialidade e da operabilidade no Código Civil de 2002

30/11/2006 às 00:00

Resumo:


  • O Código Civil de 2002 trouxe uma recodificação do direito privado no Brasil, enfatizando a eticidade, socialidade e operabilidade, e buscando integrar os princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, nas relações privadas.

  • Críticas surgem quanto à expressão "direito civil constitucional", porém, a prática jurídica contemporânea reflete um direito civil alinhado aos valores éticos e sociais, com maior poder conferido ao juiz para buscar soluções justas e equitativas.

  • O novo Código Civil busca superar a visão individualista do Código de 1916, priorizando a função social e a efetividade das normas, além de permitir a utilização de cláusulas gerais e outros elementos externos para alcançar a justiça nas decisões judiciais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

É indubitável que o Código Civil sancionado em 2002 foi responsável pela recodificação do direito privado no Brasil, na medida em que o inseriu na rota da ordem constitucional com o claro objetivo de dar efetividade às suas diretrizes. [01]

Não é por outra razão que Carlyle Popp [02] diz que "o Direito Civil está constitucionalizado e há uma indistinta e direta aplicação da norma constitucional às relações privadas". Pelo fato de o ordenamento jurídico ser unitário, a ordem constitucional não estaria acima ou fora, mas sim dentro dele. Por isso, muitos doutrinadores utilizam-se da expressão "direito civil constitucional" para denominar o atual estágio por que passa o direito privado no Brasil. Apesar de sua contínua e indiscriminada utilização, a expressão tem sido objeto de severas críticas, quer por sua imprecisão técnica [03], quer pela sua desnecessidade. [04]

Em que pesem as discussões doutrinárias, o mais importante a ser frisado é que o Código Civil de 2002, ao adotar como seus pilares de sustentação os princípios da eticidade, da socialidade e da operabilidade, resgatou a importância da Ética nas relações privadas, algo que havia sido relegado a um plano secundário na antiga codificação.

O princípio da eticidade tem por escopo valorizar o ser humano na sociedade, o que se dá mediante a efetivação dos princípios constitucionais, mormente o da dignidade da pessoa humana. [05] Alexandre dos Santos Cunha [06] defende que referido princípio, apesar de inserido na Constituição Federal, é, pela sua origem e pela sua concretização, um instituto de direito privado.

Carlyle Popp [07] enfatiza que a dignidade da pessoa humana "significa a superioridade do homem sobre todas as demais coisas que o cercam; é o homem como protagonista da vida social. Representa, então, a subordinação do objeto ao sujeito de direito".

A valorização do ser humano se dá na medida em que a confiança e a lealdade passam a ser imperativos das relações privadas, bem como pelo fato de o julgador ter maior poder na busca da solução mais justa e eqüitativa para os casos concretos que lhe são submetidos, mediante análise subjetiva da questão. Isso implica, em última análise, no afastamento do formalismo jurídico reinante durante a vigência da codificação anterior.

Miguel Reale [08], definidor do Código Civil como "a constituição do homem comum", pondera que o princípio da eticidade afasta o excessivo rigorismo formal ao conferir ao juiz "não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores éticos". José Augusto Delgado [09] aduz que "interpretar as regras do Código Civil com base em princípios éticos é contribuir para que a idéia de justiça aplicada concretamente torne-se realidade", o que é anseio de todos os cidadãos.

O princípio da socialidade, por sua vez, como bem assevera Judith Martins-Costa [10], guarda íntima relação com o princípio da eticidade, sendo certo que a distinção feita entre eles é meramente metodológica. Isso porque as regras dotadas de conteúdo social são fundamentalmente éticas e as normas éticas têm afinidade com a socialidade.

Antonio Jeová Santos [11] diz que a preocupação do legislador do Código Civil vigente foi regular os interesses do "homem situado" e não mais do "homem isolado" como fazia a codificação anterior, na medida em que a vida de relação exige que o homem se projete no mundo e dele participe não como mero espectador, mas como alguém que interfira no resultado. Dessa forma, a finalidade do princípio da socialidade é afastar a mera aplicação do Direito Civil às relações dos particulares, eis que esses vínculos, em diversas oportunidades, podem interessar à sociedade como um todo, autorizando, por conseguinte, a intervenção estatal. Em suma: o princípio da socialidade objetiva afastar a visão individualista, egoística e privatística do Código Civil de 1916. [12]

Rodrigo Reis Mazzei [13] assevera que as relações privadas podem ter enfoques ultrassubjetivos quando as relações entre os particulares não projetam efeitos apenas sobre eles, mas também sobre a sociedade como um todo. Na verdade, o novo Código Civil nada mais fez do que adequar o sistema de direito privado à realidade constitucional.

Por derradeiro, o princípio da operabilidade objetivou a facilitação da aplicação do novo Código Civil, ao afastar a idéia de completude da codificação anterior, e disciplinou a possibilidade de se recorrer a elementos exteriores para se atingir a Justiça, o que se dá, precipuamente, por meio das cláusulas gerais. [14]

Observa Antonio Jeová Santos [15] que o Código Civil de 2002 pretendeu se livrar do rótulo das "leis que não pegam", que são aquelas que não foram promulgadas para o mundo real, "mas para a satisfação de algum parlamentar que quis engrossar o seu currículo com o patrocínio de mais uma lei".

Nesse contexto, José Augusto Delgado [16] diz que, com a entrada do novo Código Civil em vigor, as normas passaram não apenas a existir, mas também a serem válidas, eficazes e efetivas, já que o poder conferido aos juízes teve por escopo -- além de garantir a busca da solução mais justa para o caso concreto --, conferir maior executividade às sentenças e decisões judiciais.

Bem se vê, pois, que a busca pela Justiça por meio do equilíbrio entre os interesses dos indivíduos e da sociedade é a marca fundamental do Código Civil de 2002, o que representa avanço significativo na integração necessária entre Ética e Direito.


Notas

01 É dessa forma que pensa Judith Martins-Costa: "O Código Civil, na contemporaneidade, não tem mais por paradigma a estrutura que, geometricamente desenhada como um modelo fechado pelos sábios iluministas, encontrou a mais completa tradução na codificação oitocentista. Hoje a sua inspiração, mesmo do ponto de vista da técnica legislativa, vem da Constituição, farta em modelos jurídicos abertos. Sua linguagem, à diferença do que ocorre com os códigos penais, não está cingida à rígida descrição de fattispecies cerradas, à técnica da casuística. Um Código não totalitário tem janelas abertas para a mobilidade da vida, pontes que o ligam a outros corpos normativos – mesmo os extra-jurídicos – e avenidas, bem trilhadas, que o vinculam, dialeticamente, aos princípios e regras constitucionais" (MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no projeto do código civil brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 753, jul. 1998, p. 26).

02 POPP, op. cit., p. 170.

03 Gabriel Menna Barreto Von Gehlen diz que "a locução ‘direito civil constitucional’ é um tanto equívoca, à medida que conduz à idéia de um possível direito civil inconstitucional, o que é obviamente um contra-senso. Afinal, desde Marshall e a supremacia da Constituição, o direito tem de ser constitucional, caso contrário ou será nulo ou inexistente, conforme se adote uma ou outra teoria a respeito do fenômeno de inconstitucionalidade: se nem sequer direito é, muito menos direito adjetivado de civil será" (VON GEHLEN, Gabriel Menna Barreto. O chamado direito civil inconstitucional. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 184).

04 Gustavo Tepedino sustenta que "a adjetivação atribuída ao direito civil, que se diz constitucionalizado, socializado, despatrimonializado, se por um lado quer demonstrar, apenas e tão-somente, a necessidade de sua inserção no tecido normativo constitucional e na ordem pública sistematicamente considerada, preservando, evidentemente, a sua autonomia dogmática e conceitual, por outro lado poderia parecer desnecessária e até errônea. Se é o próprio direito civil que se altera, para que adjetivá-lo? Por que não apenas ter a coragem de alterar a dogmática, pura e simplesmente? Afinal, um direito civil adjetivado poderia suscitar a imprecisão de que ele próprio continua como antes, servindo os adjetivos para colorir, com elementos externos, categorias que, ao contrário do que se pretende, permaneceriam imutáveis. A rigor, a objeção é pertinente, e a tentativa de adjetivar o direito civil tem como meta apenas realçar o trabalho árduo que incumbe ao intérprete. Há de se advertir, no entanto, desde logo, que os adjetivos não poderão significar a superposição de elementos exógenos do direito público sobre conceitos estratificados, mas uma interpenetração do direito público e privado, de tal maneira a se reelaborar a dogmática do direito civil. Trata-se, em uma palavra, de estabelecer novos parâmetros para a definição de ordem pública, relendo o direito civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não-patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais" (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 22).

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05 José Augusto Delgado diz que "a eticidade no Novo Código Civil visa imprimir eficácia e efetividade aos princípios constitucionais da valoração da dignidade, da cidadania, da personalidade, da confiança, da probidade, da lealdade, da boa-fé, da honestidade nas relações jurídicas de direito privado" (DELGADO, op. cit., p. 176).

06 CUNHA, Alexandre dos Santos. Dignidade da pessoa humana: conceito fundamental do direito civil. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 260.

07 POPP, op. cit., p. 170 et. seq.

08 REALE, Miguel. Visão geral do projeto de código civil. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 752, jun. 1998, p. 22-30.

09 DELGADO, op. cit., p. 166.

10 Confira-se as palavras da autora: "Ambas – eticidade e socialidade – constituem perspectivas reversamente conexas, pois as regras dotadas de alto conteúdo social são fundamentalmente éticas, assim como as normas éticas têm afinidade com a socialidade. A distinção ora procedida, de cunho meramente metodológico, não faz mais do que assinalar ênfases, ora pendendo para o fundamento axiológico das normas, ora inclinando-se às suas características numa sociedade que tenta ultrapassar o individualismo, não significando, de modo algum, que uma regra ética não se ponha, também, na dimensão da socialidade, e vice-versa" (MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes teóricas do novo código civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 131).

11 SANTOS, A., op. cit., p. 23.

12 Miguel Reale, na Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código Civil de 2002, defende que a socialização do Direito é uma das grandes contribuições da nova codificação: "Superado de vez o individualismo, que condicionara as fontes inspiradoras do Código vigente; reconhecendo-se cada vez mais que o Direito é social em sua origem e em seu destino, impondo a correlação concreta e dinâmica dos valores coletivos com os individuais, para que a pessoa humana seja preservada sem privilégios e exclusivismos, numa ordem global de comum participação, não pode ser julgada temerária, mas antes urgente e indispensável, a renovação dos códigos atuais, como uma das mais nobres e corajosas metas de governo".

13 MAZZEI, op. cit., p. CXVII.

14 Cláudio Luiz Bueno de Godoy diz que pelo princípio da operabilidade "procura-se a superação de divergências teoréticas e formais, acerca de institutos de direito, pela sua capacidade de ser executado. Por outra, prefere-se à vinculação da norma a um conceito por vezes tecnicamente discutível, o seu tratamento de modo a, fugindo desse liame teórico, permitir a sua mais fácil realização – sentido da operabilidade. O exemplo citado é o do tratamento da prescrição e da decadência, sobre cuja distinção teórica divergem, de há muito, os autores. Preferiu-se no Código Civil, em vez de tentar solucionar ou se posicionar sobre o debate, regrá-las de forma a que possam ser operadas sem gerar dúvidas. Isso ubicando a regra da prescrição em dispositivo próprio da parte geral, para que se saiba que, fora dele, serão de decadência" (GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 118).

15 SANTOS, A., op. cit., p. 98.

16 DELGADO, op. cit., p. 167.

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Sobre o autor
André Soares Hentz

advogado em Ribeirão Preto (SP), mestre em Direito na UNESP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HENTZ, André Soares. Os princípios da eticidade, da socialidade e da operabilidade no Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1247, 30 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9221. Acesso em: 22 dez. 2024.

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