I. Preâmbulo
Não é de bom exemplo fazer caso nem cabedal de coisas insignificantes ou ninharias. “De minimis non curat praetor”, advertiam os antigos (o que, posto em linguagem, soa: o magistrado não se ocupa de questões de somenos).
Não decai a Justiça de sua grandeza e confiança, antes se recomenda ao louvor dos espíritos retos, se, aferindo a lesão patrimonial por craveira benigna, rejeita denúncia.
Nos casos de insignificante a lesão ao bem jurídico protegido e mínimo o grau de censurabilidade da conduta do agente, pode o Magistrado, com prudente arbítrio, deixar de aplicar-lhe pena (e ainda pôr termo à “persecutio criminis”). É que, nas ações humanas, o Direito Penal somente deve intervir como providência “ultima ratio”.
Ao Juiz não esqueçam jamais aquelas severas palavras de Rui:
“Não estejais com os que agravam o rigor das leis, para se acreditar com o nome de austeros e ilibados. Porque não há nada menos nobre e aplausível que agenciar uma reputação malignamente obtida em prejuízo da verdadeira inteligência dos textos legais” (Oração aos Moços, 1a. ed., p. 43).
II. O Princípio da Insignificância e a Lição da Doutrina
Tal princípio, que permite escusar de punição o autor de infração mínima, tem merecido a muitos penalistas — alguns da primeira esfera — crítica lisonjeira e voto prestigioso. Eis as lições que deram:
a) “As sanções penais são o último recurso para conjurar a antinomia entre a vontade individual e a vontade normativa do Estado. Se um ilícito, hostil a um interesse individual ou coletivo, pode ser convenientemente reprimido com as sanções civis, não há motivo para a reação penal” (Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1978, vol. I, t. II, p. 34).
b) “O que se não compreende é que a Justiça Criminal movimente todo o seu aparatoso mecanismo para o processo e julgamento de lesões mínimas e insignificantes, praticadas eventualmente por pessoas destituídas de qualquer periculosidade, e que sempre foram ordeiras e de boa conduta” (José Frederico Marques, Tratado de Direito Penal, 1961, vol. IV, p. 200).
c) “(…) o Direito Penal não deve intervir quando a lesão jurídica é mínima, reservando-se para as ofensas graves” (Damásio E. de Jesus, Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 103).
d) “(…) o Direito Penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não se deve ocupar de bagatelas” (Francisco de Assis Toledo, Princípios Básicos do Direito Penal, 1994, p. 57).
e) “Embora não presente em texto legal, o princípio da intervenção mínima, de cunho político-criminal, impõe-se ao legislador e ao intérprete, por sua compatibilidade com outros princípios jurídico-penais dotados de positividade, e com os pressupostos políticos do estado democrático de direito” (Carlos Vico Mañas, O Princípio da Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito Penal, 1994, p. 57).
III. O Princípio da Insignificância e a Jurisprudência dos Tribunais
Na aplicação da lei ao caso concreto, nossos Tribunais, como quem põe a mira em atenuar os ápices do direito repressivo, não relutaram em apadrinhar o referido princípio. Estão a demonstrá-lo os julgados seguintes, reproduzidos por suas ementas:
a) “Por isso, deve o órgão investido do ofício judicante resistir à tendência de, em época de delinquência exacerbada, caminhar para a persecução penal a ferro e fogo, com desprezo de normas comezinhas, entre as quais surge, com relevância maior, a alusiva ao princípio da não-culpabilidade” (Rev. Trim. Jurisp., vol. 171, p. 582; STF; 2a. Turma; rel. Min. Marco Aurélio).
b) “O direito penal não deve se ocupar de condutas que produzam resultados, cujo desvalor — por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes — não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social” (Rev. Tribs., vol. 84, p. 477; STF; 1a. Turma; rel. Min. Celso de Mello).
c) “Aplica-se o princípio da insignificância (ou da bagatela) se o agente é pessoa em estado de miserabilidade, que abateu três animais de pequeno porte para subsistência própria” (STJ; REsp nº 182.487-RS; rel. Min. Fernando Gonçalves; 6a. Turma; j. 9.3.99; DJU 5.4.99, p. 160).
IV. Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo
PODER JUDICIÁRIO ________________________ Tribunal de Alçada Criminal
Décima Quinta Câmara. Apelação Criminal nº 1.303.549/6. Comarca: Presidente Prudente. Apelante: Ministério Público. Apelado: MMP
Voto nº 3817
Relator
– Se pequeno o prejuízo da vítima e primário o réu, indivíduo de escassos meios de subsistência, não há censurar decisão que, reputando crime de bagatela o fato que praticou, rejeita a denúncia. Tal solução, além de conformar-se com a tradição jurídica (“De minimis non curat praetor”), atende ao direito positivo, que manda olhar o Juiz para os fins sociais da lei ao aplicá-la (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil).
– O sujeito, a quem a vida já puniu severamente, deixando de prover-lhe às primeiras necessidades, parece bem, e ainda justo, em certos casos, poupá-lo ao rigor da lei penal, que tem por odioso todo o excesso: “Noli esse justus multum” (Ecl 7,17). Não sejas por demasiado justo!
1. Da r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito da 2a. Vara Criminal da Comarca de Presidente Prudente, absolvendo, com fundamento no art. 386, nº III, do Código de Processo Penal, MMP da imputação de infrator do art. 171, “caput”, do Código Penal, interpôs recurso para este Egrégio Tribunal, com o escopo de reformá-la, o ilustre representante do Ministério Público.
Em esmeradas, substanciosas e elegantes razões de apelo, afirma que, ao aplicar à hipótese dos autos o “princípio da insignificância e da ultima ratio”, o douto Magistrado feriu de rosto o direito positivo. É que os argumentos em que se esforçou a r. sentença não eram poderosos, a seu aviso, para “elidir a responsabilidade penal do recorrido”.
Que se privilegiasse o réu, com base no art. 171, § 1º, do Código Penal, bem estava; mas, rematou o combativo apelante, que se absolvesse ele, isto se não podia sofrer.
Destarte, espera o provimento de seu recurso para o efeito de ser o réu condenado segundo a denúncia (fls. 97/104).
Apresentou a nobre Defesa contrarrazões de recurso, nas quais repeliu a pretensão da douta Promotoria de Justiça e exaltou os predicados da r. sentença apelada (fls. 111/113).
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em primoroso e circunspecto parecer do Dr. Mário Cândido de Avelar Fernandes, opina pelo provimento da apelação para que, reformada a sentença recorrida, seja o réu condenado (fls. 119/123).
É o relatório.
2. Foi o réu chamado à barra da Justiça Criminal porque, no dia 23 de junho de 1999, cerca de 15h, no interior do estabelecimento comercial Padaria Monte Alto, situado na Rua Adelino Rodrigues Gato, em Presidente Prudente, obtivera para si vantagem ilícita, em detrimento do patrimônio de Primo Odair Campos Ricci, induzindo-o em erro mediante fraude.
Rezam os autos que, no dia dos fatos, o réu compareceu àquele endereço e efetuou compras no valor de R$ 55,00; para pagamento, entregou o cheque do Banco Itaú S/A, da conta corrente de Maísa Vieira de Godói Lima, já preenchido e assinado, no valor de R$ 100,00; a diferença, a título de troco, recebeu-a o réu em moeda corrente.
Colocado o cheque em cobrança, devolveu-o o sacado, em razão de contraordem emitida pela correntista, pois lhe haviam furtado o talonário no interior de um supermercado.
Submetido o título à perícia, apurou-se que os seus dizeres, como a assinatura da emitente, foram lançados pelo réu.
Instaurada a persecução criminal, transcorreu o processo na forma da lei; ao cabo, a r. sentença de fls. 90/93 absolveu o réu, por atípico o fato que lhe foi imputado.
A douta Promotoria de Justiça, no entanto, não no levou a bem e, pois, compareceu perante esta egrégia Instância, no intento de alcançar a condenação do réu.
3. Ao absolver o réu, fê-lo o insigne Magistrado forte no argumento de que o fato incriminado ao réu não tivera “maior consequência”; ao demais, padecia o réu, por esse tempo, sérias vicissitudes; por último, não infligira à vítima prejuízo real, pois o réu vinha “saldando seu débito”.
Tais razões, que ao douto Acusador pareceram insuficientes para justificar a absolvição do réu, afiguram‑se-me, “data venia”, muito aptas a guardá-la de toda a crítica.
Ao afirmar, na Polícia, que recebera o cheque de fl. 25 das mãos de certo José Carlos, em pagamento de dívida (fl. 13), não entra em dúvida que o réu mentiu. Fosse Pinóquio, e mais lhe houvera de crescer o nariz!
De feito, o laudo pericial de fls. 23/24 concluiu que os caracteres manuscritos e a assinatura da cártula provieram de seu punho.
Destarte, não há negar, sem imprudência, tenha sido o réu o que cometeu o “falsum”.
Mas, não obstante isso, mui particulares circunstâncias avultam no processado que justificam a solução que o douto Juiz supeditou à causa-crime: uma, a carência de recursos materiais do réu; outra, a parva lesão do bem jurídico penalmente tutelado.
Em seu interrogatório judicial, alegou o réu que passava por dificuldades, decorrentes da estreiteza de meios ou de sua condição de desempregado (fls. 53/54).
As testemunhas inquiridas na instrução criminal confirmaram o infortúnio do réu: declararam que atravessava dificuldades conjunturais sócioeconômicas (fls. 74/75).
Valha a verdade que já se decidiu que “o fato de o agente estar passando por dificuldades, situação da maioria dos brasileiros, não caracteriza o estado de necessidade” (RJDTACrimSP, vol. 19, p. 99; rel. Afonso Faro).
Na espécie sujeita, no entanto, embora não deite a barra tão longe que afirme era a conduta do réu — pagar dívida com cheque falso — a única ou melhor forma de atalhar o mal que o constrangia, não há desconsiderá-la de todo.
A necessidade, com efeito, já o reconheciam os antigos, faz do homem o que quer (“Necessitas non habet legem”).
Cai a ponto a sábia doutrina praticada pelo ven. julgado, abaixo transcrito por sua ementa:
“Embora tecnicamente insustentável a alegação de estado de necessidade, no caso em razão de pobreza e prole numerosa, merece ser considerada pelo Juiz Criminal, para outros fins, pois a pobreza — ressalvada a dos bem-aventurados, a quem pertence o reino dos céus — não é um estado de espírito, mas de carência existencial, que poderá ser de tal ordem que justifique, por si mesma, a conduta do réu” (EJTRF, vol. 68, p. 25; rel. Washington Bolivar).
No caso, todavia, triunfa razão de grande peso e tomo, capaz de prevalecer contra a pretensão punitiva do Estado: a insignificância do bem jurídico ofendido, visto se trata de crime de bagatela.
A vítima, deveras, relatou que lhe devia o réu, seu freguês e vizinho, a quantia de R$ 55,00, que pretendeu liquidar mediante cheque falsificado. Mas — acrescentou —, o réu, de presente, vai amortizando seu débito: “já pagou R$ 30,00” (fl. 65).
Ao demais — e isto mesmo consignou a r. sentença —, “o réu, amasiado, é pai e na ocasião passava por dificuldades econômicas” (fl. 92). Ainda: “vem saldando seu débito” (Ibidem).
Donde a pertinência da apóstrofe do insigne Magistrado de Primeiro Grau: mais que estelionato, não era porventura o dos autos caso de “mero retardamento no pagamento?” (Ibidem).
Mesmo que não conste de texto legal expresso — afirma o eminente Juiz e reputado penalista Carlos Vico Mañas —, “o princípio da intervenção mínima, de cunho político-criminal, impõe-se ao legislador e ao intérprete, por sua compatibilidade com outros princípios jurídico-penais dotados de positividade, e com os pressupostos políticos do estado democrático de direito” (O Princípio da Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito Penal, 1994, p. 57).
Por esta mesma craveira de equidade, sabedoria e grandeza ensinou o profundo Nélson Hungria:
“As sanções penais são o último recurso para conjurar a antinomia entre a vontade individual e a vontade normativa do Estado. Se um fato ilícito, hostil a um interesse individual ou coletivo, pode ser convenientemente reprimido com as sanções civis, não há motivo para a reação penal” (Comentários ao Código Penal, 1978, vol. I, t. II, p. 34).
Em suma: a despeito da força dialética e da segura doutrina que os dotes de espírito dos digníssimos representantes do Ministério Público puderam comunicar às razões do apelo, estou em que as sobrepujam na lídima aplicação do direito e, pois, na realização do justo, as que deram corpo e alento à r. sentença de Primeiro Grau. Eis por que a mantenho, adotados os mesmos fundamentos que lhe deparou o grande Juiz Dr. Odorico Nilo Menin Filho.
5. Pelo exposto, nego provimento ao recurso.
São Paulo, 20 de maio de 2002
Carlos Biasotti
Relator
V. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
PODER JUDICIÁRIO
________________________
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Quinta Câmara – Seção Criminal
Recurso em Sentido Estrito nº 990.09.139567-6
Comarca: Rio Claro
Recorrente: Ministério Público
Recorridos: RFM e AR
Voto nº 12.466
Relator
– Não decai a Justiça de sua grandeza e confiança, antes se recomenda ao louvor dos espíritos retos, se, aferindo lesão patrimonial por craveira benigna, rejeita denúncia por tentativa de furto de coisa de ínfimo valor (art. 155, § 4º, nº IV, do Cód. Penal). Ao Juiz não esqueçam jamais aquelas severas palavras de Rui: “Não estejais com os que agravam o rigor das leis, para se acreditar com o nome de austeros e ilibados. Porque não há nada menos nobre e aplausível que agenciar uma reputação malignamente obtida em prejuízo da verdadeira inteligência dos textos legais” (Oração aos Moços, 1a. ed., p. 43).
– Nos casos de insignificante lesão ao bem jurídico protegido e mínimo grau de censurabilidade da conduta do agente, pode o Magistrado, com prudente arbítrio, deixar de aplicar-lhe pena (e ainda pôr termo à “persecutio criminis”). É que, nas ações humanas, o Direito Penal somente deve intervir como providência “ultima ratio”.
–“O direito penal não deve se ocupar de condutas que produzam resultados, cujo desvalor — por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes — não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja para o titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social” (Rev. Tribs., vol. 834, p. 477; rel. Min. Celso de Mello).
1. Da r. decisão que proferiu o MM. Juízo de Direito da 2a. Vara Criminal da Comarca de Rio Claro, rejeitando-lhe a denúncia que ofereceu contra RFM e AR, por infração do art. 155, § 4º, nº IV, do Código Penal, interpôs Recurso em Sentido Estrito para este Egrégio Tribunal, com o intuito de reformá-la, o ilustre representante do Ministério Público.
Nas razões de fls. 88/92, elaboradas com esmero e proficiência pelo Dr. Otávio Ferreira Garcia, afirma que, ao rejeitar a denúncia formulada segundo os preceitos legais, o MM. Juízo fizera rosto ao Direito Positivo.
Acrescentou o recorrente que isto de ter a coisa parco valor não significava pudesse livremente ser subtraída. Em abono de sua argumentação invocou o magistério da Jurisprudência.
Pleiteia, destarte, o provimento do recurso para que seja a denúncia recebida na íntegra.
Apresentou a nobre Defesa contrarrazões de recurso, nas quais repeliu a pretensão da combativa Promotoria de Justiça e propugnou a mantença da r. decisão de Primeiro Grau (fls. 123/127 e 129/134).
O r. despacho de fl. 136 manteve, por seus próprios fundamentos, a r. decisão recorrida.
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em minucioso e abalizado parecer do Dr. Marcílio Grecco, opina pelo provimento do recurso (fls. 140/143).
É o relatório.
2. Foram os recorridos chamados à barra da Justiça Criminal porque, em 14.5.2008, pelas 9h10, na Rua 14, em Rio Claro, obrando em concurso e unidade de propósitos, tentaram subtrair para si “peças de carne embaladas a vácuo”, de propriedade do estabelecimento “Varejão da Qualidade”.
Instaurada a “persecutio criminis”, foram os autos de inquérito remetidos a Juízo.
Oferecida a denúncia, rejeitou-a a r. decisão de fls. 81/86, sob color de que a “insignificância da conduta” dos acusados não justificava a intervenção judicial.
3. A materialidade e a autoria do fato imputado aos recorridos não podem ser infirmadas sem imprudência, pois assentaram em base probatória firme e incontroversa.
A despeito, porém, dos cabedais de talento e zelo do subscritor das razões de recurso, a solução adotada pela decisão de Primeira Instância era, a meu aviso, a que realmente devia caber na alçada da Justiça Criminal.
Nos casos de insignificante lesão ao bem jurídico (e mínimo o grau de censurabilidade), o fato não constitui crime. É que, nas ações humanas, o Direito Penal apenas intervém como providência “ultima ratio”.
Mesmo quando conspirem os elementos constitutivos do crime, sempre se reconheceu ao Juiz discrição para atalhar o curso da persecução penal, se esta lhe parecer, mais do que intolerável absurdo, violação grave do ideal e dos preceitos da Justiça.
Não decai de sua grandeza e confiança a Justiça, antes se recomenda ao louvor dos espíritos retos, se, aferindo lesão patrimonial por craveira benigna, rejeita a denúncia por furto de “peças de carne”.
Ao juiz não esqueçam jamais aquelas severas palavras de Rui:
“Não estejais com os que agravam o rigor das leis, para se acreditar com o nome de austeros e ilibados. Porque não há nada menos nobre e aplausível que agenciar uma reputação malignamente obtida em prejuízo da verdadeira inteligência dos textos legais” (Oração aos Moços, 1a. ed., p. 43).
Tal exegese conforma-se com o alto magistério do Colendo Supremo Tribunal Federal, como está a persuadi-lo a ementa a seguir reproduzida:
“Por isso, deve o órgão investido do ofício judicante resistir à tendência de, em época de delinquência exacerbada, caminhar para a persecução criminal a ferro e fogo, com desprezo de normas comezinhas, entre as quais surge, com relevância maior, a alusiva ao princípio da não-culpabilidade” (Rev. Trim. Jurisp., vol. 171, p. 582).
4. Ao Juiz a Lei determina — e não apenas assegura — que, no aplicá-la, atenda “aos fins sociais” e “às exigências do bem comum” (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil).
Casos haverá (sendo o dos autos desse número) em que ao Magistrado corre o dever de repelir, com retidão e sabedoria, a ingrata censura, na qual se detinham e compraziam já nossos maiores, por onde “Regimentos não se executam senão nos pobres; Leis e prisões não se guardam, senão contra os desamparados” (Diogo do Couto, Diálogo do Soldado Prático, 1790, p. 19).
Isto mesmo tem proclamado esta prestigiosa Corte Criminal, em acórdãos numerosos, subscritos por seus mais eminentes Juízes:
“A lei penal jamais deve ser invocada para atuar em casos menores, de pouca ou escassa gravidade. E o princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático e político-criminal da expressão da regra constitucional do nullum crimen sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal” (Rev. Tribs., vol. 733, p. 579; rel. Márcio Bártoli).
O princípio da insignificância como causa de exclusão de tipicidade penal tem, entre nós, padroeiros de grande vulto e peso:
“Embora não presente em texto legal, o princípio da intervenção mínima, de cunho político-criminal, impõe-se ao legislador e ao intérprete, por sua compatibilidade com outros princípios jurídico-penais dotados de positividade, e com os pressupostos políticos do estado democrático de direito” (Carlos Vico Mañas, O Princípio da Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito Penal, 1994, p. 57).
Paradigma da melhor doutrina acerca do ponto, faz ao intento o ven. aresto que a r. sentença reproduziu por sua ementa às fls. 84/85:
“O princípio da insignificância — que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal — tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Tal postulado — que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) a nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada — apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não deve se ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor — por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes — não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social” (Rev. Tribs., vol. 834, p. 477; STF; rel. Min. Celso de Mello).
Os outros julgados de que fez menção a decisão recorrida — STJ; HC nº 89.357-SP; 5a. T.; rel. Min. Arnaldo Esteves Lima; j. 11.3.2008; v.u.; in Boletim AASP nº 2.592, de 8 a 14.8.2008; Ementário p. 1.571; e STF; HC nº 88.393/RJ; 2a. T.; rel. Min. Cezar Peluso; DJU 8.6.2007, p. 47 (fls. 83/85) — não serviram apenas a esforçar-lhe o teor jurídico, senão a evidenciar o acerto e magnífico senso judicante de seu prolator, o distinto e culto Magistrado Dr. Antonio Fernando Scheibel Padula.
5. Pelo exposto, nego provimento ao recurso.
São Paulo, 23 de outubro de 2009
Des. Carlos Biasotti
Relator
VI. Princípio da Insignificância: Textos Analógicos
1. “Não estejais com os que agravam o rigor das leis, para se acreditar com o nome de austeros e ilibados. Porque não há nada menos nobre e aplausível que agenciar uma reputação malignamente obtida em prejuízo da verdadeira inteligência dos textos legais” (Rui Barbosa, Oração aos Moços, 1a. ed., p. 43.
2. “Na esfera dos crimes contra o patrimônio, cometidos sem violência a pessoa, tem relevância apenas a lesão jurídica de valor econômico, pois segundo a velha fórmula do direito romano, De minimis non curat praetor (Dig. 4,1,4)” (TACrimSP; Ap. nº 1.298.323/8).
3. “Não incorre na censura de ilegalidade a decisão que, firme no princípio da insignificância do bem jurídico protegido e da mínima reprovabilidade social do fato, rejeita denúncia oferecida contra sujeitos que, na inclemência da miséria e sem teto a que se recolher, furtam duas galinhas e uma leitoa para acudir às primeiras necessidades. Punidos já pelos rigores da própria vida, em contínuas privações, era escusado fazer recair sobre eles, com todo o peso, o gládio da Justiça” (TACrimSP; Rec. nº 1.316.405/3).
4. “Mesmo quando conspirem os elementos constitutivos de um crime, sempre se reconheceu ao juiz discrição para atalhar o curso da persecução penal, se esta lhe parecer, mais do que intolerável absurdo, violação grave do ideal e dos preceitos da Justiça” (TACrimSP; Rec. nº 1.316.405/3).
5. “Nisto de crimes contra o patrimônio, não contraria o Direito Penal — a quem só importam as infrações de relevância econômica — nem ofende as leis da Justiça o magistrado que, à luz do princípio da insignificância, absolve e manda em paz autor de furto de material de ínfimo valor, que lhe não foi de proveito algum, porque afinal recuperado pela vítima” (TJSP; Ap. Crim. nº 990.08.020404-1).
6. “Nos casos em que a insignificância da lesão do bem jurídico protegido concorre com o mínimo grau de censurabilidade do fato, não há crime que punir, pois nas ações humanas o Direito Penal deve unicamente intervir como providência ultima ratio” (TACrimSP; Rec. nº 1.363.301/6).
7. “À luz do princípio da insignificância, que opera como excludente da tipicidade no Direito Penal, alguns fatos podem guardar-se da censura da Lei, pois não é de bom exemplo ocupar-se o varão grave com questões de pequeno alcance: De minimis non curat praetor” (TACrimSP; Ap. nº 1.049.327/0).
8. “A ideia de que pequenas infrações podem subtrair-se ao direito sancionador já a propugnavam os romanos, perpetuando-a na fórmula clássica: De minimis non curat praetor” (TACrimSP; Ap. nº 1.146.159/7).
9. “A pedra de toque desses a que a Doutrina chama delitos de bagatela é a pequena lesão ao patrimônio da vítima, o ínfimo valor do bem. Não cai sob esse número, pois, a infração penal de vulto nem a ofensa a objeto jurídico de grande monta e estimação” (TACrimSP; Ap. nº 1.049.327/0).
10. “O sujeito, a quem a vida já puniu severamente, deixando de prover-lhe às primeiras necessidades, parece bem, e ainda justo, em certos casos, poupá-lo ao rigor da lei penal, que tem por odioso todo o excesso: Noli esse justus multum” (Ecl 7,17). Não sejas por demasiado justo!” (TACrimSP; Ap. nº 1.303.549/6).
Mas, aplicado inconsideradamente, o princípio da insignificância representa violação grave da lei, a qual manda punir o infrator; pelo que, subtrair a seu rigor o culpado, sem relevante razão de direito, fora escarnecer da Justiça, que dispensa a cada um o que merece. Em verdade, conforme aquilo de Alberto Oliva, “todo homem deve saber do fundo de seu coração o que é certo e o que é errado”[1].
NOTA
[1] Apud Ricardo Dip e Volney Corrêa de Moraes, Crime e Castigo, 2002, p. 3; Millennium Editora).