Sumário : Introdução. Competência. Análise crítica. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Interessante questão acerca do estabelecimento da competência jurisdicional em razão do lugar diz respeito aos negócios jurídicos firmados, onde é eleito foro através de cláusula contratual.
Verificar-se-á que o foro eleito, em regra, pode ser alterado por vontade unilateral da parte proponente (aqui entendida como aquela que se beneficia com a disposição contratual respectiva) para o foro do domicílio da parte proposta (aqui entendida como aquela contra a qual a disposição contratual respectiva é colocada).
COMPETÊNCIA
As normas de competência outorgam a função jurisdicional aos diversos órgãos do Poder Judiciário. Por conta disso é que se pode definir competência como medida da jurisdição cabível aos variados órgãos judiciais. Em verdade, como define LUIZ GUILHERME MARINONI, competência é "uma parcela da jurisdição que deve ser efetivamente exercida por um órgão ou grupo de órgãos do Poder Judiciário".
Noutro aporte, é necessário que a jurisdição seja distribuída, de acordo com os critérios pré-definidos, entre os diversos órgãos jurisdicionais, proporcionando o alcance da efetividade da prestação jurisdicional. Portanto, tem-se a ilação de que o princípio que deve reger os critérios de fixação de competência é o do interesse público – evidenciado pela necessidade da rápida e justa solução dos litígios apresentados ao Poder Judiciário.
Aliás, com esta mesma dicção, o TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, nos autos do AI n.º 2002.04.01.033522-2/SC, cuja relatoria coube ao Des. Fed. CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ, teve a oportunidade de definir que "o princípio que rege a fixação de competência é de interesse público, visando a alcançar, não só a sentença formalmente legal, como também a decisão justa"1.
ANÁLISE CRÍTICA
Analisando especificamente a hipótese proposta (alteração do foro de eleição2 por vontade unilateral do proponente), verifica-se que os instrumentos contratuais, que materializam as relações jurídicas, elegem foro jurisdicional como forma de beneficiar as partes proponentes, porquanto é ali onde, geralmente, possuem representação comercial.
Sendo assim, tem-se que o ajuizamento, pela parte proponente, de demanda judicial perante o domicílio da parte proposta não tem o condão de trazer qualquer prejuízo em detrimento desta, não podendo ela, conseqüentemente, defender causa de nulidade decorrente de ato jurisdicional praticado por órgão incompetente, pois que "pas de nulité sans grief"3.
Aliás, prejuízo, sim, traria à parte proposta se a demanda fosse processada e julgada no foro de eleição (domicílio da parte proponente). Deveras, não é preciso maiores digressões para se perceber que, ao ajuizar demanda judicial perante o domicílio da parte proposta, é a parte proponente quem se desfaz da prerrogativa que o contrato firmado lhe atribuía. E tal se dá pelo fato de a cláusula contratual ter sido construída com o único intuito de lhe beneficiar (e não com o intuito de beneficiar a parte proposta).
Sob outro aspecto, poder-se-ia palpar prejuízo (financeiros) se houvesse desobediência à eleição de foro em detrimento da parte proponente, porquanto a mesma poderia estar sendo conduzida a arcar com despesas processuais que não seriam despendidas, caso a demanda judicial tivesse sido ajuizada no seu domicílio (como autoriza a disposição contratual).
A doutrina pátria, especialmente representada por HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, contempla este entendimento ao proclamar que "uma vez que as regras de derrogação da competência comum presumem-se feitas a benefício do credor, permite-se-lhe dispensar a cláusula de eleição de foro ou de lugar de pagamento, para preferir o ajuizamento no foro do domicílio do réu, que, por sua vez, não poderá recusar a escolha porque só benefício lhe proporciona"4.
Inclusive, os diversos pretórios pátrios sufragaram o entendimento de que "o foro de eleição não obsta a propositura de ação no foro do domicílio do réu, não cabendo a este excepcionar o juízo" (RT 508/151, 665/134, JTA 51/66, 57/95, 58/51, 62/215, 76/69, 92/365, RP 3/337) – embora ainda persista posicionamento em contrário (JTA 117/98, Bol. AASP 1.290/212).
Não é por outra razão que, quando enfrenta questões semelhantes, o STJ se pronuncia com o tom do entendimento encimado, ao pontificar que "no caso de eleição de foro, tal circunstância não impede seja a ação intentada no domicílio do réu, inexistente alegação comprovada de prejuízo"5.
Diversos outros arestos advindos daquela Corte de Justiça sufragam o posicionamento encimado, a exemplo de: REsp 97213/SP, Sexta Turma, rel. Min. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, DJ 03/12/19966; REsp 31517/SP, Sexta Turma, rel. Min. PEDRO ACIOLI, DJ 30/08/19937; e REsp 10998/DF, Terceira Turma, rel. Min. NILSON NAVES, DJ 04/02/19928.
Mesmo caminho vem sendo trilhado pelos tribunais estaduais, a exemplo do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA PARAÍBA, que nos autos do AI n.º 888.2004.011250-0/001, cuja relatoria coube ao Des. ABRAHAM LINCOLN DA CUNHA RAMOS, definiu que "se em um negócio jurídico a parte favorecida com a eleição de foro renuncia ao benefício contratual, não pode a parte adversa reclamar a observância da cláusula contratual respectiva, porquanto, além de não lhe trazer qualquer vantagem idônea, estar-se-á atentando contra a efetividade da prestação jurisdicional".
Em termos processuais, há de se admitir que o ajuizamento de demanda judicial no foro judicial do domicílio da parte proposta somente vem a prestigiar a economia e a celeridade (e a própria parte proposta). Isto porque, são dispensados (no mais das vezes) envio de diversas cartas precatórias (que teriam o condão de prejudicar o bom andamento do processo e a efetividade da prestação jurisdicional), além do que a parte proposta ficaria dispensada de arcar com despesas de deslocamento e de acompanhamento processual em comarca diversa da do seu domicílio.
Assim, é inconcebível que a parte proposta defenda o respeito ao foro de eleição – quiçá com o objetivo de fazer com que o trâmite processual lhe seja menos oneroso unicamente em decorrência da morosidade provocada. Em verdade, os "prejuízos" de ordem privada devem ser mitigados em favor do interesse público, que norteia o direito processual civil, inclusive com relação aos critérios de definição de competência.
De fato, não se pode olvidar que, sendo o processo público, deve prevalecer o interesse público em ver o litígio formado sendo dissolvido pela prestação jurisdicional célere e efetiva. Formalidades contratuais que não colaborarão ao bom andamento do processo9 (e, inclusive, renunciada pela parte que se beneficiaria com a mesma) devem ser renunciadas em prol do interesse maior.
Urge compreender, ainda, que, tanto o art. 111. do CPC 10, como a Súmula 335 do STF 11, são normas de natureza programática, que em seus textos dizem respeito tão somente à questão da possibilidade de as partes deles fazerem uso 12, sem, contudo, entrar em pormenores de como se dará o seu exercício.
Dessa forma, em regra (excetuando-se as hipóteses em que a competência seja absoluta 13 para foro diverso daquele do domicílio da parte proposta 14 ou em que caracterizado prejuízo albergado pelos critérios de fixação de competência 15), nada impede que a parte proponente, a despeito da eleição do foro, proponha, por sua vontade, ação judicial na comarca em que a parte proposta possua seu domicílio.
CONCLUSÃO
Conclui-se, pelas razões expostas, que disposição contratual que elege foro judicial, em regra, pode ser alterada por vontade unilateral da parte proponente para o foro do domicílio da parte proposta.
NOTAS
01 (TRF 4ª R. – AI 2002.04.01.033522-2 – SC – 3ª T. – Rel. Des. Fed. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – DJU 24.03.2004 – p. 535)
02 "Em atenção ao princípio dispositivo, que informa a competência relativa, esta pode ser objeto de convenção das partes normalmente pela forma de cláusula contratual de eleição de foro". (Nelson Nery Júnior. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor. Editora Revista dos Tribunais. 5ª ed. Revista e Atualizada. São Paulo, 2001. p. 563)
03 Por regra geral do Código de Processo Civil, adotado o velho princípio de não dar valor à nulidade, se dela não resultar prejuízo: pas de nulitté sans grief. (STJ – RESP 228119 – SC – Rel. Min. Cesar Asfor Rocha – DJU 04.08.2003 – p. 00305)
Na ótica dos princípios processuais atinentes às nulidades, caberia à parte demonstrar o necessário comprometimento da prova, a teor da instrumentalização das formas albergada pelo brocardo pas de nulite sans grief. Ordem denegada. (STJ – HC 27244 – MS – 5ª T. – Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca – DJU 08.09.2003 – p. 00346)
04 In Curso de Direito Processual Civil. Processo de Execução e Processo Cautelar. Editora Forense. 31ª ed. Rio de Janeiro, 2001. p. 63.
05 Foro de eleição. Ajuizamento de ação ordinária de indenização no foro do domicílio do réu. Ausência de prejuízo. Precedentes da Corte. 1. No caso de eleição de foro, tal circunstância não impede seja a ação intentada no domicílio do réu, inexistente alegação comprovada de prejuízo. 2. Recurso especial não conhecido. (STJ. REsp 136894/CE; RECURSO ESPECIAL 1997/0042209-7; Relator(a) Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO (1108); Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento 30/06/1998; Data da Publicação/Fonte DJ 13.10.1998 p. 88)
06 PROCESSUAL CIVIL - COMPETENCIA - FORO DE ELEIÇÃO – DOMICILIO DO REU - EM HAVENDO FORO DE ELEIÇÃO, NADA IMPEDE O AUTOR PREFERIR O DOMICILIO DO REU, CASO NÃO ACARRETE PREJUIZO PARA O DEMANDADO. (STJ. REsp 97213/SP; RECURSO ESPECIAL 1996/0034596-1; Relator(a) Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO (1084); Órgão Julgador T6 - SEXTA TURMA; Data do Julgamento 03/12/1996; Data da Publicação/Fonte DJ 05.05.1997 p. 17141)
07 PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. APONTADA NEGATIVA AOS ARTIGOS 105, INCISO III, 126 E 301, INCISO VII, TODOS DO CODIGO DE PROCESSO CIVIL E A SUMULA N. 335, DO PRETORIO - EXCELSO. FORO DE ELEIÇÃO. I – O DENOMINADO FORO DE ELEIÇÃO TEM COMO OBJETIVO FACILITAR OS CONTRATANTES NA EVENTUALIDADE DA DEMANDA. SÃO INCONFUNDIVEIS A ELEIÇÃO DE FORO E A ELEIÇÃO DE JUIZO. II- NO VERTENTE CASO, A AÇÃO FOI PROPOSTA NO FORO DO DOMICILIO DO REU, LOGO, EM PRINCIPIO, NENHUM PREJUIZO SOFREU. III- RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. (STJ. REsp 31517/SP; RECURSO ESPECIAL 1993/0001402-1; Relator(a) Ministro PEDRO ACIOLI (0264); Órgão Julgador T6 - SEXTA TURMA; Data do Julgamento 30/08/1993; Data da Publicação/Fonte DJ 27.09.1993 p. 19836)
08 FORO DE ELEIÇÃO. EXCEÇÃO APRESENTADA PELO REU, EM AÇÃO DE DESPEJO PROPOSTA EM SEU DOMICILIO. AUSENCIA DE PREJUIZO. NO CASO DE ELEIÇÃO DE FORO, TAL CIRCUNSTANCIA NÃO IMPEDE SEJA A AÇÃO INTENTADA NO DOMICILIO DO REU, E COM RAZÃO MAIOR QUANDO ESTE, AO EXCEPCIONAR O FORO, NÃO DEMONSTROU A EXISTENCIA DE PREJUIZO. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. (STJ. REsp 10998/DF; RECURSO ESPECIAL 1991/0009490-0; Relator(a) Ministro NILSON NAVES (0361); Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento 04/02/1992; Data da Publicação/Fonte DJ 09.03.1992 p. 2573.)
09 A concepção moderna do processo, como instrumento de realização da justiça, repudia o excesso de formalismo, que culmina por inviabilizá-la. (STJ - REsp. n. 15.713-MG - rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira - j. 4.12.91. - pub. DJU, 10.6.91, pág. 7.825)
10 Art. 111. A competência em razão da matéria e da hierarquia é inderrogável por convenção das partes; mas estas podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde serão propostas as ações oriundas de direitos e obrigações.
11 Súmula 335 do STF – "É válida a cláusula de eleição do foro para os processos oriundos do contrato".
12 Como professora Nelson Nery Júnior (Código de Processo Civil Comentado e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor. Editora Revista dos Tribunais. 5ª ed. Revista e Atualizada. São Paulo, 2001. p. 563), "as partes podem eleger o foro de determinada comarca, mas não escolher, dentro dela, o juízo apropriado para decidir lide existente entre elas", sob pena de aviltar o Princípio do Juiz Natural.
13 "A competência material e a funcional são de natureza absoluta, não admitindo prorrogação nem derrogação por vontade das partes" (...) "A competência absoluta, por ser matéria de ordem pública, não pode ser objeto de eleição de foro. Cláusula contratual que dispuser sobre a competência absoluta é reputada não escrita e não produz nenhum efeito processual". (Nelson Nery Júnior. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor. Editora Revista dos Tribunais. 5ª ed. Revista e Atualizada. São Paulo, 2001. p. 563)
14 "Uma vez infringidas as regras de competência absoluta, estar-se-á diante de um vício insanável, consistente, segundo alguns, numa nulidade absoluta, a respeito da qual não se opera a preclusão, nem para as partes, nem para o juiz, devendo este, de ofício, decretar este vício". (In Luiz Rodrigues Wambier. Curso Avançado de Processo Civil. Editora Revista dos Tribunais. 5ª ed. Revista e atualizada. São Paulo, 2002. p. 88)
15 "Se há prejuízo para o réu, o foro de eleição não prevalece sobre o seu domicílio" (RSTJ 129/212)