Entre a Ciência e o Direito: o artigo 268 do Código Penal

18/08/2021 às 15:14
Leia nesta página:

A PGR questiona a eficácia das máscaras contra a covid-19 e afirma que não vê crime na conduta de Bolsonaro de não usá-las.

1. FATO

Segundo a edição da Folha, em 18 de agosto de 2021, em manifestação enviada ao STF (Supremo Tribunal Federal), a PGR (Procuradoria-Geral da República) põe em xeque a eficácia do uso de máscara para prevenir a propagação da Covid-19 e afirma que não vê crime na conduta do presidente Jair Bolsonaro de não usar o equipamento e promover aglomerações.

Segundo a Procuradoria, desrespeitar leis e decretos que obrigam o uso de máscara em local público é passível de sanção administrativa, mas não tem gravidade suficiente para ensejar punição penal.

A PGR, porém, diz que não há crime de Bolsonaro nesses casos e que “os estudos que existem em torno da eficácia da máscara de proteção são somente observacionais e epidemiológicos”.

“Afastou-se, então, legalmente, a possibilidade de se considerar criminosa a conduta de quem, no atual contexto de epidemia, deixa de usar máscara de proteção facial, equipamento cujo grau de eficácia preventiva permanece indefinido”, diz.

A PGR afirma que para haver consumação de crime de infração de medida sanitária preventiva é necessário que se crie, de fato, situação de perigo para a saúde pública. “É preciso que a conduta possa realmente ensejar a introdução ou propagação de doença contagiosa”, disse a PGR.

“Essa conduta [não usar máscara] não se reveste da gravidade própria de um crime, por não ser possível afirmar que, por si só, deixe realmente de impedir introdução ou propagação da Covid-19.”

Embora a PGR coloque em dúvida a eficácia da utilização do item de proteção, diversos estudos já comprovaram como as máscaras, principalmente aquelas mais ajustadas ao rosto e com melhor filtragem, como as N95 ou PFF2, são eficientes para prevenir a infecção pelo coronavírus.


2. O CRIME DO ARTIGO 268 DO CP

Determina o artigo 268 do Código Penal:

Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa.

O elemento subjetivo é o dolo de perigo, ou seja, a vontade de gerar um risco não tolerado a terceiros. Não se exige o dolo especifico.

O que é determinação do Poder Público? É ordem ou resolução dos órgãos investidos de autoridade para realizar as finalidades do Estado. Trata-se de norma penal em braço, dependente de que venha a complementá-la para que se conheça o seu real alcance.

É certo que essa determinação do Poder Público deve voltar-se à introdução (ingresso ou entrada) ou à propagação (proliferação ou multiplicação) de doença contagiosa.

O bem jurídico tutelado é a saúde pública.

Para o caso a Lei nº 13.979/2020, que prevê várias medidas para evitar a contaminação ou a propagação da doença, destacando-se o isolamento, a quarentena e a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, vacinação e tratamentos médicos específicos, é a fonte normativa para a matéria. Desobedecida pode gerar conduta criminal inscrita no artigo 268 do Código Penal.

Mesmo que o sujeito não tenha certeza de estar contaminado, mas aceita a hipótese, e transita normalmente por locais públicos, assumindo o risco de transmitir a doença, cometerá o ilícito com dolo eventual.

Está aí esse perigoso contagioso que exige para os casos concretos aplicação da norma penal específica.

É crime comum, formal (que não exige para a sua consumação resultado naturalístico). Havendo dano ocorre o exaurimento. É crime instantâneo, de perigo comum, unissubjetivo.

É crime que admite a tentativa.

O parágrafo único daquele artigo 268 apresenta causas de aumento.

É crime que admite a transação, tal como previsto na Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001.

A ação penal é pública incondicionada.

O núcleo do crime é infringir, que possui a significação de violar, transgredir, desrespeitar, desobedecer. O que se pune é a conduta de infringir determinação do Poder Público destinada a introdução ou propagação da doença contagiosa.

Como dito trata-se de lei penal em branco que se completa com a existência de outro ato normativo. Para o caso há esse ato normativo, embora tenha-se entendido que a portaria não teria força fora dos limites da Administração.

Poderá o Executivo Estadual, uma vez que a matéria de saúde pública envolve competência concorrente entre as unidades federativas, editar decreto trazendo medidas de poder de polícia na matéria e complementando as providências traçadas no artigo 268 do Código Penal.

O art. 268 classifica-se como lei penal em branco heterogênea, pois seu complemento advém de uma fonte diversa daquela que editou a norma primária. Diferentemente seria se proviesse da mesma fonte (Congresso Nacional), quando então classificar-se-ia como lei penal em branco homogênea.

O ato normativo complementar que estabelecerá a conduta incriminada não pode ficar, em tese, a cargo de todos os entes federativos brasileiros e necessita de definição por meio de ato normativo de abrangência nacional a ser editado pelo Ministério da Saúde, ou por outro órgão público de caráter nacional, como a ANVISA, como disse o juiz Fernando Brandini Barbagalo, em artigo publicado pelo site do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, sobre o crime de infração de medida sanitária preventiva.

Disse, aliás, Lucas Rocha Silva (O uso obrigatório das máscaras e o crime de infração de medida sanitária):

“No momento atual, vislumbramos a possibilidade de enquadramento típico da não utilização de máscaras em locais públicos ou abertos ao público no crime de infração de medida sanitária preventiva, caso todos os elementos do tipo penal sejam concretizados. Há legislação federal estipulando a obrigação do uso de máscaras de proteção em locais públicos e abertos ao público que, atentando-se ao entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal, pode ser complementada por demais entes federativos, como Estados e Municípios, visando evitar a disseminação da COVID-19 e tutelando-se a saúde pública. É importante ressaltar que, conforme estudamos no decorrer deste artigo, há controvérsia na doutrina, embora minoritária, acerca do crime ser de perigo abstrato ou concreto. O posicionamento acerca do crime em tela ser classificado como de perigo abstrato nos parece mais correto, visto que o legislador não estabeleceu nenhuma obrigatoriedade da comprovação do perigo, frisando-se, principalmente, na desobediência à norma estabelecida pelo poder público que vise evitar a propagação de doença contagiosa. Todavia, é importante ressaltar que o crime somente pune a forma dolosa da conduta, portanto, o enquadramento típico somente é possível caso o sujeito haja almejando desrespeitar a determinação do poder público, havendo atipicidade da conduta por ausência de dolo caso a pessoa esqueça de colocar a máscara ao sair de casa, por exemplo.”

Ainda Lucas Rocha Silva (obra citada) nos lembrou:

“A OMS passou a admitir a eficácia do uso indiscriminado de máscaras de proteção pela população para diminuir a propagação do SARS-COV-2, colocando a salvo que as máscaras cirúrgicas, médicas, deveriam ser utilizadas somente por profissionais da saúde que lidam diretamente com o vírus ou por pessoas que o uso seja indicado, devendo a população saudável utilizar máscaras caseiras (WHO, 2020b). A organização mostrou estudos e formulou sugestões em como as máscaras caseiras poderiam ser fábricas para diminuir a disseminação do patógeno, formulando vantagens e desvantagens na utilização de máscaras, de materiais como algodão e espessura da máscara (WHO, 2020b). A OMS ainda manteve o posicionamento que outras medidas deveriam ser tomadas como o distanciamento social e a lavagem das mãos, entretanto, agora essas medidas deveriam ser tomadas em conjunto com a utilização das máscaras.”

Mas não se perca de vista a natureza fragmentária da norma em tela.

Observo a lição de Cezar Roberto Bittencourt(Código penal comentado. 10. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019):

"...para que a infração da determinação do poder público possa vir a ser considerada crime, nos termos do art.268, é necessário demonstrar a idoneidade do comportamento infrator para produzir um potencial resultado ofensivo à preservação do bem jurídico saúde pública, visto sob a perspectiva genérica. (...)

Convém, contudo, advertir que a proteção oferecida pelo Direito Penal é, essencialmente, subsidiária e fragmentária, de modo que a interpretação desse tipo penal deve ser restritiva, no sentido de que o art. 268 somente abrangeria as infrações significativas de determinações do poder público, ou seja, aquelas que coloquem em perigo a saúde de um número indeterminado de pessoas, diante da séria possibilidade de introdução e propagação de doença contagiosa."


3. AS RECOMENDAÇÕES SOBRE O USO DE MÁSCARAS DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19

Em junho de 2020, foi publicada, em uma das mais conhecidas revistas médicas do mundo, uma meta-análise sobre o uso de máscaras e outras medidas de proteção. Este tipo de estudo é de extrema relevância pois analisa vários outros artigos já publicados e os compara a fim de chegarmos a uma conclusão mais sólida sobre o assunto. Nele, foi comprovada a eficiência de algumas medidas, como o uso de máscaras de proteção, o distanciamento social de pelo menos 1 metro em locais públicos e o uso do óculos de proteção.

Segundo a OMS, em cenários como o Brasil, onde há transmissão comunitária há indicação do uso de máscaras sempre que as pessoas saírem para ambientes coletivos fora de casa.

De acordo com o artigo “Reducing transmission of SARS-CoV-2” (Reduzindo a transmissão de SARS-CoV-2) publicado, em 27 de maio de 2020, na Revista Sciense, os seres humanos produzem gotículas respiratórias que variam de 0,1 a 1000 μm (micrômetros – 1000 micrômetros equivalem e 1 milímetro). O tamanho, a inércia, a gravidade e a evaporação das gotículas determina a distância que as gotículas e aerossóis emitidos percorrerão no ar. As gotículas respiratórias sofrem sedimentação gravitacional mais rapidamente do que evaporam, contaminando, assim, as superfícies e levando à transmissão por contato.

Segundo o professor Paulo Eduardo A. Netto “o uso contínuo de máscaras é fundamental, pois funciona como uma barreira para evitar a propagação das partículas que podem ser liberadas por indivíduos infectados assintomáticos”.

A questão jurídica, portanto, data vênia de opinião contrária, não está em subestimar o uso das máscaras no combate à pandemia da covid-19. Não cabe ao estudioso do direito atacar conhecimentos científicos existentes, somente porque acha. Isso afronta a própria razoabilidade, que é base de aplicação hermenêutica para entendimento normativo.

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4. A APLICAÇÃO DO ARTIGO 268 DO CP DIANTE EVENTUAL SANÇÃO ADMINISTRATIVA

É certo que Thiago Baldani Gomes De Filippo (A covid 19 e a ilegitimidade do crime de medida sanitária preventiva, in Consultor Jurídico) disse que “sem embargo de o contexto pandêmico destacar a premência da tutela da saúde pública, sua proteção não dispensa a racionalidade e o respeito aos princípios penais, o que afasta a possibilidade de aplicação conjunta das penas cominadas ao crime de infração de medida sanitária preventiva com sanções do crime de desobediência e penalidades administrativas, em atenção à dimensão material do ne bis in idem.”

Esse pensamento se ajusta a tese de que o Direito Penal é considerado a ultima ratio do ordenamento jurídico, com aplicação subsidiária. Neste sentido, cabe destacar a previsão de punição administrativa (advertência ou multa) aos comportamentos que impeçam ou dificultem a aplicação de medidas sanitárias relativas às doenças transmissíveis (art. 10, VII, da Lei 6.437/1.977), à luz do juiz Fernando Brandini Barbagalo.

Em havendo sanção administrativa entendo não cabível essa sanção penal pela mesma conduta.

Realmente se há punição na órbita administrativa fica inócua a punição criminal.

Já se entendeu que as determinações cujo cumprimento for assegurado por sanções de natureza civil ou processual civil tão como as administrativas retiram tipicidade do delito de desobediência (TACrSP, RT 713/350).

Se, pela desobediência de tal ou qual ordem oficial, alguma lei comina determinada penalidade administrativa ou civil, não se deverá reconhecer o crime em exame, salvo se a dita lei ressalvar expressamente a cumulativa aplicação do artigo 330” (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Vol. 9. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 420). Na jurisprudência: "Não há crime de desobediência (CP, artigo 330), no plano da tipicidade penal, se a inexecução da ordem, emanada de servidor público, revelar-se possível de sanção administrativa prevista em lei, que não ressalva a dupla punibilidade" (STF, HC 88452-RS, 2a T., Rel. Min. Eros Grau, j. 02.05.2006). E: "A jurisprudência desta Corte Superior firmou o entendimento de que para a caracterização do crime de desobediência não é suficiente o simples descumprimento de decisão judicial, sendo necessário que não exista cominação de sanção específica" (STJ, AgRgREsp 1.417.410-DF, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 16.12.2014).

Ademais, se isso não bastasse, observo que a Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da epidemia de COVID-19, estabelece, expressamente, em seu art. 3º-A, § 1º, que o descumprimento da obrigação de usar máscara de proteção individual “acarretará a imposição de multa definida e regulamentada pelo ente federado competente”.

Portanto a própria norma, que disciplina o sistema de penas administrativas com relação a pandemia da covid-19, eliminou a possibilidade de se recorrer ao rigorismo próprio do Direito Penal. Assim, em havendo multa não há falar sanção penal para essa conduta.

Tal como no crime de desobediência não se configuraria o crime previsto no artigo 268 do CP quando o descumprimento for sujeito à sanção administrativa ou civil, salvo se a lei ressalvar a dupla penalidade.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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