Indubitavelmente a violência doméstica se desenvolve como um processo silencioso, que progride sem ser identificado, deixando marcas em todos os envolvidos. Pela sua característica, a violência psicológica no interior da família, geralmente, evolui e eclode na forma da violência física. Com base neste entendimento destaca-se a importância de identificar as violências sutis que ainda se encontram em estágio embrionário (HIRIGOYEN MF, 2019.) No entanto, aponta-se como um grande problema a dificuldade na identificação da violência psicológica doméstica, em razão de esta aparecer diluída em atitudes aparentemente não relacionadas ao conceito de violência (LEITÃO MNC, 2014).
O novo coronavírus (2019-nCov) é uma cepa viral que causa infecções respiratórias e provoca uma doença chamada Covid-19. Embora seja uma doença considerada pouco letal (com taxa de mortalidade em torno de 2%), a Covid-19 é extremamente contagiosa, e este fato tem demandado medidas rígidas dos Estados ao redor do mundo, uma vez que a principal forma de conter o avanço do vírus é através de isolamento social. Estima-se que atualmente 90 países estão em confinamento e aproximadamente 4 bilhões de pessoas agora estão se abrigando em casa contra a infecção global do novo coronavírus (ONU, 2020). Certamente o isolamento é uma medida protetora, mas traz outro perigo mortal: o crescente aumento no número de mulheres e crianças sendo violentadas dentro de seus confinamentos.
Ao passo em que países apresentam aumento das infecções e bloqueios, mais linhas de ajuda e abrigos para violência doméstica em todo o mundo estão relatando pedidos crescentes.
Autoridades governamentais de países como Brasil, França, Espanha, Canadá, Estados Unidos, Argentina, Alemanha, Reino Unido, registraram um crescente número de denúncias de violência doméstica durante a crise.
No Brasil, de acordo com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Mulher, entre os dias 1º e 16 de março a média diária de ligações recebidas foi de 3.045, com 829 denúncias registradas. Já entre os dias 17 e 25 deste mês foram registradas 3.303 ligações recebidas, com 978 denúncias registradas, o que corresponde a um aumento do percentual em 8,47%.
Ativistas dos direitos das mulheres e parcerias da sociedade civil também denunciaram as crescentes denúncias de violência doméstica durante a crise e o aumento da demanda por abrigos de emergência.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), “as linhas de apoio em Singapura e Chipre registraram um aumento de chamadas em mais de 30%. Na Austrália, 40% de trabalhadores e trabalhadoras da linha de frente em uma pesquisa de New South Wales relataram um aumento de pedidos de ajuda, porque a violência está aumentando em intensidade”. (ONU, 2020).
Certamente o confinamento gera tensão e tem promovido pressões pelas preocupações com a economia, saúde e segurança. E está aumentando, significativamente o isolamento das mulheres com parceiros violentos, separando-as das pessoas e dos recursos que podem melhor ajudá-las.
É uma árdua tarefa para controlar o comportamento violento a portas fechadas. E, correspondentemente, ao passo que os sistemas de saúde do mundo todo paira ao colapso, os abrigos de violência doméstica também estão chegando ao ponto de ruptura, atingindo em quase todos os países, sua capacidade máxima, fazendo com que os serviços ofertados tenham um déficit significativo, haja visto que os centros são reaproveitados para serem usados como resposta adicional à COVID-19.
Inegavelmente, antes do surgimento da COVID-19, a violência doméstica e familiar já era uma das maiores violações dos direitos humanos praticados desde a 2ª Guerra Mundial. Conforme dados da ONU, “nos 12 meses anteriores ao surgimento da COVID-19, aproximadamente 243 milhões de mulheres e meninas (de 15 a 49 anos) em todo o mundo foram submetidas à violência sexual ou física por um parceiro íntimo” (ONU, 2020).
Ao passo que a pandemia da COVID-19 permaneça, é possível que este número cresça com múltiplos impactos no bem-estar das mulheres, em sua saúde sexual e reprodutiva, em sua saúde mental e em sua capacidade de participar e liderar (MILLER, L, 2020).
Mesmo antes da COVID-19, a ampla subnotificação de formas de violência doméstica já havia tornado um desafio a coleta de dados e respostas, já que menos de 40% das mulheres vítimas de violência buscavam qualquer tipo de ajuda ou denunciavam o crime (ONU, 2020).
Menos de 10% das mulheres que procuravam ajuda, iam à polícia. As circunstâncias atuais tornam os relatórios ainda mais difíceis, incluindo limitações no acesso de mulheres e meninas a telefones e linhas de ajuda e interrupções nos serviços públicos de polícia, justiça e serviços sociais em várias partes do mundo (ONU, 2020).
A COVID-19 está nos testando de maneiras que a maioria de nós nunca experimentou anteriormente, fornecendo choques emocionais e econômicos, contra os quais estamos lutando para superar.
O aumento da criminalidade contra a mulher que está emergindo agora como uma característica sombria dessa pandemia é um espelho das relações afetivas e familiares deterioradas pela violência de gênero e um desafio aos nossos valores, nossa resiliência e humanidade compartilhada.
Carecemos não apenas subsistir a COVID-19, mas renovar a esperança que muitas mulheres possuem em si, fazendo dela uma força poderosa e propulsora de mobilização e articulação dos sujeitos em torno da desafiadora temática da violência contra a mulher.