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O direito penal como "ultima ratio", suas funções e limites.

Breve análise sob o fio condutor sociedade, Estado e Direito

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2. Funções do Direito Penal:

Tomando como corolários lógicos e premissas aceitas toda a extensa e prévia análise feita nos tópicos anteriores, julgamos poder, e só então, emitir juízo mais consciencioso acerca das funções do Direito Penal.

Vejamos: o Direito penal constituiria um ramo do Direito Público, uma vez que nele há predominância de relações de subordinação, ou seja, relações entre o Estado enquanto tal (investido em seu poder de coerção) e os cidadãos. Já vimos, o Direito Penal consubstancia o peso máximo e a coerção última de que o Estado pode lançar mão para fazer cumprir seus preceitos, para fazer valer os meios de controle de que se constitui. Pois bem, o Direito Penal se acerca e se aplica não a todo e qualquer bem protegido pelo Jurídico, mas aos bens jurídicos tomados por Fundamentais, a saber, grosso modo: vida, liberdade e propriedade — bens ou valores jurídicos considerados essenciais à subsistência da sociedade. Daí sustentarmos ter sido por decorrência de âmbito estritamente penal o surgimento da ordem coativa de que constituem partes quase que simbióticas o Estado e o Direito. E, por uma tal razão, o Direito Penal transita sobre a tênue linha divisória entre ser o mais gravoso meio de controle social e a possibilidade de se transformar "num instrumento de repressão a serviço dos governantes, a exemplo do que ocorre nos Estados policiais." [57]

Como já explicitamos, "não há comprovação empírica de que, efetivamente, o Direito Penal proteja valores ou bens jurídicos, nem de que a referência a essa tarefa protetiva possa servir de fundamento legitimante de sua atuação. A referência à proteção de bens ou valores constitui, apenas, um recurso de justificação das normas proibitivas e mandamentais." [58]

Um fulcro de maior solidez para a sustentação do Direito Penal como instrumento válido e legítimo para exercer e consubstanciar o monopólio do mais gravoso meio de coação Estatal se centraria em bases mais sólidas se focasse a proteção à direitos subjetivos de notório reconhecimento histórico pelos povos (Direitos Fundamentais). [59] Não chega a ser uma alteração substancial no fundamento de base e justificação para o Direito Penal, apenas — talvez — uma alteração argumentativa, mas que consegue fazer passar o entendimento deste sustentáculo legitimador do simbólico ao preciso e delimitado. O certo é que o Direito Penal abraça contradições gritantes, coalizando idéias quase que antípodas, assente, porém, na idéia de pluralismo do Direito, como meio de coordenar vontades inconciliáveis, qual pressupunha a Vontade Geral Rousseauniana.

Senão vejamos: "se, por um lado, visa a proteger a pessoa humana diante do Estado, por outro lado, visa a assegurar-lhe os direitos subjetivos por meio do próprio Estado. Ainda que se duvide dessa função garantista, deve ela ser levada em conta na formulação das normas penais, a fim de poder evitar que o Estado de Polícia se manifeste e se sobreponha ao Estado de Direito." [60]

2.1 Uma Análise da Função de Controle Social do Direito Penal:

"Pode-se indicar que a regulação da vida em sociedade, pano de fundo de qualquer definição do Direito e de suas áreas específicas, de acordo com a postura ideológica adotada teria como funções principais possíveis:" [61] a) possibilitar a dominação de uma classe por outra como se pode depreender do pensamento marxista — podemos racionalizar e até admitir que, em alguma monta, as regras e os princípios jurídicos serviriam como instrumentos de dominação de classe, mas reduzi-lo a isso seria dizer que a sociedade, seus membros, em melhor palavra, só poderiam ser livres sem o Direito e sem o Estado; num estado de anarquia, portanto, o que, ao menos na conformação humana atual, levaria à sobrepujança de uns em relação a outros pela força. Ou seja, ainda tardamos atingir o patamar a que Rousseau diria podermos nos conformar à Democracia Plena; b) promover a paz social — a paz a que o Direito Penal pode sustentar, já vimos, é uma paz vigiada, uma paz instável mantida mediante o temor da coação e a coação efetiva nos casos de descumprimento do prescrito pela esfera penal do Direito. Ademais, a paz conseguida não é uma paz no sentido da satisfação da Vontade de todos, sequer da Vontade da maioria, mas de uma proposta de paz que garanta o melhor para o grupo, tornando impossível a consecução de uma paz social propriamente dita, pelo próprio pluralismo que constitui a Sociedade; c) possibilitar a coalizão dos interesses opostos, no seio do próprio pluralismo que originou a estrutura coativa Estado-Direito, apondo de um lado a dominação estatal sobre a sociedade e, de outro, a limitação estatal pelos direitos (sobretudo os fundamentais) da sociedade e dos indivíduos que a compõem — a cogitada transferência de poderes dos indivíduos ao Estado, na pessoa do soberano, teria tido um fim precípuo, garantir o usufruto da liberdade, limitada apenas pelas outras liberdades. Ora, a dominação estatal não se pode dar no sentido estrito da legitimidade formal desta dominação, como pressupunha Kelsen, sob pena de ver-se dar azo a regimes totalitários e atentatórios aos direitos fundamentais dos indivíduos, direitos estes que constituem a base e a razão de ser do duplo instrumento de controle: Estado-Direito. De um lado da balança há "a dominação estatal da sociedade (modo do Estado controlar e coordenar a sociedade)", de outro, "está a limitação do Estado pela sociedade (face e contra-face)". Ao contrário de ser uma contraditio irrefutável ao Direito Penal, a idéia de coalizão de interesses opostos se encontra na própria base definitória que já expusemos e consiste em sua própria razão de ser: ordenação de um tipo específico de relações sociais (relações jurídicas) entre homens, (e, no caso do Direito Penal, aquelas de maior gravame), sob a luz da Justiça, visando evitar atrito entre os arbítrios dos homens e garantir o usufruto da liberdade, limitada apenas pelas outras liberdades. "O Direito serviria para definir a limitação do poder do Estado sobre a sociedade." [62]

2.2. Retribuição, Controle e Ressocialização:

Não se pode afirmar que a pretensão punitiva do Estado se firmasse, exclusivamente, na intenção de retribuir ou compensar o eventual dano que se tenha realizado. Eis a razão pela qual julgamos a nomenclatura Direito Penal inadequada, sendo antes preferível Direito Criminal, uma vez que evitar e inibir o crime é o foco, a sanção se manifestaria como uma contingência para os casos de descumprimento. Não se podendo dizer, porém, que todo um conjunto normativo se finque somente na sanção ou na coação. Seria dizer que o direito não almeja ser cumprido, mas tão-só aplicar sanções quando contrariado, o que seria um erro sem tamanho. Maior erro seria pressupor que a lei se impõe menos pela possibilidade de realização da justiça (ser cumprida) que pela força (coação) [63].

De outra parte, a finalidade da punição não se assenta tão-somente na possibilidade de educar e prevenir, individual e coletivamente [64], a prática de crimes, como também numa tentativa de ressocializar os indivíduos que teimam em delinqüir, que persistem em fugir aos limites impostos pelo Direito.

No âmbito penal, pode-se facilmente pressupor uma sensível tendência a beneficiar o réu, seja facilitando-lhe a defesa (in dubio pro reo), seja impedindo a retroação de leis que o prejudiquem, seja pela imensa gama de fatos atípicos, causas de exclusão de antijuridicidade e punibilidade, entre outros meios de desqualificação do crime por ele praticado ou meios de vedar-lhe a punição. E por que razão tal se dá? Ora, abraçando situações excepcionais bens que a Sociedade tem em alta conta (Direitos Fundamentais), é patente a intenção de evitar o cometimento de injustiças. Isso se revela de maneira bem mais acentuada no Direito Penal brasileiro, tal é o temor de cometer-se erros ou, mais especificamente, de punir-se inocentes, ainda assim, pululam as injustiças.

A punibilidade, por sua vez, é a concreção da pretensão punitiva do Estado, ou seja, dada a prática do crime advém a efetivação do jus puniendi, sendo conseqüência direta do crime. Dado um "fato típico e ilícito [tomado aqui na acepção de antijurídico], sendo culpável o sujeito, faz surgir a punibilidade." [65]


3. Incongruências de Lógica Interna no Direito Penal e no Direito Penal brasileiro:

Antes de mais nada, de dizermos que o princípio da legalidade (art. 5º , II, XXXIX e LIV CF/88) — em muito defendido pelos legalistas e, porque não dizer: positivistas — vem sendo acossado por aqueles mesmos que o propugnam quando não convém a dados interesses seus. O mesmo sistema (jurídico) que assegura o direito à liberdade (art. 5º, VI CF) é o que cria meios de, em dados casos, fazer outrem dela privado. Até aí, nada demais, de vez que se poderia fazê-lo — dizem — sem ferir a "lógica interna" do sistema. Todavia, entendemos, não é o que ocorre com as "modalidades de prisões" preventiva e provisória.

Observemos o que dizem alguns princípios do sistema: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o "devido processo legal" (art. 5º, LVI CF/88), não há crime sem lei anterior que o defina, "nem pena sem prévia cominação legal" (art. 5º, XXXIX CF/88), ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II CF/88), ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 5º, LVII, CF/88). Tais afirmações nos fazem crer que só deve haver a prisão definitiva, a única forma de prisão admissível — "supressão da liberdade individual mediante a clausura" [66] — sendo precisamente aquela decorrente de crime previamente definido, advinda de um processo legal válido e posterior ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Como se vê claro, "somente a sentença que põe fim ao processo é fonte legítima para restringir a liberdade pessoal a título de pena." [67].

É óbvio que o princípio geral da igualdade se apresenta sob vários aspectos inconfundíveis. Entre estes revela notar não só o da igualdade perante a lei, que não admite tratamento jurídico diverso a quem quer que seja, por simples superioridade de riqueza, posição social, etc., como o da igualdade de oportunidade, que significa idêntica oportunidade a todos de acesso à cultura, aos cargos públicos, etc. Tal igualdade, a nosso ver, a mais essencial em qualquer democracia, pressupõe, de certo modo, a igualdade econômica, ou o direito de todos à segurança de um nível mínimo econômico, condizente com a dignidade da pessoa humana. (sic!) [68]

Vejamos: a prisão provisória seria o gênero do qual fazem parte a prisão temporária e a prisão preventiva. Prisão preventiva, enquanto espécie de "prisão cautelar de natureza processual" é uma prisão que antecede uma condenação definitiva [69]. Admite-se, bem assim, que a prisão preventiva dá ensejo a uma espécie de condenação, e mais, que se está condenando alguém sem o devido processo legal. Eis aflorada aqui a finalidade preventiva para fins de investigação. A prevenção faz macular os mais fundamentais princípios da esfera penal, sua aplicabilidade para situações de estrita excepcionalidade. Podemos até fundamentar e argumentar sua necessidade diante da perspectiva de impunibilidade de um crime, mas não conseguiremos coadunar isso — segundo nosso entender — à lógica interna do sistema.

O art. 312 do CPP brasileiro nos informa que a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência de crime e indício "suficiente" da autoria. Bem, se o indício é suficiente, que se proceda ao julgamento e à prisão definitiva em seqüência; se não o é, há clara e inconteste lesão ao princípio do devido processo legal e ao princípio da liberdade. Onde, pois, o in dubio pro reo?!

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Admitamos a delimitação de casos específicos para a ocorrência de prisão preventiva, mas que dizer da prisão temporária em que se fica total e completamente à mercê do alvedrio de nossos "sábios" e "doutos" juízes?! Onde o periculum in mora?! Onde o fumus boni iuris?!

O juiz pode (deve, é entendimento interpretativo legal e jurisprudencial) revogar a prisão preventiva sempre que as circunstâncias a que deram ensejo à medida tão extrema cessarem. Em não havendo perigo à ordem pública, à instrução criminal, à aplicação da lei penal, etc, deve o juiz fazer cessar a prisão preventiva, podendo — dizem — renová-la em ressurgindo os motivos que lhe deram azo, donde entendemos seja sempre injusto (e mais que isso) ilegal tal proceder, afastando o Direito da excepcionalidade de sua condição de ultima ratio. [70]


À Guisa de Conclusão:

Partindo da premissa de que o Direito evolui, e que determinados fatos outrora julgados ilícitos hoje são lícitos e vice-versa [71], poder-se-ia, fácil e apressadamente, inferir que o crime, de todo, não seria um mal, sendo que haveria certos "crimes" que culminariam em processos de mudança social e jurídica, em situações que as leis se mostrassem injustas, tão-somente, donde se poderia presumir uma abertura à possibilidade de que se descumpra o Direito com base em tal argumento. Afirmemos de antemão, com base na perspectiva evolutiva do Direito a que já nos referimos, que, em um mesmo ordenamento, existem normas justas, neutras (ainda que na qualidade de acessórias ao direito, tal quais algumas normas do dito direito adjetivo) ou mesmo normas injustas. Não admitíssemos a existência de normas injustas, imorais ou amorais, estaríamos tomando o Direito por perfeito, inatacável, irrefutável, não-falseável (no termo de Popper), e, portanto, fundado em base dogmática e não-científica. Se o Direito muda, progride, melhora é porque passa de um estado de menor aproximação de um critério mais justo para uma maior aproximação deste paradigma (seja ele a justiça social, um ideal, ou outro critério mais objetivo que convencionalmente tomemos; não importa, se ele evolui é porque admite em seu seio construções passíveis de mudança e mudança preferencialmente para melhor, ou seja, confirmando, assim, que seu estado anterior era pior — donde poderíamos qualificá-lo injusto, ilegal, imoral, imperfeito). Vale citar o sábio pensamento do jurisconsulto Paulo, afirmando que "nem tudo que é lícito [permitido] é honesto [justo]" (Non omne quod licet honestum est), donde constatou que nem toda lei é justa e que, não só há leis injustas, como também imorais.

Vale atestar que não se quer aqui pregar um relativismo quanto ao que seja justo ou injusto, antes, a contrário senso, apenas admitir-se que, ao menos enquanto hipótese, diante de normas injustas e somente em frente a elas, se poderia deixar de cumprir o que dispõem, sem perigo de transgredir normas maiores, eternas e imutáveis, caminhando, ademais, no rumo de sua evolução, ainda que descumprindo uma regra de um direito temporal [72]. Nos dizeres de Lon L. Fuller, "um homem pode infringir a letra da lei sem violar a própria lei" [73], ou seja, é possível ao homem transgredir a lei no sentido literal, sem violar a Justiça. Sócrates, entretanto, diria ser melhor ao homem justo cumprir as leis injustas, para que os injustos se vissem obrigados a cumprir as leis justas (ainda que diminutas), alertando para o perigo que o descumprimento de uma norma, mesmo que declaradamente injusta, poderia ocasionar: a segurança jurídica seria gravemente abalada, podendo acarretar inclusive — em casos extremos — um precedente para a derrocada de todo o Ordenamento.

O crime sempre existiu e — há quem ouse dizer, sempre vai existir — desde os primórdios da humanidade recém-coroada com o bastião da razão, nas mitologias dos povos, nas sagradas escrituras (Caim e Abel, José do Egito, etc), persistindo até os dias atuais. Outrossim, tem-se que o crime é uma espécie do gênero fatos jurídicos, como o próprio fato jurídico consubstancia uma subespécie do gênero maior dos fatos sociais. A história comprovou que — em regra — o Direito prioriza a externalização de uma ordem mínima em contraposição a uma tentativa de realizar a justiça. Tal ordem está voltada para os fatos sociais relevantes ao o Direito, no que vale chamá-los de fatos jurídicos. Poder-se-ia dizer então que sua fonte primordial seria a lei, uma vez que, segundo nos mostra a história, ao pesar na balança ordem e Justiça, o Direito tem priorizado sempre a ordem precisamente por ser ela mais exeqüível.

Como já foi dito, já nos exortou o gênio romano, onde há o homem, aí o direito. E, sabe-se, só há o direito quando há possibilidade de atentar-se contra a liberdade e/ou direito dos indivíduos uns pelos outros. Assim entendido, bastariam dois seres humanos para que se configure — ainda que em forma bastante primitiva — uma "sociedade" e, portanto, a necessidade de regras a facilitar a convivência. De entendermos, pois, "onde há o homem", como o haver mais de um, obviamente. Poderíamos dizer, pois, ao menos contingentemente, ou dentro do quadro a que a história já nos forneceu, que onde o homem, aí o crime ou a eventualidade de sua ocorrência.

De abstrairmos os fatores criminógenos específicos (individuais), posto que, querendo ou não, acercam-se mais do campo de atuação da Medicina Legal. As condutas praticadas em virtude ou sob a influenciação de fatores desta ordem descambam para o campo especificamente doentio. Enfim, quando do trato do fenômeno crime, a Criminologia e o Direito Penal levam em maior conta os fatores criminógenos de ordem social — os desvios de conduta prescrita por aqueles que possuem consciência da reprovabilidade da conduta. Há toda uma conjuntura a — senão determinar — ao menos influenciar e/ou facilitar a conduta criminosa. Seja em termos micro ou globais o crime resulta de fatores, jamais regido por lei de causalidade simplória em que seja dado conhecer todas as variáveis a atuar no fenômeno.

Sendo os princípios — mesmo os que norteiam o definir quais condutas sejam e quais não se coadunem com a reprovabilidade social — a base de um sistema de conhecimentos qualquer, ou hão de ser fixos, imutáveis e não-conflitantes, ou há de ruir o dito sistema; qual um edifício que não se sustem sem uma base sólida e firme, se tivesse os pilares a se entrechocarem. Há de haver em todo e qualquer sistema-paradigma — inclusive o jurídico — algo que lhe caracterize a essência, que consubstancie aquilo que ele é; doutro modo, sendo suas bases, seus fundamentos, seus alicerces (mais precisamente: seus princípios) mutáveis, o referido sistema, certamente, não mais seria o mesmo, posto não conservar cousa qualquer — mínima base que seja — do que fora outrora.

Revela-se, pois, errônea a concepção de que princípios são mutáveis e de que esta mutabilidade serviria de garantia à consecução e à manutenção das conquistas e ideais democráticos. Paradoxalmente, isto sim, seria o meio mais hábil e eficaz de se fazer soçobrar as garantias, conquistas e direitos humanos historicamente reconhecidos universais — cujo impagável preço foi o sangue, a liberdade e a vida de muitos — sob o pretexto e o engodo de, em nome destes mesmos direitos, tudo ser mutável, inclusive eles próprios.

Para efeito exemplificativo, restringindo-se ao campo criminológico especificamente, imagine-se que o único parâmetro aceito para o justo e o correto seja o que for apregoado e convencionado pela maioria (Vontade da maioria), numa clara deturpação do ideal democrático, tal como ocorreu na proposta Nazista. Nesse estado de coisas, em que há total ausência de parâmetros absolutos (ou ao menos mais sólidos) para nortear o agir humano, resta inócuo qualquer argumento ou posicionamento contra atitudes eminentemente atentatórias à liberdade, à vida, à dignidade, etc; mormente, quando tais atitudes estejam sustentadas no dogma do relativismo e sejam secundadas pela vontade da maioria. Em tais condições, tudo o que se poderia dizer de um ordenamento que adotasse essas posturas é que seria diferente dos demais, tão-somente diferente dos demais. Não haveria falar-se em justo ou injusto fora do ordenamento e nada haveria que contrariasse a vontade da maioria (dentro de cada ordenamento), ainda quando esta atentasse contra aquilo que chamamos Direitos Fundamentais. E, ressaltemos, mesmo que se perceba terem estes últimos (Direitos Fundamentais) sobrevivido ao vigor das mudanças paradigmáticas e mostrado clara validação principiológica — como verdades que se sustêm apesar das mudanças históricas — mesmo estes poderiam perfeitamente tombar ante o prisma de um relativismo absoluto.

Falando estritamente da liberdade, valor que abraça a um só tempo desde as primitivas noções de Direito às mais sólidas construções hodiernas, digamos que vazio, inócuo e sem sentido seria qualquer discurso do Ocidente no sentido de combater a opressão sofrida pela mulher em muitos países (islâmicos, por exemplo), de vez que — no seio do próprio Ocidente — sempre tem imperado (ainda que veladamente) a noção de que tudo seja relativo. Noção esta fornecedora de sustentáculo ideológico ao império da vontade da maioria e, portanto, instrumental justificador da opressão sofrida pela mulher em muitos países.

Ora, trata-se de padrão cultural diverso do nosso, além do que, imposto pela maioria. Jamais poderíamos alcunhá-lo de melhor ou pior que quaisquer outros, apenas diferente, afinal, tudo é relativo! Assim, com o dogma do relativismo, é que caem por terra todas as conquistas consubstanciadas nos Direitos Humanos Fundamentais (a que a esfera penal deveria conceder maior proteção), entre os quais aquele que mais intimamente junge-se à própria noção de Direito, a liberdade — o mesmo que mais comumente se priva àqueles que cometem condutas criminalmente reprováveis. Vemos que, para além da necessidade lógica da existência de princípios imutáveis, resta claro o seu imperativo social.

De igual modo se dá com as prisões preventiva e provisória, nos moldes em que explicitamos, a claramente tolherem, numa apreensão relativista dos princípios do devido processo legal, da legalidade, entre outros mais, fazendo perder o Direito Penal sua índole estrita de ultima ratio.

Igual raciocínio se dá, ao considerarmos a abstração do Contrato Social, a fazer com que os homens, cedendo sua liberdade natural e plena (e todos os seus poderes consentâneos) ao Estado, a fim de se privarem da autonomia plena e irregrada das vontades dos demais, e preservar, assim, suas vidas, bens e liberdade (ainda que limitada agora pelo Poder Estatal e pelas prerrogativas dos demais), passariam — já explanamos — a viver dentro de um sistema de regras, uma ordem (coativa), e adquiririam, em troca da liberdade plena, a liberdade civil (limitada). Pois bem, temos que, nos Estados que admitem a pena de morte, erige-se uma visível incoerência, eis que, no Estado Natural, os homens lhe teriam cedido poderes para preservar suas vidas, a fim de que não viessem a matar uns aos outros pelo exercício eventual da liberdade natural (plena). Bem assim, o Estado não teria esse poder (o de ceifar vidas), uma vez que não se pode exercer um poder que não se recebeu. Não é da índole restrita de ultima ratio a disposição da vida a qual exatamente visa preservar. Ora, é postulado jurídico, construção principiológica do Direito que ninguém pode ceder mais poderes (direitos) do que possui. A pena de morte seria o exercício de um direito que o Estado não possui, eis que, precisamente, veda esta faculdade aos cidadãos, que não a teriam em estado natural para cedê-la ao ente político, ainda que pretensamente venham a referendar, por vontade livre, a pena de morte e a qualquer tempo, no âmbito do Estado de que façam parte.

Ora, saíssemos ao templo da história (e os livros nos permitem fazê-lo em alguma monta) e perguntássemos a todos os homens lúcidos, de todas as épocas, em todo o globo, pertencentes a povos, raças e etnias várias, perscrutando-lhes a razão acerca de pilares absolutos ao conhecimento (e a tudo). Aí obteríamos a óbvia resposta, não uma que desnudasse os véus que separam o ente humano da Verdade, mas a inegável uniformidade de seus pensamentos nada mais revelaria que um forte indício a trilhar o sentido da irrefragável evidência: a de que, para haver evolução, é preciso haver uma mudança para melhor, um progresso; e entre dois objetos de nossa atenção comparados nada mais se pode dizer senão que são diferentes. Torna-se imprescindível haver um terceiro, mais perfeito, a dar o norte da comparação.

Assevere-se, ainda, por clamor de razão mais perspicaz, que "se tudo é mutável", a mutabilidade é lei universal, absoluta e, paradoxalmente, "imutável". Isto, de pronto, já é prova de haver coisa outra que seja imutável e absoluta, mesmo que seja esta lei que prediz que "tudo é relativo", fazendo a si mesma algo absoluto... e, portanto, contrário a si.

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Sobre o autor
Francisco de Sousa Vieira Filho

Advogado, militando sobretudo na área trabalhista, em Teresina-PI, Especialista em Direito Constitucional pelo LFG e Mestre em Direito pela Universidade Antônoma de Lisboa. Professor nas faculdades AESPI e FAPI, e professor substituto na UESPI (Campus Clóvis Moura). Autor dos livros: Lira Antiga Bardo Triste (2009); Lira Nova Bardo Tardo (2010) e Codex Popul-Vuh - ramo de folhas (2013).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA FILHO, Francisco Sousa. O direito penal como "ultima ratio", suas funções e limites.: Breve análise sob o fio condutor sociedade, Estado e Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1257, 10 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9269. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

O presente artigo consiste em trabalho de aproveitamento da disciplina Direito Penal, apresentado ao FORUM / APROCEFEP e à UAL – Universidade Autônoma de Lisboa, com vistas à avaliação da referida disciplina,constituindo, em termos imediatos, requisito parcial para a obtenção do título de especialista, e mediatamente, do grau de Mestre, no curso de Mestrado em Direito Constitucional, sob a orientação da professor Doutor Fernando Silva.

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