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Responsabilidade penal da pessoa jurídica no direito espanhol:

Longo e sinuoso caminho para o superar da doutrina societas delinquere non potest

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06/09/2021 às 16:30

Resumo:


  • Apesar da adoção do princípio de que "societas delinquere non potest" desde o Código Penal espanhol de 1822, a Espanha passou por uma evolução legislativa que culminou na aceitação da responsabilidade penal da pessoa jurídica, especialmente após as reformas dos Códigos Penais em 2010 e 2015.

  • A Reforma Penal de 2010, por meio da Lei Orgânica 5/2010, introduziu a responsabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento jurídico espanhol, mas encontrou resistência para sua efetiva aplicação tanto na doutrina quanto na jurisprudência.

  • A Reforma Penal de 2015, através da Lei Orgânica 1/2015, buscou aperfeiçoar as normas relativas à responsabilidade penal da pessoa jurídica, introduzindo o modelo de "compliance corporate" como mecanismo de isenção de responsabilidade, condicionado à existência de sistemas de prevenção e controle de delitos dentro das corporações.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. A LEI ORGÂNICA DE 5/2010: FIM DA SECULAR DOUTRINA SOCIETAS DELINQUERE NON POTEST NA ESPANHA?

4.1 Fatores Determinantes da Reforma

Com o Código Penal reformado pela Lei Orgânica 5/2010, a regra da capacidade penal dos entes coletivos estava, enfim, consagrada no ordenamento jurídico espanhol.

A Exposição de Motivos procurou justificar a necessidade do novo diploma legal, fazendo referência aos diversos atos normativos internacionais que recomendavam o controle jurídicopenal sobre determinadas ações dos entes coletivos, principalmente, as atividades empresariais com maior potencial de lesividade aos bens jurídicos protegidos (sistema fiscal e tributário, ordem econômicofinanceira e o ambiente).

O ítem VII do texto expositivo, não deixa dúvida quanto ao objetivo de ajustar o sistema penal espanhol às diretrizes jurídicas supranacionais, especialmente, da UE, afirmando que são “numerosos los instrumentos jurídicos internacionales que demandan una respuesta penal clara para las personas jurídicas, sobre todo en aquellas figuras delictivas donde la posible intervención de las mismas se hace más evidente (corrupción en el sector privado, en las transacciones comerciales internacionales, pornografía y prostitución infantil, tráfico de seres humanos, blanqueo de capitales, inmigración ilegal, ataques a sistemas informáticos...)”.[33]

Com base nesse texto expositivo oficial, a doutrina penal espanhola reconhece que, no tocante ao tema aqui estudado, a Reforma de 2010 foi uma clara resposta aos reclamos do direito penal europeu.  

Para Ascensión García Ruiz, a Lei Orgânica 5/2010 reformou o Código Penal com a finalidade de adequar o ordenamento penal espanhol a diversos instrumentos normativos emanados da UE. No caso do tema aqui estudado, a reforma respondeu à necessidade de se estabelecer “um novo título de responsabilidade penal, o das pessoas jurídicas, abandonando o velho aforismo societas delinquere non potest (herdeiro das ideias iluministas e incorporado às legislações penais após a Revolução Francesa), e substituindo-o por um novo princípio: societas delinquere et puniri potest”.[34]

José Miguel Zugaldía Espinar, autor espanhol dos mais referidos sobre esse tema, reitera essa opinião e asseverou que a responsabilidade penal da pessoa jurídica, no ordenamento jurídico-penal espanhol, nasceu de propostas da União Europeia. O autor destaca que a Espanha foi um dos últimos países europeus a romper com a velha regra e indica o exemplo da Áustria, Bélgica, Dinamarca, Noruega e Portugal, que já haviam adotado normas penais para responsabilizar a pessoa jurídica.[35]

Caminhando pelos meandros dessa mesma linha de pensamento, José de la Cuesta Arzamendi afirma que a ruptura do princípio do societas delinquere non potest, pelo legislador espanhol de 2010, constituiu decisão fundamental de política-criminal que se inscreveu na linha de importantes exemplos do Direito Penal comparado europeu que, nas últimas décadas, têm reconhecido a necessidade de se responsabilizar criminalmente a pessoa jurídica”.[36]

Para González Cussac o giro de orientação no ordenamento jurídico-penal espanhol deve ser atribuído a razões político-criminais e às astronômicas fraudes ocorridas nos anos 2000, nos EUA. Segundo o autor esses graves fatos evidenciaram o fracasso do modelo de “autorregulação”, a debilidade do sistema tradicional de responsabilidade individual no seio de complexas estruturas societárias, assim como o das múltiplas construções jurisprudenciais precedentes.[37]

Bernardo del Rosal Blasco defendeu a Reforma de 2010 como “la novedad más relevante” que teria sofrido a legislação penal do seu país. Prognosticou que, no caso específico das personas jurídicas, deveria ocorrer uma importante transformação nos “tradicionales criterios de imputación y atribución de la responsabilidad criminal, con unas consecuencias y una trascendencia que, por el momento, no es fácil valorar.[38] Como veremos adiante, cinco anos depois, o autor reconheceu que a esperada e necessária “transformação” acabou não se concretizando na prática forense.

Finalizando, fica evidente que um dos objetivos a Reforma Penal de 2010 foi o de inserir, no texto do Código Penal de 1995, um conjunto de normas prescritivas da responsabilidade criminal dos entes jurídicos.

4.2 Anotações Pontuais sobre as Regras da Responsabilidade Criminal da Pessoa Jurídica

Não é propósito deste trabalho analisar, nos seus detalhes e com o necessário aprofundamento, as normas promulgadas pela Lei Orgânica 5/2010 acerca da responsabilidade penal dos entes corporativos. Mesmo assim, é oportuno citar o texto do novo art. 31bis, com a seguinte redação:

“1. En los supuestos previstos en este Código, las personas jurídicas serán penalmente responsables de los delitos cometidos en nombre o por cuenta de las mismas, y en su provecho, por sus representantes legales y administradores de hecho o de derecho.

En los mismos supuestos, las personas jurídicas serán también penalmente responsables de los delitos cometidos, en el ejercicio de actividades sociales y por cuenta y en provecho de las mismas, por quienes, estando sometidos a la autoridad de las personas físicas mencionadas en el párrafo anterior, han podido realizar los hechos por no haberse ejercido sobre ellos el debido control atendidas las concretas circunstancias del caso”.[39]

Como se observa, cumprindo a proposta mencionada na Exposição de Motivos, o dispositivo foi taxativo em prescrever duas hipóteses de responsabilidade criminal da pessoa jurídica. No primeiro caso, a imputação decorreria de crimes praticados pelos representantes e administradores em geral, desde que a infração fosse praticada em “em nome ou por conta das mesmas e sempre seu proveito”.  A segunda hipótese refere-se aos crimes praticados por funcionários subalternos, cujas ações delitivas não tiverem sido devidamente controladas pela empresa. Trata-se aqui, da responsabilidade por deficiência de controle preventivo sobre ações eventualmente criminosas dos empregados da empresa.

Na fixação da responsabilidade penal da pessoa jurídica, a Lei Orgânica 5/2010 adotou um critério de dupla via de imputação. É o que se verifica do texto da sua Exposição de Motivos, que se refere a uma responsabilidade por crimes praticados em seu nome ou por sua conta ou em seu proveito e responsabilidade decorrente do dever empresarial de estrito controle sobre as ações delituosas de seus dirigentes e empregados. A doutrina consultada, corrobora essa leitura do texto legal.[40]

Embora defensor da Reforma nesse tema, Bernardo Del Rosal, já nos primeiros momentos de vigência da nova lei, reconheceu que a nova regra  levantaria sérios problemas de ordem prática e que caberia à doutrina e à jurisprudência a complexa tarefa de enfrentá-los para apresentar a necessária solução.  Entre eles estava o conceito “de atuar em proveito da pessoa jurídica”, contido no referido artigo 31 bis. Conforme anotou, a questão estaria em definir se o conceito de “atuar em proveito da pessoa jurídica” deveria ser entendido como elemento objetivo ou subjetivo do tipo penal.[41]

No que diz respeito ao tema aqui tratado, Bernardo Del Rosal Blasco destacou os pontos fundamentais que marcaram o perfil da Lei Orgânica 5/2010: 1) responsabilidade criminal da pessoa jurídica de direito privado, com exclusão expressa do Estado, de seus órgãos da administração pública e de certas associações não governamentais como os sindicatos e os partidos políticos (art. 31, bis, 5, parágrafos 1º e 2º); 2) opção por um sistema fechado, embora assinalado por diversos crimes passíveis de serem cometidos pelo ente coletivo; 3) sistema de atribuição de responsabilidade penal à pessoa jurídica, por crimes cometidos em nome ou por conta do ente coletivo.[42]

Cabe assinalar que, ao prescrever um elenco específico de sanções penais à pessoa jurídica, a Lei Orgânica 5/2010 abandonou a controvertida proposta dos projetos de 2007 e 2009, que previam a aplicação de sanções denominadas “consequências acessórias”. Pelo texto da Reforma Penal aprovado, estas medidas - cuja natureza jurídica não encontrava consenso na doutrina espanhola - ficariam reservadas para sancionar apenas a entidade coletiva criminosa sem personalidade jurídica. Bernardo Del Rosal foi taxativo em afirmar que “el nuevo art. 129, suprimiu as consequências acessórias para as pessoas jurídicas, “estableciendo, en su lugar, una especie de estatuto paralelo de exclusión de la responsabilidad penal para empresas”.[43]

Dessa forma, a Lei Orgânica 5/2010 prescreveu expressamente o rol das penas aplicáveis às pessoas jurídicas. Estão elas descritas no artigo 33.7, com a nova redação que lhe foi dada pela Reforma Penal. O amplo arco sancionatório começa com a pena de multa, “por cotas ou proporcional”. Segue, com a pena de dissolução, de suspensão, de proibição de futuras atividades, proibição de obter subvenção ou ajuda pública e, ainda, a intervenção judicial a fim de garantir direitos trabalhistas ou de credores.[44]

Como se pode notar, a Reforma 5/2010 armou o texto do Código Penal espanhol de 1995 de regras expressas sobre a imputação penal e das necessárias medidas repressivas para sancionar a pessoa jurídica pela prática de uma infração penal.

4.3 Boa Parte da Doutrina Assumiu Posição de Ostensiva Crítica ao Texto da Reforma de 2010

No entanto, aprovada a Reforma, sua aplicação aos casos concretos suscitou uma série de questionamentos. A doutrina penal espanhola continuou dividida, com boa parte dos autores questionando a efetividade da proposta normativa aprovada. A verdade é que grande parte dos penalistas havia se manifestado contra a mudança de paradigma ou, ao menos, feito severas críticas ao projeto de reforma. Assim, mesmo diante do novo direito promulgado, a resistência continuou forte, na trincheira da doutrina fiel ao brocardo societas non delinquere potest.

Na visão de Jesús María Silva Sánchez, a Reforma de 2010, no que se relaciona com o tema deste estudo, foi introduzida sem ter sido precedida de um estudo empírico, capaz de avaliar, a viabilidade de se introduzir um sistema penal, suplantando suposições doutrinárias de cunho político-criminal, que apontavam para as dificuldades de se implantar, na Espanha, um sistema de responsabilidade penal da pessoa jurídica.[45]

Referindo-se à Reforma Penal de 2010, Víctor Gómez Martín tece severas críticas à utilização do Direito Penal, como instrumento para se criar uma cultura empresarial comprometida com a atividade negocial pautada na licitude e nos mandamentos da lei penal.   Para o autor, transformar o Direito Penal, com suas normas restritivas de direitos e liberdades, numa “suerte de nueva cultura de los negocios, ya es algo mucho más cuestionable”. Destacou, ainda, que “una cosa es oferecer incentivos a la empresa para que se responsabilice socialmente, y outra que deba ser sometida al yugo del Derecho penal si no lo hace”.[46]

Bernardo Del Rosal Blasco, que havia se manifestado francamente favorável à proposta, assumiu uma posição pouco otimista quanto à viabilidade da reforma num ordenamento jurídico tradicionalmente estruturado para punir a pessoa física. No momento da promulgação da Reforma, anotou que era preciso aguardar para ver “si la jurisprudencia va a ser capaz de encauzar y, en su caso, corregir, pero dada la vigente situación de nuestro sistema de justicia criminal no se puede ser, al respecto, muy optimista”.[47]

Nessa linha de incerteza jurídica quanto à punição criminal de pessoas jurídicas, Alfonso Galán Muñoz destacou que, mesmo após a aprovação da Lei Orgânica 5/2010, boa parte da doutrina espanhola manteve-se fiel ao princípio societas delinquere non potest. Segundo o autor, por mais que alguns preceitos do Código Penal fizessem expressa referência à responsabilidade criminal e às penas cominadas à pessoa coletiva, muitos autores continuaram entendendo que essas normas eram inaplicáveis por serem inadequadas ou impróprias, “cuando no, como un simple error derivado del ‘diletantismo’ del legislador penal”.[48]

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4.4 Resistência da Jurisprudência à Mudança de Paradigma: os tribunais continuaram resistindo à ideia de se punir as empresas acusadas da prática de crimes

O prognóstico pouco otimista de Bernardo del Rosal Blasco, sobre a Reforma Penal que introduziu a responsabilidade penal da pessoa jurídica no seu país, parece ter se confirmado. De fato, a regra da responsabilidade penal da pessoa jurídica, apesar de prevista no Código Penal reformado, encontrou enorme dificuldade para ser aplicada aos casos concretos.

Cinco anos após a entrada em vigor da Lei Orgânica 5/2010, Bernardo Del Rosal Blasco ressaltou que somente duas empresas haviam sido condenadas criminalmente, na Espanha. A primeira empresa – um bar e restaurante, de Barcelona – foi em 2014, com uma pena de multa no valor de seis euros diários, por delito contra o meio ambiente.[49]

Como se vê, uma condenação a um estabelecimento comercial que, na legislação fiscal brasileira, seria classificado como microempresa, o que pode ser um indicador de que a teia da justiça criminal só enreda os pequenos. Por outro lado, o valor irrisório da pena pecuniária pode servir para argumentar que, para sancionar empresas com penas monetárias tão insignificantes, seria melhor deixar essa atribuição sancionatória com os órgãos administrativos de fiscalização. 

A segunda condenação teria ocorrido também em 2014, por crimes contra a saúde pública. As empresas foram condenadas às penas de “disolución, multa y prohibición de realizar actividades comerciales en España por tiempo máximo de hasta cinco años”.[50]

Duas condenações, apenas, em cinco anos é pouco, quase nada. Demonstra, que a Reforma Penal de 2010 não conheceu a efetiva aplicação das suas normas relativas à responsabilidade criminal da pessoa jurídica.

No mesmo sentido, Pascual Cadena, destacou que chamava a atenção o fato de que mais de 80% das decisões dos tribunais inferiores, com base na LO 5/2010, foram no sentido de rejeitar a responsabilidade criminal da pessoa jurídica, seja por decreto de absolvição, seja porque a infração imputada só podia ser praticada pela pessoa física, seja porque se fazia retroagir a lei penal a casos que não podia. Esse fato, “era muestra de la profunda ignorancia e incertidumbre con el que los profesionales del Derecho habían recibido el sistema”.[51]

Após tanta discussão, avanços e recuos, a lei reformadora do Código Penal de 1995 caiu no quase que completo vazio da prática judiciária. Demonstra, também, que não basta a devida promulgação para que o mandamento contido na lei positivada deixe o espaço abstrato da norma a fim de realizar a sua efetiva e indispensável função de controle das condutas humanas e, modernamente, das condutas dos entes coletivos ou corporativos. Para que essa função de controle seja efetiva é preciso que a norma positivada seja objetiva e atenda à regra da taxatividade.

É preciso, também, para que a nova lei seja material e formalmente recepcionada pelo sistema normativo em que for inserida. Enfim, é preciso que, na prática judiciária, a norma seja considerada exequível para que o operador jurídico seja, jurídica e politicamente, motivado a aplicá-la. E, como se constata, a doutrina e a jurisprudência espanholas parecem resistir a vestir a toga da regra da responsabilidade penal da pessoa jurídica.

A verdade é que a Lei Orgânica 5/2010, com lacunas, pontos obscuros e duvidosos, acabou por criar um clima de insegurança jurídica. Além disso, a cultura jurídico-penal de resistência à responsabilidade criminal dos entes coletivos, transformou a importante inovação jurídica num enorme desafio, que os protagonistas da justiça criminal espanhola não lograram ou não mostraram vontade em superá-lo.

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Sobre o autor
Rodrigo José Leal

Professor de Direito Penal da Universidade Regional de Blumenau - FURB e na Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Doutor em Direito pela Universidade de Alicante/Espanha. Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Fundação Universidade Regional de Blumenau - FURB. Graduado pela Furb.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEAL, Rodrigo José. Responsabilidade penal da pessoa jurídica no direito espanhol:: Longo e sinuoso caminho para o superar da doutrina societas delinquere non potest. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6641, 6 set. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92834. Acesso em: 22 dez. 2024.

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