4. RELATIVIZAÇÃO DA PENHORA NO DIREITO BRASILEIRO
O presente capítulo abordará de forma mais específica o tema do presente trabalho, de sorte que será destacada as características da relativização de bens impenhoráveis, a proteção conferida ao patrimônio da incorporação, o “termo de afetação” e as aplicações fáticas sobre a penhora dos créditos de incorporação imobiliária, reunindo jurisprudências sobre o tema para melhor esclarecimento do leitor.
Na relativização da impenhorabilidade, os princípios são ponderados quando entram em rota de colisão, momento em que a solução deverá compatibilizar os princípios em conflito, de forma a, mesmo que venha a privilegiar um em detrimento de outro, ambos mantêm-se igualmente válidos (GUERRA, 2003, p. 85).
Em nome dos valores humanos e éticos que a lei busca o adequado equilíbrio entre os interesses das partes em conflito, para que a execução seja tão eficiente quanto possível, com o menor sacrifício ao patrimônio do devedor, satisfazendo então o equilíbrio entre a celeridade e a eficiência da execução com a menor onerosidade ao devedor (DINAMARCO, 2002, p. 3073).
4.1. Características da relativização dos bens impenhoráveis
Como explanado no capítulo anterior, a priori, todo o patrimônio do executado está sujeito à expropriação. Contudo, especialmente em virtude dos princípios da dignidade da pessoa humana, entre outros motivos já explicados nesse trabalho, a ordem jurídica exclui alguns bens do regime geral, tornando-os impenhoráveis. Entretanto, especialmente no que tange a impenhorabilidade, nem sempre deve ser literalmente aplicada ao caso concreto, tendo espaço, para tanto, a sua relativização.
Tamanha é a importância dos princípios gerais da execução, bem como os princípios gerais do direito, como a proporcionalidade, dignidade da pessoa humana, da máxima utilidade da proteção, que se mostra indispensável analisar o rol de bens impenhoráveis envolvendo outros princípios em linha de colisão, e até mesmo para solucionar situações que devam ser equacionadas por aplicação de simples regras que estejam em conflito entre si.
Dessa forma, a relativização dos bens impenhoráveis tem por característica própria a oposição de dois valores fundamentais, por um lado, a satisfação do credor, amparada no princípio da máxima utilidade da execução, e, por outro lado, a preocupação com a não penalização excessiva do devedor, alicerçada no princípio do menor sacrifício do devedor.
Quando ocorre um choque entre princípios igualmente relevantes, é necessário a ponderação no caso concreto, entre os dois princípios, para se atingir o resultado mais justo, sendo assim abordado por Wambier e Talamini (2015, p.188):
Retome-se o exemplo da faculdade que tem o devedor, no processo de execução, do Livro II do Código, de requerer a substituição do bem penhorado por outro (art. 847) – expressão do princípio do menor sacrifício possível. O art. 835, por sua vez, estabelece uma ordem de preferência dos bens a serem penhorados, a qual toma em conta, sobretudo, o princípio da máxima utilidade da execução (deu-se preferência ao dinheiro e, na ótica do legislador, aos bens mais fáceis de serem alienados). Eventualmente, o devedor sugere a substituição do bem sem respeitar rigorosamente a ordem prevista. Nem por isso, necessariamente, será desprezado pleito de substituição do devedor. Se concretamente for verificado que a penhora de outro bem, anterior na ordem legal de preferência, redundaria em graves prejuízos ao devedor (exemplo: penhora do dinheiro destinado às despesas mínimas e essenciais para que o estabelecimento comercial da sociedade executada continue funcionando), poderá ser desconsiderada a hierarquia prevista no art. 835. Neste exemplo, teria prevalecido, na medida do necessário e útil ao processo, o princípio do menor sacrifício do devedor. O mesmo substrato legal poderia ser utilizado para exemplo no sentido oposto: é penhorado bem, respeitando-se a ordem do art. 835; o credor impugna a nomeação, pedindo que a penhora recaia sobre outro bem, que é posterior, na ordem legal, ao indicado pelo devedor, diante das circunstâncias concretas poderá o juiz acolher a impugnação do credor, por reputar que só assim a execução atingirá resultado satisfatório e útil (WAMBIER; TALAMINI, 2015, p. 188).
A relativização da impenhorabilidade é um instrumento importante, a direcionar que as partes atuem em juízo com boa vontade e com espírito de cooperação, sob pena de se macular a efetividade do aparelho jurisdicional. Deve-se rememorar que o processo é um método de resolução do caso concreto, e não um mecanismo destinado a impedir que o caso concreto seja solucionado (CAMARA, 2016, p. 19).
Entretanto, não é incomum encontrar diversos processos de execução que não possuem o menor êxito processual, prioritariamente por conta da ausência de bens legalmente penhoráveis. Na verdade, o cotidiano forense revela, não raras vezes, que o credor não tem conseguido receber o seu crédito em juízo, apesar das inúmeras inovações que trouxe o novo CPC. Inclusive existe relativização da impenhorabilidade expressa no art. 833. §2º do CPC que assim aborda:
Art. 833. São impenhoráveis:
[...]
§ 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º, e no art. 529, § 3º. 20. (BRASIL,2015).
Desta forma, transcreve-se como característica ainda da relativização da impenhorabilidade a procura e a vigilância quanto ao cooperativismo processual, a boa-fé no processo, o princípio do resultado do procedimento executivo e o princípio da efetividade da execução, especialmente quando se depara com incorporação imobiliária sem patrimônio de afetação e a tentativa de burla a credores, que nada garantem um patrimônio mínimo ao devedor, desde que respeitada a dignidade do devedor, a intangibilidade de seu próprio sustento e de sua família, conforme reza a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná.
AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO - AÇÃO DE COBRANÇA - PENHORA DE PARTE (30%) DE SALÁRIO - IMPENHORABILIDADE DOS PROVENTOS (ART. 649. DO CPC) - AFASTAMENTO DA CONSTRIÇÃO.RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. [...] Relativização que tem de ser excepcionalíssima, somente admitida em situações em que induvidosa e comprovadamente permaneça incólume a dignidade do devedor, a intangibilidade de seu próprio sustento e o de sua Família. Ainda aí, será preciso o pleno esgotamento de todas as outras possibilidades de localização de bens que possam ser penhorados. 4. Agravo de instrumento provido (PARANÁ,2016).
Verifica-se do extrato de mov. 100.5. que é conta da Caixa, agência 3177, C/C 001.00001450-8, que a agravante recebe o seu salário, de modo que o desconto de verbas salariais nos moldes determinados claramente pode gerar um prejuízo ao agravante, em razão de não poder dispor do referido numerário para arcar com as despesas necessárias para seu próprio sustento. Diante do exposto, voto pelo conhecimento e provimento do recurso, para afastar a constrição determinada pela decisão agravada sobre o salário da agravante (PARANÁ,2017).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA EM FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PENHORA SOBRE 20% SALÁRIO LÍQUIDO DO DEVEDOR. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO QUE AUTORIZAM A MITIGAÇÃO DA REGRA DE IMPENHORABILIDADE. DÉBITO EXEQUENDO QUE PERDURA HÁ MAIS DE 11 ANOS. DEVEDOR QUE ADMITE TER DUAS FONTES DE RENDA, UMA COMO VEREADOR E OUTRA COMO EMPRESÁRIO. PROVA NOS AUTOS DE QUE O DEVEDOR CONTRAIU EMPRÉSTIMOS E ASSUME OUTRAS OBRIGAÇÕES EM DETRIMENTO DO PAGAMENTO DA PRESENTE DÍVIDA. NECESSIDADE DE, DIANTE DAS SITUAÇÕES DO CASO, PRIORIZAR O PRINCÍPIO DA EFETIVIDADE DA EXECUÇÃO. MITIGAÇÃO DA IMPENHORABILIDADE DO SALÁRIO QUE ENCONTRA RESPALDO EM PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. PEDIDO PARA SUSPENSÃO DA CNH. MEDIDA COERCITIVA ATÍPICA. IMPOSSIBILIDADE DE DEFERIMENTO. DEVEDOR QUE DEVE RESPONDER POR MEIO DE SEU PATRIMÔNIO PELO DÉBITO DA EXECUÇÃO E NÃO PESSOALMENTE. TUTELA QUE NÃO TRARIA RESULTADO ÚTIL AO PROCESSO, POIS NÃO HÁ RELAÇÃO ENTRE A SUSPENSÃO DA CNH E O PAGAMENTO DA DÍVIDA. DECISÃO PARCIALMENTE REFORMADA. RECURSO PARCIALMENTE(n° 1706393-9)PROVIDO (PARANÁ, 2018)
Nesse desiderato, não é crível e tampouco razoável que todos os créditos de unidades imobiliárias de qualquer incorporadora, seja dada a proteção conferida de impenhorabilidade esculpida no art. 833, XII, do CPC.
4.2. A proteção conferida ao patrimônio da incorporação imobiliária e o “termo de afetação”
Durante a construção da obra, na incorporação imobiliária, tanto as incorporadoras quanto os consumidores submetem-se a riscos que podem ser ocasionados por diversos fatores, sejam estes alheios ou não à incorporação imobiliária em questão.Não é por motivo banal que o patrimônio da incorporação está atualmente tutelado por diferentes dispositivos no CPC de 2015 e em legislações dispersas, como o já aludido art. 833. XII do CPC, o art. 31-A ao 31-F da Lei 5.591/64 (patrimônio de afetação), art. 55. da Lei 13.097/20159. A finalidade é justamente a defesa ao patrimônio da incorporação imobiliária, protegendo de forma direta tanto os incorporadores, quanto os adquirentes de imóveis.
Araken de Assis (2016, p. 350), entende que o referido dispositivo legal (artigo 833, inciso XII) complementa a disposição expressa no inciso VII, que aborda a impenhorabilidade dos materiais necessários para obras em andamento, com exceção daquelas inconclusas (ou seja, permite-se penhorar, em determinadas hipóteses, o próprio edifício em construção)10. São suas lições:
Cuida-se [o art. 833, inciso XII] de norma complementar à do art. 833, VII, com idêntico objetivo – propiciar o término da obra – e submetido à ressalva do art. 833, § 1º, ou seja, não surte efeitos perante a execução de dívidas contraídas para realizar a obra (v.g., a do fornecedor das esquadras). Em geral, cria-se sociedade de destinação específica para essa finalidade (ASSIS, 2016, p. 350).
Conforme pode se observar todos os dispositivos legais acima retratados objetivam algo em comum, terminar as obras e entregar o empreendimento aos adquirentes de imóveis, com as respectivas unidades imobiliárias autônomas finalizadas. Nesse viés, como já abordado anteriormente, há a discussão doutrinária acerca da impenhorabilidade quando inexistente patrimônio de afetação, ou seja, quando inexistente o registro do “termo de afetação” no Registro de Imóveis.
Veja-se que o inciso XII do Código de Processo Civil de 2015 não menciona em nenhuma passagem a necessidade de o incorporador constituir patrimônio de afetação em sua incorporação imobiliária. No entanto, não é possível enxergar o dispositivo de forma crua, sem uma análise sistêmica do ordenamento jurídico, de sorte que deve ser observado em conjunto com os demais artigos mencionados, de modo a resguardar não só o conteúdo social econômico da incorporação imobiliária, como de eventuais credores existentes.
Nessa mesma linha aborda Nery Junior e Andrade Nery (2016, p. 1828):
Em razão da parte final deste inciso, que restringe a impenhorabilidade dos créditos nele mencionados à “execução da obra”, a aplicação deste dispositivo está condiciona à instauração de patrimônio de afetação na incorporação imobiliária, o que constitui faculdade do incorporador (NERY; NERY, 2016, p 1828).
Alguns doutrinadores como Melhim Chalhub (2017, p. 116-117) entende de forma diversa, devendo a impenhorabilidade aplicar-se a todas incorporações imobiliárias:
A impenhorabilidade instituída pelo CPC/2015 é regra geral de preservação dos recursos oriundos das vendas, aplicável a toda e qualquer incorporação, mesmo àquelas não submetidas ao regime de afetação, e, dado seu caráter cogente, veio preencher importante lacuna da Lei no 4.591/1964, pois enquanto esta prevê a afetação apenas como uma faculdade do incorporador, o artigo 833, XII, do CPC/2015 importa em afetação compulsória das receitas das vendas de toda e qualquer incorporação imobiliária (CHALHUB, 2017, p. 116-117).
Na obra de Caio Mário da Silva Pereira (2016, p.262), atualizada por Melhim Namem Chalhub e Sylvio Capanema de Souza, também se faz referência à possibilidade de aplicação do referido artigo (833, inciso XII, do CPC/2015) para toda e qualquer incorporação imobiliária. O autor entende que a limitação do campo de incidência da proteção patrimonial propiciada pela afetação foi compensada, em certa medida, pelo Código de Processo Civil de 2015, que estendeu a regra de preservação dos recursos destinados à obra a toda e qualquer incorporação imobiliária, independentemente de o incorporador ter exercido a faculdade de averbação do “termo de afetação” no Registro de Imóveis.
Conceder o caráter de irrefutabilidade a uma regra geral no mundo do direito, é tornar a norma despicienda, enrijecida e imutável, frente a diversos cenários existentes no nosso cotidiano, inclusive com a velocidade dos acontecimentos existentes no dia a dia.
Aprovar que deve existir a relativização da impenhorabilidade indicada no art. 833. XII do CPC, é a não revogação do art. 31-A §1º da Lei n. 4.591/64, que é expresso em relativizar o patrimônio de afetação para débitos e obrigações vinculadas à própria incorporação.
Art. 31-A. A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes.
§ 1º O patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva (BRASIL, 1964).
Ora, se é possível penhorar créditos mesmo que estejam vinculados ao patrimônio de afetação, quiçá créditos de unidades imobiliárias comercializadas pela incorporadora, sem patrimônio de afetação.
A jurisprudência se posiciona na relativização de impenhorabilidade aqui traçada:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. RESCISÃO CONTRATUAL. DECISÃO QUE DEFERIU A PENHORA SOBRE O TERRENO OBJETO DE CONSTRUÇÃO DO EMPREENDIMENTO. IRRESIGNAÇÃO RECURSAL DA EXECUTADA. DESACOLHIMENTO. PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO QUE, NO CASO, NÃO IMPEDE A REALIZAÇÃO DA PENHORA PARA GARANTIA DO CRÉDITO EXEQUENDO. EXCEPCIONALIDADE EXPRESSA QUANTO ÀS DÍVIDAS E OBRIGAÇÕES VINCULADAS À INCORPORAÇÃO. INTELIGÊNCIA DO ART. 31-A, § 1º, DA LEI N. 4.591/64. DÍVIDA ORIUNDA DE RESCISÃO DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA REFERENTE A LOTE DE EMPREENDIMENTO AFETADO. POSSIBILIDADE DE PENHORA, TAL QUAL DEFERIDO PELO JUÍZO A QUO. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO(SÂO PAULO, 2018)
CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. REJEIÇÃO DE IMPUGNAÇÃO. PRETENSÃO DE LEVANTAMENTO DE PENHORA, SOB A ALEGAÇÃO DE QUE SE TRATA DE PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO. TODAVIA, EXCEÇÃO LEGAL PREVISTA NO ARTIGO 833, XII, DO CPC/2015, NÃO SE APLICA QUANDO A DÍVIDA DECORRE DO PRÓPRIO EMPREENDIMENTO, A TEOR DO ART. 31-A, § 1º, DA LEI N. 4.591/64, INCLUÍDO PELA LEI N. 10.931/04. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO(SÂO PAULO, 2019)
Partindo ainda de um prisma maior ainda, abrangendo verbas de natureza alimentar, fiscal, previdenciária, também não foi revogado o art. 76. da MP 2.158, de 24/08/2001, em vigor em face da Emenda Constitucional 32/2003, estabelecendo que as normas atinentes a afetação ou a separação “a qualquer título, de patrimônio de pessoa física ou jurídica não produzem efeitos em relação aos débitos de natureza fiscal, previdenciária ou trabalhista, em especial quanto às garantias e aos privilégios que lhes são atribuídos.” (BRASIL, 2001)11
Resta, portanto, claro que a posição de relativização da impenhorabilidade do art. 833. XII, é imperioso frente à necessidade do respeito ao princípio da disponibilidade, proporcionalidade, razoabilidade e efetividade inerente a Execução no ordenamento jurídico pátrio.
Nesse contexto, necessário averiguar como estão sendo analisados os quadros fáticos na jurisprudência sobre a matéria, sob diferentes perspectivas.
4.3. Aplicações fáticas sobre penhora dos créditos de incorporação imobiliária
A jurisprudência dos tribunais brasileiros não tem sido uníssona com a interpretação do artigo 833, inciso XII, do Código de Processo Civil de 2015. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e outros como o Tribunal de Justiça de São Paulo têm entendido que não demonstrada a afetação do patrimônio de incorporação, não deve ser considerado impenhorável os créditos oriundos das unidades imobiliárias comercializadas pela incorporação imobiliária.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. AÇÃO RESCISÓRIA C/C INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PENHORA. IMÓVEL SOB INCORPORAÇÃO. LEI Nº 4.591/64. FRAÇÃO NÃO EDIFICADA REGISTRADA. O devedor responde com seus bens presentes e futuros à satisfação da execução, excetuado aqueles expressamente impenhoráveis. O imóvel objeto de incorporação imobiliária pode ser objeto de penhora quando não demonstrada a afetação do patrimônio, como disposto no art. 31-A da Lei n. 4.591/94. - Circunstância dos autos em que o imóvel não possui afetação; as unidades autônomas não foram edificadas; e se impõe manter a penhora sobre a integralidade do bem. RECURSO DESPROVIDO (RIO GRANDE DO SUL,2018)
RECURSO INOMINADO. FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. IMPENHORABILIDADE DO ART. 833, XIII, DO CPC/2015. INAPLICABILIDADE. LIMITAÇÃO DA PENHORA. IMPOSSIBILIDADE. IMÓVEL QUE NÃO FOI OBJETO DE INDIVIDUALIZAÇÃO. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE PENHORA DESACOMPANHADA DE INDICAÇÃO DE OUTROS BENS EM GARANTIA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DOS EMBARGOS À EXECUÇÃO MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. RECURSO IMPROVIDO. Ressalta-se, que para a constituição da afetação do patrimônio do imóvel que é objeto da incorporação seria necessária a expressa opção por este regime patrimonial, através de averbação específica para instituição do patrimônio de afetação em ato distinto e posterior, que não se confunde com o registro da incorporação imobiliária, conforme estabelecem os artigos 31-A e 31-B, ambos da Lei 4.591/64, com as alterações da Lei 10.931/2004, in verbis (RIO GRANDE DO SUL, 2019)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PENHORA DE RECEBÍVEIS. PRETENDIDO BLOQUEIO DE NUMERÁRIO A SER DISPONIBILIZADO POR INSTITUIÇÃO RESPONSÁVEL PELO FINANCIAMENTO DE DIVERSO EMPREENDIMENTO EM FASE DE CONSTRUÇÃO PELA EXECUTADA. IMPOSSIBILIDADE. VERBA INSERIDA EM PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO. VINCULAÇÃO DO NUMERÁRIO ÀS DÍVIDAS E OBRIGAÇÕES VINCULADAS À INCORPORAÇÃO RESPECTIVA, NÃO SE SUJEITANDO ÀS DEMAIS OBRIGAÇÕES ASSUMIDAS PELO INCORPORADOR. INTELIGÊNCIA DO DISPOSTO NO ART. 833, XII, DO CPC. AGRAVO DESPROVIDO (SÃO PAULO, 2017)
COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PENHORA. CONSTRIÇÃO DE NUMERÁRIO DEPOSITADO EM CONTA CRIADA PARA DEPÓSITO DE RECURSOS FINANCEIROS DESTINADOS ÀS OBRAS DO EMPREENDIMENTO IMOBILIÁRIO, COM PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO. INADMISSIBILIDADE, NOS TERMOS DO ART. 833, XII DO CPC/2015 E ART. 31-A, CAPUT E §1º DA LEI Nº 4.591/64. PRECEDENTES. DECISÃO REFORMADA. AGRAVO PROVIDO (SÃO PAULO, 2018).
É diferente, todavia, o entendimento da 3ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que se posiciona pela possibilidade de aplicação do artigo 833, inciso XII, do Código de Processo Civil de 2015, mesmo na hipótese em que o incorporador não comprova a constituição de patrimônio de afetação, devendo demonstrar somente que a constrição judicial se deu sobre crédito destinado à execução das obras.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA.BLOQUEIO ELETRÔNICO. BACENJUD. ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE. CRÉDITO ORIUNDO DE ALIENAÇÃO DE UNIDADES IMOBILIÁRIAS. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NÃO DEMONSTRADO. CONSTRIÇÃO MANTIDA. (...) II. A incidência da hipótese de impenhorabilidade prescrita no artigo 833, inciso XII, do Código de Processo Civil, depende da comprovação, pelo executado, de que os "créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária", estejam vinculados à consecução do empreendimento imobiliário. III. Essa regra de impenhorabilidade pressupõe que a incorporação imobiliária seja submetida ao "regime de afetação" e que tenha sido instituído, mediante averbação no álbum imobiliário, o denominado "patrimônio de afetação", conforme se depreende dos artigos 31-A e 31-B da Lei 4.591/1964. IV. Só a dissociação entre o patrimônio da incorporadora e o "patrimônio de afetação", devidamente demonstrada nos autos, dá respaldo à impenhorabilidade de que trata o inciso XII do artigo 833 do Código de Processo Civil. V. Recurso conhecido e desprovido.” (DISTRITO FEDERAL, 2017).
Nada obstante a divergência jurisprudencial sobre os casos práticos quando se trata de impenhorabilidade com ou sem patrimônio de afetação. Exsurge ainda a relativização trabalhada no tópico anterior diante de mitigação da penhorabilidade por expressa previsão legal, como no julgado abaixo do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, que afastou a impenhorabilidade por força do art. 76. da MP 2.158, de 24/08/2001, em vigor em face da Emenda Constitucional 32/2003.
(...) certo que as normas que estabelecem afetação não tem efeito em relação aos débitos de natureza trabalhista e previdenciária, como bem explicitou a r. sentença de origem, cujos fundamentos, ora transcritos, servem para, igualmente, fundamentar a manutenção do que já decidido:
Além disso, muito embora haja a alegação de que tais valores estejam inscritos dentro do patrimônio de afetação, previsto no art. 31-A, da Lei n. 4.591/1964, é importante destacar o art. 76, da Medida Provisória n. 2.158-35, de 24/08/2001, em vigor em face da Emenda Constitucional n. 32/2003, que estabelece que as normas que estabelecem a afetação, a qualquer título, de patrimônio de pessoa jurídica, não possuem efeitos em relação aos débitos de natureza trabalhista e previdenciária, justamente a natureza de todas as dívidas executadas nos processos acima relacionados:
"Art. 76. As normas que estabeleçam a afetação ou a separação, a qualquer título, de patrimônio de pessoa física ou jurídica não produzem efeitos em relação aos débitos de natureza fiscal, previdenciária ou trabalhista, em especial quanto às garantias e aos privilégios que lhes são atribuídos.
Parágrafo único. Para os fins do disposto no caput, permanecem respondendo pelos débitos ali referidos a totalidade dos bens e das rendas do sujeito passivo, seu espólio ou sua massa falida, inclusive os que tenham sido objeto de separação ou afetação.".
É certo, ainda, que o art. 833, inciso XII, estabelece como impenhoráveis "os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra".
No entanto, como ensinam Nélson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, ao comentarem o inciso XII, do art. 833, do NCPC, a aplicação deste dispositivo está condicionada à instauração de patrimônio de afetação na incorporação imobiliária (...) (BAHIA, 2020).
Nesse mesmo julgado a relatora ainda destaca o fato de o crédito ali buscado possuir natureza alimentar e o art. 186. da Lei Complementar nº 118 de 2005, que alterou o CTN, de hierarquia superior e com data posterior à edição da Lei nº 10.931/04, estabelece a preferência do crédito trabalhista sobre qualquer outro, incluindo aí eventuais direitos dos adquirentes das unidades imobiliárias alienadas no empreendimento. 12
Diferente das posições destacadas acima sobre a penhorabilidade dos créditos oriundos de incorporação imobiliária, mesmo com regime de afetação dos bens, existe a situação de entendimento jurisprudencial, como por exemplo o julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, pela impenhorabilidade quando ocorre a criação de uma sociedade de propósito específico (SPE) cumulado com o patrimônio de afetação.
DECISÃO EXTRA PETITA – INOCORRÊNCIA – PRELIMINAR REJEITADA AGRAVO DE INSTRUMENTO – DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE MANTÉM ORDEM DE BLOQUEIO ON LINE DE ATIVOS FINANCEIROS EM NOME DA COEXECUTADA SPE NOSSA SENHORA SOCIEDADE DE PRÓPOSITO ESPECÍFICO – SPE – TIPO SOCIETÁRIO QUE VISA A SEGURANÇA DO EMPREENDIMENTO IMOBILIÁRIA A QUE ESTÁ DESTINADA – OBJETO SOCIAL QUE VISA EXCLUSIVAMENTE A REALIZAÇÃO DE DETERMINADA OBRA, COM OBRIGAÇÕES EXCLUSIVAS E AUTÔNOMAS – PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO – IMPENHORABILIDADE – ARTIGO 833, INCISO XII, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 - DADO PROVIMENTO AO RECURSO” (SÃO PAULO, 2017).
A abordagem da forma acima elucidada é de extrema importância, posto que demonstra claramente a boa-fé objetiva da incorporadora em organizar e delimitar claramente a repartição dos bens dos promitentes compradores. Diante de todo cenário, percebe-se que a jurisprudência sinaliza para a posição de impenhorabilidade quando a empresa incorporadora possua patrimônio de afetação constituído, e nos casos de decisões trabalhistas sequer se houver patrimônio de incorporação.
Mesmo assim, existe importante julgado do Superior Tribunal de Justiça quanto a ENCOL que permitiu a exclusão de unidades imobiliárias do acervo da massa falida e determinou sua entrega aos adquirentes para prosseguimento das obras e apropriação das unidades adquiridas.
PROCESSUAL CIVIL E IMOBILIÁRIO. INCORPORAÇÃO. FALÊNCIA ENCOL. TÉRMINO DO EMPREENDIMENTO. COMISSÃO FORMADA POR ADQUIRENTES DE UNIDADES.CONTRATAÇÃO DE NOVA INCORPORADORA. POSSIBILIDADE. SUB-ROGAÇÃO DA NOVA INCORPORADORA NOS DIREITOS E OBRIGAÇÕES DA ENCOL. INEXISTÊNCIA. SISTEMÁTICA ANTERIOR ÀS ALTERAÇÕES IMPOSTAS À LEI No 4.591/64 PELA LEI No 10.931/04. 1. Na hipótese dos autos, diante do inadimplemento da Encol, parte dos adquirentes de unidades do empreendimento se mobilizou e criou uma comissão objetivando dar continuidade às obras. Para tanto, essa comissão interviu nos próprios autos da falência, tendo obtido provimento jurisdicional autorizando que as “unidades estoque” (aquelas não comercializadas pela Encol) e as “unidades dos não aderentes” (daqueles que não quiseram aderir à comissão) fossem excluídas de qualquer vinculação com a massa falida, propiciando a retomada e conclusão da edificação, independente de qualquer compensação financeira. O juízo falimentar também autorizou, após a realização de assembleia geral, a substituição da Encol no registro imobiliário, o que levou a comissão a celebrar com a incorporadora recorrente um contrato de promessa de permuta, para que esta concluísse o empreendimento, recebendo, em contrapartida, as unidades estoque e as unidades dos não aderentes. Há, pois, duas relações jurídicas absolutamente distintas: a primeira entre a Encol e os adquirentes originários de unidades do empreendimento; e a segunda entre a comissão de representantes desse empreendimento e arecorrente. Sendo assim, inexiste relação jurídica triangular que englobe a massa falida da Encol, os recorridos e a recorrente, a partir da qual esta teria se sub-rogado nos direitos e obrigações da Encol, o que justificaria a sua inclusão no polo passivo da execução movida pelos recorridos em desfavor da Encol. 2. Embora o art. 43, III, da Lei no 4.591/64 não admita expressamente excluir do patrimônio da incorporadora falida e transferir para comissão formada por adquirentes de unidades a propriedade do empreendimento, de maneira a viabilizar a continuidade da obra, esse caminho constitui a melhor maneira de assegurar a funcionalidade econômica e preservar a função social do contrato de incorporação, do ponto de vista da coletividade dos contratantes e não dos interesses meramente individuais de seus integrantes. 3. Apesar de o legislador não excluir o direito de qualquer adquirente pedir individualmente a rescisão do contrato e o pagamento de indenização frente ao inadimplemento do incorporador, o espírito da Lei no 4.591/64 se volta claramente para o interesse coletivo da incorporação, tanto que seus arts. 43, III e VI, e 49, autorizam, em caso de mora ou falência do incorporador, que a administração do empreendimento seja assumida por comissão formada por adquirentes das unidades, cujas decisões, tomadas em assembleia, serão soberanas e vincularão a minoria. 4. Recurso especial provido." (BRASIL, 2011).
Dessa forma, resta claro que o instituto é um novel dispositivo que apresenta papel importante para a atividade desempenhadas pelas incorporadoras, mas que também não pode ser utilizada de forma discricionária e descuidada por parte das incorporações.
A simples análise positivista do art. 833. inciso XII do CPC acarretará graves equívocos, posto que não amparados em um maior contexto, notadamente no aspecto do princípio da maior efetividade da tutela jurisdicional e demais legislações sobre a matéria.
Nesse sentido, mesmo não existindo posicionamento fixado perante o Superior Tribunal de Justiça, resta claro através da análise dos jugados e posicionamento dos tribunais, que deve haver o respeito a persecução dos bens dos devedores, principalmente em face dos basilares da execução, como o resultado útil do processo, na análise da impenhorabilidade dos créditos derivados de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação.
Deste modo, na sua maioria, os tribunais assinalam que não há só a necessidade de comprovar que os créditos, eventualmente penhorados sejam de unidades imobiliárias, mas que eles sejam vinculados a execução da obra, possuam patrimônio de afetação registrado em cartório e não esteja em conflito com os princípios norteadores da execução.
É imprescindível que o legislador relativize a impenhorabilidade descrita no art. 833. inciso XII do CPC, sob pena de o Poder Judiciário assim o fazer, a fim de garantir que a tutela jurisdicional executiva também atenda a dignidade do credor, em homenagem aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.