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Estado de Direito republicano

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01/01/2007 às 00:00
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O Direito Justo na República

Do ponto de vista do espírito de nobreza 10 que caracteriza a República, desde os romanos, podemos dizer que dois sentidos são essenciais aos dias de hoje: a) desejo de Justiça; b) forte sensação da Justiça. É preciso, pois, relacionar o imaginário do Direito Justo com a concretude das instituições políticas republicanas. Equivale a dizer que o chamado realismo político não pode aniquilar o sentimento de Justiça.

Já se tornou proposição clássica a alegação de que é preciso alimentar o desejo de Justiça. Porém, pensamos que este desejo só se alimenta e enobrece se há como sentir a Justiça. O sentimento da Justiça – como o sentimento mais nobre que se pode nutrir na República – não será exeqüível se não houver uma clara sensação de Justiça. Ou seja, não só de que isto seja possível, mas fundamentalmente (é preciso saber) que a Justiça já está em andamento, que é parte integrante dos sentimentos, mas também das ações republicanas: tanto um sentimento (virtual), quanto ação (real).

Trata-se ainda de um sentimento em que há demonstração dessa força. Assim, segue-se à primeira fase do desejo de Justiça, uma segunda que corresponde ao sentimento da Justiça e, por fim, este sentir a Justiça. Esse entrelaçamento entre República e Justiça, portanto, é um tema político porque é de interesse dos grupos políticos interessados na defesa dos interesses populares: "Se devesse propor um tema de discussão para a esquerda hoje, proporia o tema atualíssimo, árduo mas fascinante, da ‘justa sociedade’. Continuo a preferir a severa justiça à generosa solidariedade. Sempre houve a generosa solidariedade, mesmo quando os mendigos amontoavam-se nas escadas das igrejas" (Bobbio, 2001, p. 140). Neste sentido, a Justiça é resultante da política (ação) e do costume republicano.


Prioridades na República

A República ou Estado de Direito Republicano tem como prioridade política e administrativa, a defesa dos interesses públicos. Essa função de zelar pela coisa pública, na verdade, dado o espírito público que é nutrido (pela forma de governar republicanamente) junto ao povo (um complexo social, político e cultural), traduz-se em real característica ou dever público, porque intensificam-se os costumes, as práticas sociais e políticas reiteradas, os valores, os símbolos e as ações em torno de uma dinâmica social que aproxima e articula globalmente: a legitimidade dos interesses privados é suspensa e seus efeitos adiados quando confrontada com o interesse público.

A República requer a necessidade de uma consciência ou cultura política voltada à transformação da própria dinâmica social, agora em uma espécie de radicalidade política, pois a intencionalidade política do espírito e o ethos público adquirem aí o seu ápice, o alcance realmente global – denotando, por fim, um relevo bem mais significativo se comparado à virtualidade em que se assenta a representação parlamentar. Consciência essa que se constrói na longa lista de espera da história política brasileira, mas já posta em andamento.

Vê-se, assim, como se opera essa concretização dos anseios populares, por meio de uma mediação entre cultura política e efervescência democrática. De forma complementar, ainda se pode dizer que a República tem características que em muito se assemelham à democracia, pois é notável como as noções de temporariedade, eletividade e responsabilidade remetem ao núcleo dos princípios democráticos.

Assim, é como se disséssemos que, atualmente, não há verdadeiramente uma República se não se empenham e aprofundam as forças políticas e públicas de base democrática, da mesma forma que, não pode haver democracia que não seja voltada ao reconhecimento, defesa e promoção desse espírito público. Desse modo, portanto, sempre será bem vinda a análise que pontue e acentue os costumes políticos e éticos (o ethos) no interior da cultura democrática e republicana: a cultura política que cultua a democracia.


Ethos Público ou Estado Ético

A cultura e os costumes referentes são partes constituintes e essenciais de um ethos: o corpo ético e político que modela e dá forma à sociedade civil. Nesse contexto, também entendemos coisa pública como constituindo um ethos público. O debate sobre o ethos público, entretanto, inicia-se com Rousseau, já n’O Contrato Social (Livro I, cap. VI). Por ethos público podemos entender a consumação da vontade política do povo em prol de sua auto-organização – portanto, na figura diretiva do Estado Ético: o Estado que quer a ética resguarda a si mesmo a capacidade jurídica e política da livre participação e gerenciamento do próprio Estado e da vida pública de forma ampla, uma vez prevalecente o princípio da autonomia quando da definição dos costumes políticos e públicos.

A interseção no âmbito da vida privada, bem como diante da manifestação pública, dá-se nos moldes do que se considere a moral e os bons costumes. De forma extensiva, do pensamento de Rousseau, também se extrai a raiz da chamada Teoria dos Direitos Públicos Subjetivos: a substância viva e orgânica da constituição do Poder Constituinte, da cidadania ativa, da soberania popular, do Estado de Direito e da supremacia constitucional. Análise bem posta por Roberto Romano (2002):

Importa recordar a tese de Rousseau sobre os dirigentes políticos. A soberania é inalienável e o governo significa apenas um emprego no qual, enquanto simples funcionários do povo soberano, líderes exercem em seu nome o poder de que são depositários. O controle da República é do povo (...) Nenhuma autoridade deve esquecer que o mando é temporário e volta à mão dos eleitores (...) Soberania significa, pois, democracia. Esta, para se manter e se expandir, não pode abandonar a força e o respeito às leis.

Como acabamos de ver, e nunca é demais acentuar, sem um substrato realmente impregnado pelos assuntos públicos tudo não passa de retórica – e a educação (formal e de cunho político 11) é o próprio fermento desse substrato político popular, como vemos com Dallari (1998):

Educar bem é estimular o uso da inteligência e da crítica, é reconhecer em cada criança uma pessoa humana, essencialmente livre e capaz de raciocinar, necessitada de receber informações sobre as conquistas anteriores da inteligência humana e sobre a melhor forma de utilização de tais informações para a busca de novos conhecimentos (...) Faz parte da boa educação demonstrar à criança a importância do governo e dos homens que dedicam sua vida, com honestidade e desprendimento, à satisfação das necessidades e dos interesses da coletividade. Mas isso não se confunde com a idolatria do governo e dos governantes, com o treinamento para a obediência automática e a subserviência (p. 47-9 e 50).

Como vimos e ainda veremos de modo mais aprofundado, a educação é um tema essencial à República. A educação pública é o veio que alimenta o Povo de costumes públicos e, por isso, é de interesse global – incluindo-se aí o próprio Estado.


Educação Para a República: A política ao alcance de todos

Desse modo, num exemplo de realidade, imaginemos uma questão elementar, simples, corriqueira, até mesmo banal (mas muito viva e concreta), de desrespeito, desinteresse, irresponsabilidade e descaso com o espaço de convivência pública. Agora, pensemos em como ultrapassar a mera negação das condições de oferta de convivência (da relação de negatividade: incluindo a agressividade, cinismo ou simples desdém) e em como construir a própria experiência da República no dia-a-dia - em direção, portanto, ao aspecto positivo da vida pública.

Imaginemos a República, o fortalecimento e o aprofundamento dessa ética pública, pois que se trata do espaço de todos, do espaço de convivência coletiva, mas vamos partir do nosso lugar, da nossa carteira e do território que ainda se restringe ao âmbito cognitivo e psíquico individual.

Na referência de Dallari: "A educação torna as pessoas mais preparadas para a vida e também para a convivência. Com efeito, a pessoa mais educada tem maior facilidade para compreender as demais, para aceitar as diferenças que existem de indivíduo para indivíduo e para dar apoio ao desenvolvimento interior e social das outras pessoas. Por isso a educação de cada um interessa a todos" (1998, p. 47).

Agora, vamos reler uma parte recortada dessa citação: A educação torna as pessoas mais preparadas para a convivência (...) Por isso a educação de cada um interessa a todos.

Pois bem, diante do que vimos, pensemos no caso concreto:

  1. Por que um sujeito é capaz de depredar as dependências ou os equipamentos de uma sala de aula, desrespeitando a todos, principalmente a seus colegas? Há prazer na maldade?

  2. Nós todos, o público afetado por tudo isso, devemos fazer o quê?

  3. Que ação deve ser desencadeada, para que o interesse público não seja prejudicado?

  4. Que relações podemos estabelecer entre educação e República, entre educação e convivência pública?

  5. É possível alterar a política, a vida pública, sem alterar a nós mesmos?

O que nos permite entender ou ao menos apresentar, por fim, três sentidos disso que se chama de junção da política com a ética pública, sendo os dois primeiros de ordem prática e o último mais teórico:

1) Sem essa "reserva ou estoque de modos de convivência", de educação para suportar o espaço público, sem esse mínimo de abertura para o que é comum – o espaço sem dono ou de alguém que se aproprie de forma privada e, justamente por isso, sabendo-se ser de todos -, não há vida social possível.

2) Tudo isso se apreende na escola, por meio da educação formal, mas sem o lastro que vem de casa (educação entre homogêneos) e da rua (relação entre heterogêneos) toda educação não passará de retórica. A vida pública se apreende na relação de alteridade (como lição política clássica, mas de ordem prática) e não exatamente nos livros ou manuais – e também aí há uma clara relação entre educação e política.

Já na terceira conclusão, de ordem técnica ou teórica, podemos pensar que o Estado Popular é a antítese política de toda forma autocrática de poder que provoque ou intensifique, de qualquer forma e sob qualquer alegação, a desigual distribuição das riquezas sociais e, dessa forma, não promova ou estimule a dignidade humana.

Esse modelo econômico, social e político calcado na desigualdade, por seu turno, é oposto à democracia ou Estado Democrático, pois não corrobora a própria igualdade política inerente a qualquer síntese das regras do jogo: governo da maioria, respeito pelas minorias, rotatividade do poder e sufrágio universal. E, nesse caso, não há República possível – a não ser sob a forma de republiqueta.

A seguir, veremos ainda o imbricamento entre os princípios e componentes estruturais da República e da Federação.


Estado Federal ou Federativo

Conceitualmente, no entanto, o Estado Federal ou Estado Federativo é composto de vários elementos, sobretudo pela definição e defesa da República (Estado Republicano), da Democracia (Estado Democrático), da ética ou ethos público (Estado Ético de dever público) e da participação popular na política (Estado Popular). Há elaborações políticas que também necessitam de uma melhor distinção acerca de seus elementos políticos e jurídicos (Estado Constitucional) e aos quais devemos passar a seguir.

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No Estado Republicano, é notável como as regras de temporariedade, eletividade, transparência - exposição e visibilidade política e administrativa - e responsabilidade (definidas antecipadamente por lei) remetem ao núcleo dos princípios democráticos. Hoje em dia, pode-se entender o conceito de República Federativa como uma maneira de governar (ou forma de governo) própria ou específica (res pública), podendo ser mais ou menos popular e democrática, e que melhor gerencie as coisas públicas e que esteja de acordo com os interesses públicos - agregando-se a presunção do bem comum à preservação do bem público -, como se fora uma aliança, organização ou união indissolúvel de interesses e de entidades federativas essenciais à vida pública e, portanto, definidos como públicos.

Assim, no Estado Ético, a cultura e os costumes em que ela própria está lastreada são parte constituinte e essencial de um ethos: corpo ético e político que modela e dá forma à sociedade civil. Nesse modelo político ético, a norma superior (a Constituição, no Estado Constitucional) decorre do pacto político firmado na fundação do Estado e reafirmado no momento jurídico de sua revisão, reformulação e aprovação popular ao longo dos sucessivos períodos históricos, verificados nas denominadas revisões constitucionais e com base, justamente, na alegação de força instituinte do próprio Poder Constituinte (popular e revolucionário ou transformador, em especial na sua gênese social e histórica).

Nesse ponto, permitamo-nos sublinhar a consciência política voltada à própria coisa pública (ou, de forma mais técnica, como um certo "domínio técnico", intelectivo, moral e afetivo – como "afinidade eletiva" ou simplesmente ideológica – dos símbolos e significados das relações políticas e do poder), bem como sobre a consciência individual, agora de ordem prática, que se nutre ou que se espera ver prosperar nos domínios do espaço e do território públicos. Podemos pensar em algum tipo de educação que favoreça o convívio público e pacífico?

De forma concreta, façamos um exercício de reflexão acerca do que se chama de fixação de conteúdos e de conceitos. E, para tanto, tomemos um exemplo de como a educação é fundamental e ainda que muitas sejam as vezes em que se apresente escassa no microcosmo político – o que inclui certos espaços da vida privada.

Sinteticamente, podemos definir a Federação como sendo a união indissolúvel entre Estados-Membros independentes e autônomos, mas não soberanos, e capaz de gerar e guiar-se por um governo comum voltado à República, à preservação das coisas de todos, em que a União é ente federativo (art. 1º, caput, C.F.). E por Estado Federal entendemos a forma de Estado em que o poder é essencialmente público e submetido à eletividade, transitoriedade e, por sua vez, é capaz de constituir (política e juridicamente) uma efetiva responsabilidade administrativa e política (competência e probidade).

De forma mais detalhada e elucidativa (técnica), no entanto, ainda se pode dizer que se trata de: uma aliança política e administrativa de caráter permanente ou união indissolúvel entre Estados-Membros, independentes entre si (respeitando-se a repartição de competências ou divisão de funções, assegura-se a autonomia política, mas não a soberania, pois, não se reconhece o direito de secessão), que é capaz de gerar um governo comum e que resulte da defesa e preservação das coisas comuns a todos (portanto, voltado à República). Assim, ainda pode ser definida como esfera de poder (a União é ente federativo junto com Estados, Distrito Federal e Municípios) em que o próprio poder político é compartilhado (pela União e pelas entidades federadas) e, por isso, são asseguradas fontes de rendimento próprio para cada esfera de competência e de cidadania (sendo esta última sempre definida em relação ao Estado Federal, como direito de nacionalidade, e não em razão da localidade apontada como de nascimento, residência ou domicílio).

Em suma, de acordo com Dallari (2000), são oito as características que compõem e conformam a Federação e devem constar da Constituição. Na Constituição brasileira, é sabido que a Federação é definida como cláusula pétrea (defendendo a forma de Estado contra reformas ou atentados constitucionais, estando acima das vicissitudes políticas). Por seu turno, essas características da Federação foram assim resumidas por Pinho (2002):

1ª) a união faz nascer um novo Estado; 2ª) a base jurídica da Federação é uma Constituição e não um tratado; 3ª) não existe o direito de secessão; 4ª) só o Estado Federal tem soberania, pois as unidades federadas preservam apenas uma parcela de autonomia política; 5ª) repartição de competências entre a União e as unidades federadas fixada pela própria Constituição; 6ª) renda própria para cada esfera de competência; 7ª) poder político compartilhado pela União e pelas unidades federadas; 8ª) o indivíduo é cidadão do Estado Federal e não da unidade em que nasceu ou reside (p. 02).

O que o (e)leitor não visualiza de forma clara ou mais precisa neste resumo das características é justamente o significado e alcance político e cultural que queremos ver florescer nas sociedades de orientação republicana e democrática. É fácil perceber a dimensão técnica com que se trata o poder e sua organização e distribuição nessa forma de Estado, mas é igualmente visível que se dá pouca atenção à cultura política.

Aliás, esse é um dos graves problemas notados em manuais, pois, se são técnicos, raramente são dotados de análise e crítica política aprofundada 12. Então, do que trata realmente a crítica apontada ou, mais especificamente, do que se trata quando se aborda o Estado Republicano?

Talvez seja desnecessário dizer, mas ainda acentuamos que sem essa base em que se assenta a cultura política democrática e republicana (com forte presença, apelo e incentivo à educação popular) não há que se falar em República, Federação ou democracia.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de Direito republicano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1279, 1 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9308. Acesso em: 19 abr. 2024.

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