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A modernidade perdeu a razão:

para uma sociologia do Estado de Exceção

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23/12/2006 às 00:00
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Cotidiano e Literatura

A excepcionalidade tornada regra é que dá a sensação de non sense, de sentido inconcluso, imerso no que o cotidiano chamaria de desrazão, Agora, só será desrazão se por isto entendemos que se trata de uma dominação racional-legal legitimidade pelo poder, independentemente da Justiça. Então, é uma desrazão bem específica, pensada, arquitetada, não-involuntária. No cotidiano, a excepcionalidade se revela como experiência Proto-Fascista (ou Ur-Fascista, na expressão de Umberto Eco):

1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e verdade primitiva. Como conseqüência, não pode existir avanço do saber.

2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. O iluminismo, a Idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como irracionalismo.

3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada sem nenhuma reflexão.

4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. Para o Ur-Fascismo, a crítica e o desacordo são traições.

5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade cultural. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição.

6. Uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas.

7. Na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô. Os seguidores têm que se sentir sitiados e o modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia.

8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo – com isso, porém, revelam-se incapazes de avaliar a força do inimigo.

9. Não há luta pela vida, mas antes vida para a luta. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente.

10. Há um elitismo popular, populista, que faz as massas sonharem com o poder.

11. Nessa perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Esse culto do heroísmo está estreitamente ligado ao culto da morte, não é por acaso que o mote dos falangistas era: "Viva la muerte". (Eco, 1998, p 43 e ss. – grifos nossos) [20].

Novas fantasmagorias foram e são criadas cotidianamente, mas a essência se manteve — talvez com a observação (exceção da exceção) de que a excepcionalidade hoje em dia tanto pode ser vista no Estado de Direito Oficial, quanto nas estruturas autocráticas desse protofascismo, a exemplo do crime organizado. Como na realidade essas condições habitam tanto o Estado de Direito quanto as lacunas deixadas pelo aparato de dominação e de repressão, denominamos este fenômeno de Estado de (não)Direito, pois atua tanto dentro quanto fora das estruturas de dominação racional-legal.


Estado de (não)Direito

Há muita similitude entre o Estado de não-Direito e o Estado de Direito Oficial omisso, mas destaquemos apenas algumas, especialmente quanto a(os):

  • Atos genéricos do Estado Oficial que desestabilizem, não promovam ou não incentivem os preceitos da República.

  • Omissões propositais que desestimulem o interesse público.

  • Ações ou omissões causadas ou causadoras de todas e quaisquer formas de corrupção político-administrativa.

  • Proposição de políticas públicas que agravem a miséria social.

  • Remoção de políticas públicas, medidas administrativas ou quaisquer diretrizes, metas, princípios ou objetivos de Estado que visem inibir a miséria social, sem a reposição de outro ato de governo que lhe seja equivalente em termos de alcance, profundidade e abrangência dos serviços, recursos, ou instrumentos utilizados contra essa mesma miséria social.

  • Desinteresse por medidas governamentais que desagravem a pobreza ou a miséria social.

  • Improbidade administrativa que viole os princípios ou os objetivos do Estado de Direito.

  • Incompetência administrativa que provoque ações ou omissões geradoras de outras formas de desinteresse social.

  • Toda e qualquer situação provinda da administração pública que privilegie o interesse privado ao invés do interesse público.

  • Toda situação promovida pela Administração Pública que acentue situações de classe, partidos, grupos ou indivíduos em detrimento do benefício público.

  • Promoção de leis injustas, privilégios, particularismos ou benefícios privados que levem a ações, situações ou relações baseadas na desigualdade social.

  • Desenvolvimento e funcionamento das estruturas públicas para satisfação de interesses, negócios ou necessidades estritamente pessoais, e que, ao agir assim, inibam a preservação da coisa pública. É evidente que a distribuição da Justiça individual não é exemplo de manipulação do aparelho judicial do Estado, mas é evidente que beneficiar a distribuição da Justiça individual de forma contrária à promoção da Justiça Social é exemplo suficiente.

  • Diretrizes ou finalidades do Estado que, por futilidade de interesse ou derivada de corrupção das intenções públicas, não promova ou, então, prejudique a interação e a solidariedade social.

  • Políticas Públicas, diretrizes do Estado, diretivas administrativas que obstaculizem a plena realização da felicidade popular, por meio da negação da igualdade, da liberdade ou da solidariedade social.

  • Desmantelamento do aparato público – material ou legal – que esteja a serviço da proteção dos bens públicos.

  • Deixar de desmantelar aparato público que esteja exclusivamente a serviço de interesses classistas ou individuais.

Em resumo: quando há privatização do interesse e/ou patrimônio público [21].


Fim do romantismo

Se a modernidade se proclamou pelo romantismo, como gênero literário, o Estado de Exceção fez sucumbir a ambos.

Um outro exemplo desse aparato, tornado legal, pelo Estado de total Exceção, e que se volta contra a legitimidade, é dado também por Balzac em Ilusões Perdidas (aliás, uma das ilusões perdidas é quanto à liberdade de imprensa):

Você não compreendeu a situação política atual [...] — O governo, a corte e o rei estão empenhados em acabar com a imprensa. A criação do Despertar [22] e de mais dois jornais monarquistasdestina-se a responder às calúnias publicadas nos jornais liberais. O que vai acontecer, então? A briga entre os jornais será violenta, o que dará pretexto a leis de restrição à imprensa e à censura (Balzac, 2002, p. 186).

As mesmas leis de exceção já haviam sido denunciadas por Marx. Neste diálogo é claro como a liberdade deve ser protegida dela mesma, por ações de exceção. Logo, as mesmas regras da exceção vistas em Balzac para a França, também poderiam ser alegadas para a Alemanha. Historicamente, o Estado de total Exceção na Alemanha representou um desprezo pela Constituição de Weimar. Este mesmo sentimento de desprezo pela lei foi retratado por Thomas Mann, no romance Carlota em Weimar — como se vê no diálogo inicial entre o porteiro de um hotel e a personagem principal (Carlota), quando de seu registro: "Por todos os santos, temos de pedir-lhe que escreva uma linhas. Não é exigência nossa, mas da Santa Irmandade. Não se pode sair da rotina. Leis e decretos são herdados, podemos dizer, como uma eterna enfermidade" (Mann, 2000, p 11). Este poderia não ser o espírito do escritor, mas certamente era o de seus leitores alemães, quando da publicação do livro (1939). Deferentemente de Balzac, em Thomas Mann temos agora duas peculiaridades: 1) a cultura alemã é ou foi, de certa forma, predisposta a isto; 2) a afirmação é feita por meio de uma parábola.

Primeiro, quanto à cultura, há algo de muito especial: "Meus queridos alemães’ — disse —, "eu os conheço muito bem. Primeiro se calam, depois criticam, depois separam a coisa, depois a roubam, e imediatamente se calam" (Mann, 2000, p.66). Depois, refere-se ao Fausto, de Goethe, para indicar o necessário princípio da dignidade da pessoa humana, perdido na Alemanha após 1933: "No Fausto, nessa preciosa conversa do jardim, Margarida fala ao amante, a propósito da irmãzinha, esse pobre verme, que a mãe não pode alimentar e que então só se nutre ‘de leite e água" (Mann, 2000, pp. 66-67). Por fim, refere-se a um certo processo de obstáculo: "Não sei que vertigem e pânico acontecem então. De qualquer modo, eu o chamaria processo de obstáculo: quando se coloca uma garrafa cheia com a abertura para baixo, o líquido não sai, permanece na garrafa, apesar de ter o caminho livre" (Mann, 2000, p. 67). Assim, com este claro obstáculo à liberdade, não estará tratando da liberdade perdida, cedida ao Estado de Exceção nazista? Este encontro entre razão e desrazão, entre modernidade e Estado de Exceção, é este misto ou lusco-fusco entre a afirmação da razão libertadora e a razão de que se ocupa o poder de dominação. Mann chamaria isto, utilizando outra metáfora, de benção-maldição — uma metáfora que pode ser sintetizada da seguinte maneira:

Como Deus é tudo, também compreende em Si o diabo, e não é possível aproximar-se do divino, evidentemente, sem aproximar-se do diabólico, sendo que assim é que, dizendo desse modo, com um olho se contempla o céu e o amor, e com o outro, o inferno da mais gélida negação e da neutralidade mais destruidora. Mas dois olhos, cara senhora, estejam ou não perto um do outro, constituem um olhar, e agora lhe pergunto eu: que espécie de olhar é esse no qual desaparece a contradição aterradora dos olhos? (Mann, 2000, p. 75).

Vamos entender Deus como um valor absoluto, tal qual a razão na modernidade — insuspeita em sua grandeza. Esta confluência, à base de uma contradição nos termos, não se confunde com o maniqueísmo, uma vez que os dois pólos coexistem e podem/devem gerar uma outra forma, uma forma diferente de relação com o poder. Neste sentido, trata-se de uma dialética entre a moderna razão e a sua própria exclusão (o princípio da exceção). Trata-se, então, de uma contradição (com elementos contrários, opostos e antagônicos) e não de uma mera oposição de valores e de sentidos. Portanto, também revela o sentimento vivido por todos que experimentam a imposição claustrofóbica do Estado de Sítio Político. Visto metaforicamente em Camus, a busca do consentimento é inerente [23]:

O HOMEM [24] (Ao governador)

Faço questão de obter seu consentimento. Eu não queria fazer nada sem sua permissão porque estaria contrariando meus princípios. Minha assistente vai executar tantas radiações quantas forem necessárias a fim de obter do senhor a livre aprovação para a pequena reforma que estou propondo. Pronta, querida amiga? (Camus, 2002, p. 65).

Esta força da radiação é a própria força do garrote do Estado de Sítio — daí que não cabe nenhuma alternativa, além da total resignação. Em Kafka, no entanto, há um sentimento de opressão, como claustrofobia que sufoca e inibe qualquer tentativa de desopilar o medo, a angústia.

A constante preocupação com preparativos de defesa determina que meus pontos de vista sobre o emprego da construção para esses fins se alterem ou evoluam, embora dentro de limites estreitos. Parece-me então muitas vezes perigoso basear a defesa inteiramente na praça do castelo, pois a multiplicidade da construção me oferece múltiplas possibilidades e soa mais conforme à prudência distribuir um pouco as provisões e abastecer com elas também certos lugares menores; assim, por exemplo, transformo cada terceiro recinto em local de provisão ou todo quarto lugar em reserva principal e todo segundo em reserva subsidiária e coisas do gênero (Kafka, 1998, p. 68).

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O opressor que colonizou o oprimido, transportou direto para seu psiquismo a compulsão pela segurança e pela soberania — efeitos de poder que, certamente, só interessam a quem domina. Afinal, quem está inseguro com a dominação? Quem é que precisa fortificar o Estado de Sítio Político? Daí o sentimento de que se está sempre aloprado, verticalizado em si mesmo, ensimesmado:

Pior é quando, geralmente ao acordar assustado, me parece às vezes que a atual distribuição é completamente falha, que ela pode provocar grandes perigos e precisa ser corrigida o mais rápido possível, sem consideração por sonolência e cansaço; aí eu me apresso, vôo, não tenho tempo para cálculos; porque quero executar um plano novo e exato, agarro arbitrariamente o que vem aos dentes, arrasto, puxo, suspiro, gemo, tropeço, e qualquer mudança de estado presente, que eu julgo supersticioso, me satisfaz (Kafka, 1998, p. 69).

Todo Estado de Exceção é um Estado de execução, mas além disso, o Estado de Exceção provoca distúrbios de alucinação. Na Construção de Kafka, as saídas possíveis não permitem que o indivíduo se torne sujeito, porque se enraizou nele a negação de si e tudo que tenha sentido para além do poder que o controla. A similitude com Durkheim, neste sentido, é que a coerção opera o constrangimento necessário ao enraizamento, entranhamento das normas de opressão. Talvez Weber dissesse de um desejo de ser dominado. De todo modo, como vimos em Camus (2002), a fantasmagoria, o surreal apresentado no Estado de Sítio Político, relembra perfeitamente essa condição do poder opressivo e fossilizado. Esse Estado de Sítio Político que vimos propalar-se na França (e que ameaçava incorrer por toda a Europa) pode ser considerado como o estertor do Estado de Exceção, como Estado-Força, que tenta se abrigar na alcunha de Estado Democrático e brandir o manto legal de um pretenso Estado Juiz. É um pesadelo, uma fantasmagoria, um contra-senso que se manifesta pelo poder, pela força empregada — ou, talvez, o poder seja só isso mesmo: ameaça e pressão [25].

Camus estará revelando o sentido de que o Poder (por mais maléfico que seja) sempre precisa se escorar, amparar no consentimento (popular), nas próprias instituições e tradições que o mantiveram até aquela determinada fase – na tentativa de ancorar-se na legalidade e assim obter legitimidade. Mas, no fundo, é apenas o esconderijo mal montado de um aparato autoritário, e venha ele ou não sob a rubrica da democracia,como indicaria também metaforicamente Oscar Wilde:

O Imperador e o Rei podem abaixar-se para apanhar do chão um pincel e devolvê-lo a um pintor, mas quando a democracia se abaixa, é apenas para atirar lama, embora nunca tenha se abaixado a exemplo do Imperador. Na verdade, quando quer jogar lama, não é preciso que fique mais agachada do que está. Mas não há necessidade alguma de separar o monarca da plebe: toda autoridade é igualmente má [...] Há três espécies de déspota. Há o que tiraniza o corpo. Há o que tiraniza a alma. Há o que tiraniza o corpo e a alma. O primeiro chama-se Príncipe. O segundo chama-se Papa. O terceiro chama-se Povo (Wilde,2003, p. 72).

Nesta leitura socialista radical (ou anarquista) a questão da democracia liberal não é tocada como forma de governo do povo, dada a limitação óbvia da representação parlamentar, mas sim como forma de governo dos medíocres. Esta forma de governo seria gerida pelos indivíduos medianos da política, destes que são portadores dos chamados valores comuns ou apenas senso comum. Infelizmente, os que melhor servem às formas de poder excepcionais.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. A modernidade perdeu a razão:: para uma sociologia do Estado de Exceção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1270, 23 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9313. Acesso em: 19 abr. 2024.

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