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O princípio da solidariedade

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Resumo:


  • O valor solidariedade, historicamente, oscilou entre a importância do individualismo e a necessidade de viver em sociedade, sendo influenciado por teorias filosóficas e movimentos como o Renascimento e o Iluminismo.

  • A solidariedade é um princípio jurídico fundamental, expresso na Constituição Federal de 1988, que orienta a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, abrangendo áreas como o direito previdenciário, tributário e administrativo.

  • Os consórcios públicos exemplificam a aplicação do princípio da solidariedade orgânica, possibilitando a gestão associada de serviços públicos e a implementação de políticas públicas essenciais, especialmente em municípios com recursos limitados.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

2. Do princípio da solidariedade

2.1. Conceito de princípio

O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa oferece as seguintes definições para o vocábulo princípio:

Princípio. [Do lat. Principiu.] S. m. 1. Momento ou local ou trecho em que algo tem origem; ...2. Causa primária. 3. Elemento predominante na constituição de um corpo orgânico. 4. Preceito, regra, lei; 5. P. ext. Base; germe:...6. Filos. Fonte ou causa de uma ação. 7. Filos. Proposição que se põe no início de uma dedução, e que não é deduzida de nenhuma outra dentro do sistema considerado, sendo admitida, provisoriamente, como inquestionável. [São princípios os axiomas, os postulados, os teoremas, etc. Cf. princípio, do v. principiar.] ~ V. princípios.40

Por sua vez, quanto aos significados do vocábulo princípios o mesmo dicionário aponta o seguinte:

Princípios. S. m. pl. 1. Rudimentos. 2. Primeira época da vida. 3. Bibliogr. V. folhas preliminares. 4. Filos. Proposições diretoras de uma ciência, às quais todo o desenvolvimento posterior dessa ciência deve estar subordinado. ~ V. princípio.41

De sua banda, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa42 apresenta os seguintes significados do vocábulo princípio:

Princípio s.m. 1. O primeiro momento da existência (de algo), ou de um processo; começo, início <p. Da vida na Terra> <no p. do casamento.> <p. da exploração do petróleo nesse país> 2. O que serve de base a alguma coisa; causa primeira, raiz, razão 3. Ditame moral; regra, lei, preceito <foi educado sob p. rígidos> <não cede por uma questão de p.><é um homem sem p.> 4. Dito ou provérbio que estabelece norma ou regra <faça o bem sem olhar a quem é um bom p.> 5. Proposição elementar e fundamental que serve de base a uma ordem de conhecimentos <princípios da Física, da Matemática> 5.1. FÍS. Lei de caráter geral com papel fundamental no desenvolvimento de uma teoria e da qual outras leis podem ser derivadas. 6. Proposição lógica fundamental sobre a qual se apoia o raciocínio <partir de um p. falso> 7. FIL. Fonte ou causa de uma ação 8. FIL. Proposição filosófica que serve de fundamento a uma dedução. Princípios s.m.pl. 9. Livro que contém noções básicas e elementares de alguma matéria, ciência, etc.; elementos <p. de Estatísticas> <p. de Lingüística geral> 10. Instrução, educação; opiniões, convicções. Princípios da contradição: princípio ontológico segundo o qual nada pode ser, ao mesmo tempo, aquilo que é e o que não é, o que corresponde à idéia lógica de que, em uma mesma proposição, é impossível que um atributo qualifique e não qualifique um sujeito [Princípio lógico e ontológico do aristotelismo, tal concepção somente se consagrou exclusivamente como lei fundamental do pensamento na Idade Moderna]. Principio da identidade: lei fundamental do pensamento lógico que afirma que qualquer termo é identicamente a si mesmo, ou, algebricamente, A=A. [Concebido na filosofia medieval com o objetivo de simplificar o aristotélico princípio da contradição foi, na Idade Moderna, erigido à posição de um dos princípios lógicos elementares do pensamento]. Princípio do terceiro excluído: princípio que postula a inexistência de qualquer meio-termo entre enunciados contraditórios, de tal forma que, necessariamente, uma proposição seja verdadeira e a outra falsa [formulado por Aristóteles como um corolário do princípio da contradição, somente na Idade Moderna foi considerado como uma lei autônoma e fundamental do pensamento lógico].

Da leitura desses diversos significados é possível concluir que tais definições enfeixam uma característica comum relacionada ao fato de que "a noção de princípio estará sempre ligada à de ponto de partida" 43 .

Na seara do Direito, grande número de doutrinadores pátrios e estrangeiros, dos mais variados ramos jurídicos, já escreveram sobre o assunto. Dessa forma, realizar-se-á uma coletânea, que não tem pretensão de ser exaustiva em razão da vastidão da matéria, mas meramente condutora do desenvolvimento lógico do dito assunto naquilo que for pertinente ao objeto do presente ensaio.

Nesse tocante, Humberto Àvila44 destaca a existência de duas correntes principais de investigação dos princípios jurídicos. A primeira analisa os princípios de modo a exaltar os valores por eles protegidos – qualificando-os como alicerces ou pilares do ordenamento jurídico -, sem, contudo, examinar quais são os comportamentos indispensáveis à aferição desses valores e quais são os mecanismos metodológicos necessários à fundamentação controlável da sua aplicação.

A segunda investiga os princípios de maneira a privilegiar o estudo de sua estrutura, visando a encontrar um procedimento racional de fundamentação que permita tanto especificar as condutas necessárias à realização dos valores por eles prestigiados quanto justificar e controlar sua aplicação.

A despeito de o presente ensaio adotar a segunda linha investigativa, que privilegia o estudo da estrutura dos princípios com vistas a estabelecer os procedimentos eficazes de fundamentação, justificação e controle na aplicação de princípios, doutrina pertencente à primeira corrente também será trazida a exame, tendo-se em vista dois argumentos: primeiro, a abordagem da primeira escola significa descrever a evolução história do tema, o que é relevante à plena compreensão de qualquer objeto de investigação científica; segundo, a corrente que qualifica os princípios como alicerces ou pilares do ordenamento jurídico, a despeito de trazer poucos resultados efetivos, em termos científicos, na compreensão e aplicação dos princípios45, desenvolveu alguns conceitos relevantes que se mostram plenamente válidos ao estudo do Direito brasileiro, o que justifica sua análise neste trabalho.

É de José Cretella Neto a seguinte conceituação de princípio:

Toda e qualquer ciência está alicerçada em princípios, que são proposições básicas, fundamentais e típicas, as quais condicionam as estruturações e desenvolvimentos subseqüentes dessa ciência.46

De se perceber que Cretella Neto assume posicionamento da corrente doutrinária que estuda princípios sob a ótica de enaltecimento dos valores por eles protegidos. Esta escola de pensamento foi hegemônica durante muito tempo no cenário jurídico, sendo responsável pela difusão da idéia – que a moderna doutrina reputa equivocada47 -, de que ferir um princípio é mais gravoso do que violar uma norma estrita (regra). É que segundo a atual concepção de princípios, tem-se que, grosso modo, princípio trata-se de norma que, ao contrário das regras, não estabelece uma conduta a ser seguida pelo destinatário, mas apenas aponta um estado ideal de coisas a ser atingido. Daí afirmar a moderna doutrina principiológica, pelo maior grau de determinação da conduta existente nas regras – quando comparada aos princípios – que a violação de uma regra é mais grave do que a de um princípio.

O processualista também lembra algumas formas clássicas de classificação de princípios, ressaltando o consagrado critério da abrangência, que leva em conta os limites da aplicabilidade dos princípios. Segundo tal critério, os princípios podem ser classificados em quatros espécies a saber: a) onivalentes que são proposições gerais, de validade integral, aplicáveis a todas às ciências. Orientam o pensamento, motivo pelo qual também são chamados de princípios racionais do conhecimento ou primeiros princípios 48; b) plurivalentes que "são aqueles comuns a mais de uma ciência, ou a um grupo de ciências, orientando-se apenas nos aspectos que se interpenetram" 49 ; c) monovalentes que "são aqueles cuja validade é restrita a um único campo do conhecimento" 50 ; e d) setoriais ou regionais, entendidos como "proposições básicas em que repousam os diversos setores em que se baseia determinada ciência" 51 .

2.2. Princípios jurídicos fundamentais

Estabelecidas as premissas semânticas sobre o vocábulo "princípio", inicia-se a abordagem jurídica do tema, visitando-se os conceitos existentes sobre princípios fundamentais do Direito.

Para J.J. Gomes Canotilho, consideram-se princípios jurídicos fundamentais

os princípios historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional. 52

Para Juarez Freitas princípios fundamentais são "os critérios ou as diretrizes basilares do sistema jurídico, que se traduzem como disposições hierarquicamente superiores, do ponto de vista axiológico, às normas estritas (regras) e aos próprios valores (mais genéricos e indeterminados), sendo linhas mestras de acordo com as quais guiar-se-á o intérprete quando se defrontar com as antinomias jurídicas".53

Segundo o administrativista gaúcho, os princípios fundamentais desempenham o relevante papel de orientar o operador jurídico na resolução de antinomias jurídicas, tendo-se em vista carregarem valores axiológicos superiores às demais espécies normativas.

2.3. Princípio e norma jurídica

Sempre que alguém se propõe a estudar princípios jurídicos, defronta-se com a seguinte indagação recorrente em diversos ensaios: princípio e norma jurídica são termos equivalentes ou existirá alguma diferença conceitual entre eles? Colacionar-se-á nas linhas seguintes o posicionamento de consagrados doutrinadores a respeito do assunto, almejando apresentar ao leitor amplo panorama do debate estabelecido sobre a matéria e as conclusões doutrinárias dele decorrentes.

2.3.1. Normas jurídicas

José Afonso da Silva, ao examinar o conceito de normas, as define como

os preceitos que tutelam situações subjetivas de vantagem ou de vínculo, ou seja, reconhecem, por um lado, a pessoas ou a entidades a faculdade de realizar certos interesses por ato próprio ou exigindo ação ou abstenção de outrem, e, por outro lado, vinculam pessoas ou entidades à obrigação de submeter-se às exigências de realizar uma prestação, ação ou abstenção em favor de outrem.54

Riccardo Guastini, quanto à definição de norma, desenvolve raciocínio envolvendo conceito de enunciado, segundo o qual, "diz-se ‘enunciado’ qualquer expressão lingüística sob forma acabada. Considera-se que o enunciado não coincide (necessariamente) com o isolado artigo de lei, ou com o isolado parágrafo. Um artigo de lei ou um parágrafo seu pode muito bem ser constituído, como acontece freqüentemente, por uma pluralidade de enunciados".55

Em seguida o jurista italiano prescreve que "a disposição é um enunciado que constitui o objeto da interpretação. A norma é um enunciado que constitui o produto, o resultado da interpretação. Nesse sentido, as normas são – por definição – variáveis dependentes de interpretação".56

Nesse desiderato, Juarez Freitas ensina que:

Então, devem as normas estritas ou regras ser entendidas como preceitos menos amplos e axiologicamente inferiores aos princípios. Existem justamente para harmonizar e dar concretude aos princípios fundamentais, não para debilitá-los ou deles subtrair a nuclear eficácia direta e imediata. Tais regras, por isso, nunca devem ser aplicadas mecanicamente ou de modo passivo, mesmo porque a compreensão das regras implica, em todos os casos, uma simultânea aplicação dos princípios em conexão com as várias frações do ordenamento.57

2.3.2. Princípios jurídicos

Canotilho, em suas lições principiológicas, traduz entendimento de que princípios "são ordenações que se irradiam e imantam o sistema de normas; começam por ser a base de normas jurídicas, e podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípios".58

Karl Larenz postula que princípios "são fórmulas nas quais estão contidos os pensamentos diretores do ordenamento jurídico, de uma disciplina legal ou de um instituto jurídico".59

Na lição de Bobbio, entre princípios inexiste antinomia em sentido próprio: em caso de conflito entre dois ou mais princípios, nenhum deles é excluído do ordenamento jurídico. Ocorre uma conjugação dos valores contidos, ou, quando isso não for possível, deve ser feita uma opção sobre qual deverá ser o princípio aplicável no caso concreto; nesses casos, a fundamentação é de ordem predominantemente política e social, em detrimento da jurídica.60

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Almiro do Couto e Silva, acerca do assunto, posiciona-se no sentido de que "os princípios meramente indicam caminhos para soluções que só serão tomadas após processo de ponderação com outros princípios. Todos eles são comparados e sopesados a fim de que se apure com que ‘peso’ ou em que ‘medida’ deverão ser aplicados ao caso concreto, por vezes se verificando, ao final desse processo, que só um deles é pertinente à situação em exame, devendo afastar-se o outro ou os outros, sem que haja, assim, revogação de um princípio em outro" 61 .

2.3.3. Funções dos princípios jurídicos

Os princípios, na visão de Cretella Neto, apresentam duas funções precípuas: a) orientar o legislador na elaboração de leis justas; e b) possibilitar a correta interpretação da lei pelo julgador na solução dos conflitos de interesse.

Pensa-se que a essas duas funções poder-se-ia adicionar uma terceira: a de orientar o operador jurídico na aplicação da norma no caso concreto na busca da opção mais justa. Esta terceira função cresce de importância por ocasião do surgimento de novas tecnologias (v.g. comércio eletrônico) e institutos jurídicos (v.g. consórcios públicos), que, por se tratarem de conceitos jurídicos novos, podem ainda carecer da desejável consolidação de regimes jurídicos próprios ou até mesmo do mínimo tratamento legislativo necessário à regulação dos casos concretos deles decorrentes.

2.3.4. Relação entre princípios e normas jurídicas

Importa destacar existência de corrente doutrinária que entende inexistir diferença entre normas e princípios, aduzindo que aquelas seriam gênero, dos quais estes seriam espécies dotadas de grau de abstração relativamente elevado, ao contrário da outra espécie de normas, as regras, caracterizadas pelo grau de abstração relativamente reduzido.

Nesse passo, ingressando no exame da relação dos princípios com as normas jurídicas, Bobbio postula que princípios gerais são normas como todas as demais, advertindo, no entanto, para o fato de que podem ser expressos ou não-expressos, ou seja, esses últimos são "aqueles que se podem tirar por abstração das normas específicas ou pelo menos não muito gerais: são princípios, ou normas generalíssimas, formuladas pelo intérprete, que busca colher, comparando normas aparentemente diversas entre si, aquilo a que comumente se chama o espírito do sistema".62

Nesse tocante, não se poderia deixar de mencionar a lição de Ronald Dworkin, cujo desenvolvimento teórico sobre a diferenciação entre normas e princípios conclui que

as normas jurídicas (regras) são aplicadas segundo o critério "tudo-ou-nada" (all-or-nothing), no sentido em que, no caso concreto, ou a norma é válida ou a norma é inválida; em caso de colisão de regras jurídicas, uma delas prevalece. Já os princípios possuem uma ponderação específica (dimension of weight), dentro de cada sistema jurídico; em caso de choque entre dois princípios, aquele que detiver maior peso relativo, em comparação com o outro ou com os outros, prevalece. Aquele que tem peso relativo menor não perde a validade, apenas é suplantado pelo que tem peso maior.63

Cretella Neto enfatiza que, em termos práticos, no Brasil, tem-se admitido que a diferença entre norma e princípio reside no fato de que "a norma jurídica será sempre escrita, expressa em algum diploma legal; princípios podem constar como podem não constar de texto legal".64

Todavia, esta concepção, como se verá adiante, por ocasião da análise do tema sob a perspectiva histórica, parece ter sido superada pela evolução do debate acadêmico em torno do assunto. Pensa-se que aos inúmeros motivos que levaram a derrocada desse conceito diferenciador entre norma e princípio, dois argumentos mais podem ser adicionados.

O primeiro relaciona-se à flagrante violação do princípio onivalente da não-contradição, dado que diante do critério diferenciador eleito – positivação –, não se poderia extrair logicamente a conclusão de que os princípios poderiam ou não constar em texto legal. A nosso sentir, esta equivocada conclusão, de que o princípio, diante de tal critério diferenciador, possa ser e não ser expresso, esvazia a validade do aludido critério. Como bem mencionado por Cretella Neto, "dois atributos contraditórios são mutuamente excludentes" 65. O segundo argumento refere-se à existência do Direito anglo-saxônico – common law – onde há grande quantidade de normas de conduta não-escritas e, mesmo assim, continuam sendo normas e não princípios.

Felizmente esta questão parece estar superada na atualidade, dado o consenso doutrinário, tanto no plano jurídico nacional quanto no estrangeiro, no sentido da inexistência de diferença quanto à natureza jurídica das normas e princípios, tratando-se, em verdade, de mera questão de gênero (norma) e espécie (princípio). Assim, quer parecer que, nos dias de hoje, as diferenciações entre norma e princípio situam-se, não mais no plano da diversidade das naturezas jurídicas, mas restringem-se tão-somente às peculiaridades de cada espécie de norma.

No tocante a tais diferenças, Juarez Freitas defende a tese de que os princípios fundamentais "diferenciam-se das regras não propriamente por generalidade, mas por qualidade argumentativa superior, de modo que, havendo colisão, deve ser realizada uma interpretação em conformidade com os princípios (dada a "fundamentalidade" dos mesmos), sem que as regras, por supostamente apresentarem fundamentos definitivos, devam preponderar. A primazia da "fundamentalidade" faz com que – seja na colisão de princípios, seja no conflito de regras – um princípio, não uma regra, venha a ser erigido como preponderante. Jamais haverá um conflito de regras que não se resolva à luz de princípios, a despeito de este processo não se fazer translúcido para boa parte dos observadores".66

Ainda nesse contexto, Couto e Silva, traduzindo escritos de Alexy, traz a lume o entendimento do autor alemão sobre as diferenças entre princípios e regras, traduzindo o original em alemão da seguinte forma¸ in verbis:

Ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam, tanto quanto possível, observadas as possibilidades jurídicas e fáticas, sejam realizadas na maior medida. Princípios são, pois, comandos de otimização, os quais se caracterizam por poderem ser atendidos em distintos graus e que a medida do seu preenchimento depende não apenas das possibilidades fáticas como também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é definido pela combinação de princípios e regras. 67

Vale mencionar, ainda, uma das dez acepções de Genaro R. Carrió, para a expressão princípio jurídico, que alude ao fato de que a expressão é utilizada para "referir-se à mens legis ou a ratio legis de uma dada norma ou de um conjunto de normas, ou seja, a finalidade a que se destinam" 68.

Humberto Ávila parece ter ido mais além, propondo uma definição para esta modalidade de norma ao afirmar que

princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisa a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção 69 .

Para o jurista gaúcho,

Os princípios não descrevem um objeto em sentido amplo (sujeitos, condutas, matérias, fontes, efeitos jurídicos, conteúdos), mas, em vez disso, estabelecem um estado ideal de coisas que devem ser promovido70,

ou seja, os princípios vinculam-se, portanto, a uma situação ideal a ser alcançada no futuro.

Quanto às regras, Ávila postula que estas seriam

normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação exigem a avaliação da correspondência entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos71.

Portanto, utilizando-se das definições traçadas pelo indigitado autor, parece ser possível concluir que as regras, quando comparadas com os princípios, quanto ao aspecto de temporalidade, estariam voltadas para disciplinar um momento ocorrido no passado enquanto os princípios fixariam soluções ideais a serem alcançadas no futuro.

Vale destacar que a Teoria dos Princípios de Humberto Ávila lançou luzes importantes ao estudo dos princípios, haja vista ter trazido ao debate, dentre outras, uma característica principiológica importante, qual seja, a finalidade.

Desse modo, percebe-se que o princípio, ao mesmo tempo em que serve de fundamento a uma norma estrita, também atua como objetivo a ser atingido pela dita regra, constituindo o início (fundamento), como postula Riccardo Guastini, e o fim (finalidade) de uma regra, na visão de Ávila, sobressaindo-se de tal circunstância – ser simultaneamente fundamento e finalidade da norma estrita -, a importância dos princípios no mundo jurídico.

Por fim, encerrando este rápido sobrevôo conceitual sobre princípios jurídicos, cabe destacar a existência de análise doutrinária72, pautada pela perspectiva histórica, indicando a existência de três períodos evolutivos distintos e sucessivos cujas idéias centrais implicaram mudanças na compreensão dos princípios jurídicos. São eles: jusnaturalismo, positivismo jurídico e pós-positivismo.

No primeiro, os princípios são considerados como axiomas jurídicos, fundados em "normas universais de bem obrar"73. Esta fase teve fim porque não conseguiu definir claramente os conteúdos dos princípios. A ela sucedeu o positivismo jurídico, que teve Hans Kelsen como seu maior expoente. A característica principal desse período foi a transposição dos princípios ao direito escrito, tendo, todavia, igualmente sucumbido por entender que os princípios não positivados careceriam de normatividade. Por fim, veio o pós-positivismo, onde consagrou-se o entendimento de Robert Alexy de que os princípios, escritos ou não, são espécie do gênero norma. Esta última escola parece contar também com o pensamento de Riccardo Guastini, o qual acauteladoramente postula que "todavia, os princípios constituem, no gênero das normas jurídicas, uma espécie particular cujos traços característicos não é fácil individualizar com precisão: não é absolutamente claro, em outras palavras, quais propriedades deva ter uma norma para merecer o nome de ‘princípio’".74

2.4. Da natureza jurídica do valor solidariedade

Em nosso ordenamento jurídico, o valor solidariedade foi insculpido expressamente no no Título I – Dos Princípios Fundamentais – da Constituição Federal de 1988, mais precisamente no inc. I do seu art. 3º, a saber:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

De pronto, percebe-se que o valor solidariedade ao ser transposto da sociologia para o direito pátrio, passou a ostentar a qualidade de uma norma, que no caso é constitucional. É irrefutável a constatação de que o dispositivo acima destacado expressa um comando, uma ordem voltada para a nação brasileira no sentido de que deveremos pautar nossas ações, atentando para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. A norma em comento determina uma direção a seguir, como o norte da bússola a orientar o marinheiro em noite escura. Portanto, indiscutível o caráter orientativo da norma constitucional em apreço. Trata-se de um estado ideal a ser atingido, uma finalidade a ser alcançada pela sociedade brasileira.

Também exsurge de forma cristalina, pela simples interpretação literal, que a solidariedade compõe um dos objetivos fundamentais de nossa República. É que o constituinte originário parece ter se utilizado da aludida norma constitucional para designar um rol de situações concretas a serem implementadas em caráter fundamental. Ou seja, todas as ações a serem desenvolvidas pelo Estado, e pelos particulares numa certa medida, se admitirmos a constitucionalização do direito privado como uma realidade entre nós, deverão atender diretamente ou estar relacionadas, de alguma maneira, aos ditos objetivos fundamentais, destacando-se que a fundamentalidade de algo, no caso da norma, outra coisa não é do que a designação do seu caráter essencial.

Diante disso, tem-se que a norma expressa no inc. I do art. 3º da Carta Federal carrega a essência jurídica das ações estatais e privadas. Em outras palavras, o dito dispositivo constitucional anuncia uma das finalidades para as quais o Estado Democrático de Direito foi criado – criação de uma sociedade livre, justa e solidária –.

Outra característica que se observa do normativo em exame, é que ele possui elevado grau de abstração, fixando-se, portanto, de modo absolutamente genérico, não sendo direcionado para nenhum sujeito em particular. Ao contrário, foi formulada com grande carga de generalidade, atingindo indistintamente a todos que estiverem submetidos à ordem jurídica estabelecida pela Constituição Federal de 1988 no sentido de estabelecer um estado ideal de sociedade a ser alcançado pelo povo brasileiro.

Ora, a constatação, em termos jurídicos, de que a solidariedade mencionada no referido enunciado constitucional é uma norma finalística e reveste-se de conteúdo jurídico essencial e de alto grau de abstração, permite concluir que o valor solidariedade, conforme estudado na primeira parte deste ensaio, possui a natureza jurídica de princípio.

2.5. Da aplicação do princípio da solidariedade

O princípio da solidariedade encontra diversas aplicações em nossa ordem jurídica, sendo que o mesmo é percebido com maior clareza na seara previdenciária, tributária e administrativista.

2.5.1. No direito previdenciário

No âmbito do direito previdenciário, ele se faz presente no caput do art. 194. da CF que determina que a seguridade social compreenderá um conjunto de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, com vistas a assegurar os direitos à saúde, à previdência e à assistência social da população brasileira. Aí, presente o ânimo de atuação solidária do Estado e da sociedade em prol da assecuração dos ditos direitos em prol dos menos favorecidos.

2.5.2. No direito tributário

Na seara do direito tributário, verifica-se a incidência do princípio da solidariedade com grande intensidade no art. 145, § 1º, da CF, que trata do instituto da capacidade contributiva, que nada mais é do que uma vertente do princípio da solidariedade.

Com efeito, quando o normativo constitucional estabelece que os impostos serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, está indiretamente dizendo que em nome da solidariedade que deve existir no seio da sociedade em prol do bem comum, que aqueles que ganham mais pagarão mais, como forma de compensar aqueles que pagam pouco ou que não podem pagar impostos por não possuírem capacidade contributiva.

2.5.3. No direito administrativo

Por fim, também se verifica a aplicação do princípio da solidariedade (orgânica) na criação de consórcios públicos para a implementação das mais diversas políticas públicas.

Da interpretação sistemática da Constituição Federal (art. 241. da CF75) e da Lei Federal n.º 11.107/05 é possível depreender que um consórcio público é um contrato firmado entre entes federativos de quaisquer espécies – União, Estados, Distrito Federal e Municípios –, que tem por objeto a gestão associada de serviços públicos. Dessa forma, verifica-se com facilidade que o consorciamento de entes federativos aparece no cenário jurídico como ferramenta poderosa para viabilizar as políticas públicas nos municípios pequenos e de poucos recursos, que apenas para se ter uma noção do alcance deste instituto, em 1999, representavam 74,8% das então 5.507 municipalidades brasileiras76. De se perceber que este importante dado estatístico demonstra a relevância do aprofundamento do estudo dos consórcios públicos no Brasil.

A partir da instituição de consórcios públicos, as pequenas e pobres comunas brasileiras poderão implementar políticas públicas que estão há tempos paradas na prancheta por absoluta falta de recursos, bem como dar prosseguimento àquelas que foram interrompidas por insuficiência de verbas públicas.

Aliás, a falta de recursos é uma das principais causas de obras paralisadas em nosso país. Levantamento feito pelo Tribunal de Contas da União, encomendado pela Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara Federal, visando a subsidiar estudos relativos a alterações na elaboração do orçamento apontam a existência, na atualidade, no Brasil, de três mil (3.000) obras paradas, devido ao "descaso, falta de compromisso das bancadas, irregularidades e escassez de investimentos públicos"77 , gerando prejuízo de R$ 15 bilhões aos cofres públicos, valor correspondente ao dobro do que o governo investe em infra-estrutura por ano.

E uma das causas levantadas, a escassez de investimentos, pode ser atacada eficazmente através do consorciamento de entes federativos, que propiciará o somatório dos recursos de cada ente consorciado, destinados à realização de determinada prestação de serviços comum a todos. Assim, se os municípios A e B não dispunham, individualmente, de recursos para a construção de um hospital local em cada município, juntos, os recursos somados poderão propiciar a construção e manutenção da aludida obra, viabilizando o incremento da prestação do serviço de saúde em ambos os municípios consorciados. Nessas ações, vislumbra-se com facilidade a incidência do princípio da solidariedade orgânica, eis que os entes federativos se associam para implementar as políticas públicas aos seus cidadãos, as quais de forma individualizada, não teriam condições de implementar. E ressalte-se que na maior parte das vezes, essas políticas públicas são concretizadas através de serviços públicos que representarão a efetivação de direitos fundamentais, como por exemplo o direito de saúde proporcionado pelos inúmeros consórcios intermunicipais de saúde existentes no país.

Também importa referir, a título de breve histórico da evolução dos consórcios públicos entre nós, que a Lei Federal n.º 8.080/90 – Lei Orgânica da Saúde –, em seu art. 10.78, foi a primeira norma a aludir especificamente esse instituto após o advento da Constituição Federal de 1988, evocando-o como importante ferramenta da política de saúde pública brasileira. Esta, portanto, deve ser a principal razão do setor da saúde ser o que, na atualidade, mais se utiliza do instituto consorcial para dar efetividade a sua imprescindível política pública, como demonstram dados do IBGE colhidos em 200279 e publicados em 2005, a respeito da Gestão Municipal Brasileira.

Naquele levantamento estatístico, constatou-se que dos 5.560 municípios brasileiros existentes em 2002, 2.169 participavam de consórcios intermunicipais de saúde, significando dizer que 39,01% das municipalidades brasileiras integravam, naquela oportunidade, um consórcio de saúde. Trata-se de percentual revelador da grande aceitabilidade e utilidade do instituto no Brasil, pelo menos, na área da saúde pública, permitindo estimar que os demais setores de prestação de serviços públicos brasileiros também farão grande uso dessa ferramenta em futuro breve.

Apenas para fins de comparação, com intuito de demonstrar o alto grau de aceitação do instituto na área da saúde, a segunda e terceira espécies de consórcios mais utilizadas no Brasil são, respectivamente, os consórcios voltados para as questões ambientais (743 municípios) e de turismo (348 comunas) de acordo com as mais recentes estatísticas do IBGE80.

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Sobre o autor
Cleber Demetrio Oliveira da Silva

Sócio da Cleber Demetrio Advogados Associados, da RZO Consultoria e Diretor Executivo do Instituto de Desenvolvimento Regional Integrado Consorciado (IDRICON21), Especialista em Direito Empresarial pela PUCRS, Especialista em Gestão de Operações Societárias e Planejamento Tributário pelo INEJE, Mestre em Direito do Estado pela PUCRS, Professor de Ciência Política no curso de graduação da Faculdade de Direito IDC, de Direito Administrativo em curso de pós-graduação do IDC e Professor de Direito Administrativo e Direito Tributário em cursos de pós-graduação do UNIRITTER da rede Laureate International Universities.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Cleber Demetrio Oliveira. O princípio da solidariedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1272, 25 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9315. Acesso em: 26 dez. 2024.

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